Correio da Cidadania

O partido dos fuzilados

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Falsificações em fotografias mostram o desaparecimento de líderes soviéticos

A esquerda é, entre outras coisas, uma cultura. E como cultura, possui uma memória. A luta pela memória não deveria ser indiferente aos marxistas, pois ela é parte dos instrumentos que os seres humanos utilizam para construir seu presente e seu futuro. É verdade que a visão que eu tenho sobre o passado depende em grande medida das minhas opiniões sobre o presente. Mas o inverso também é verdadeiro: minha percepção sobre o presente e o futuro depende em parte de minhas opiniões sobre o passado. É dessa maneira que as distintas fases do tempo se entrelaçam na subjetividade humana, ajudando os sujeitos a fazerem suas escolhas e a agirem para construir o futuro. Em suma, o passado importa. E o que se lembra sobre ele importa também.

Há um fenômeno interessante no universo da memória cultural: à medida que um evento se afasta em direção ao passado cada vez mais distante, tendemos a amenizar seus traços negativos, a esquecê-los, enquanto adquirem cada vez mais força as lembranças positivas: “Afinal, não era tão ruim assim…” Quantas vezes ouvimos isso de diferentes pessoas sobre diferentes aspectos ou momentos do passado?

O progressivo desaparecimento da lembrança dos traços negativos de um fenômeno e sua substituição por lembranças positivas é maior se fomos atingidos por um trauma que desfez nossas esperanças no futuro. É o que se chama de nostalgia. Quer-se viver no passado porque o presente e o futuro nada têm a nos oferecer.

A nostalgia pode ser um simples lembrar. Nesses casos, ela tende a ser inofensiva. Mas às vezes ela vem acompanhada da tentativa de restabelecer a velha ordem das coisas. Nesses casos, ela pode adquirir um caráter completamente reacionário porque o passado não pode ser restabelecido, a não ser em sua forma farsesca.

A “nostalgia restaurativa”, como denominou a pesquisadora norte-americana Svetlana Boym (1), é a melancolia dos desesperados, dos cínicos e derrotados. A melancolia é a marca do nosso século porque as utopias estão em baixa. Mas a nostalgia também é uma utopia, porém, voltada para o passado. A “era de ouro” para a qual se quer retornar é idealizada e não corresponde ao que realmente aconteceu. É uma ilusão projetada no passado. Por isso os nostálgicos caminham de olhos vendados e de costas para a estrada. Com isso, não chegam a lugar nenhum.

Há na esquerda brasileira uma onda nostálgica em torno de Stalin. Essa onda é fruto da derrota que significou a restauração capitalista na URSS e Europa Oriental. Ela se alimenta também do fracasso do projeto do PT e da dura situação enfrentada atualmente pela esquerda no país. Alguns são mais discretos, escrevem artigos dúbios, não se reconhecem como stalinistas e confessam apenas nos pequenos círculos suas verdadeiras inclinações. Outros, em geral mais jovens e inexperientes, assumem suas posições abertamente, colocam no facebook o filtro “Stalin matou foi pouco”, curtem a página “Gulag canavieiro”, brincam sobre o assassinato de Trotsky. Os militantes mais velhos percebem, mas não educam seus jovens camaradas. Gera mal-estar. Pode se transformar em ruptura. E somos poucos. Afinal, que mal há nisso?! Passaram-se quase 100 anos! Por que dividirmo-nos em torno a isso?

Pois bem, ocorre que presente, passado e futuro vivem em eterna interdependência. Estabelecer uma relação científica e rigorosa com o passado é decisivo para a construção do porvir. Que amanhã propomos aos jovens? Um amanhã com gulags? Com fuzilamento de opositores? Com assassinatos de camaradas que até ontem estavam na trincheira conosco? É decisivo combater as ideologias liberais que igualam comunismo e nazismo ou que qualificam o marxismo como apenas “mais um totalitarismo”. Mas não combateremos essas ideologias nefastas reivindicando como correta a tragédia que foi o stalinismo para o comunismo internacional.

Dentro desse novo meio stalino-nostálgico, a crítica a Stalin é frequentemente acusada de ser uma crítica liberal. “Basicamente, você está dizendo que Stalin matou gente. Isso é uma crítica liberal”, leio em um comentário de facebook que tenta defender Stalin. Que incrível! Que completo desconhecimento da história! Stalin não “matou gente”. Stalin matou a velha guarda do partido bolchevique que dirigiu a Revolução de Outubro. Velhos revolucionários foram perseguidos, caluniado, presos, torturados e mortos. Isso não era qualquer “gente”.

Em 1922, em sua famosa “Carta ao Congresso”, também conhecida como “Testamento Político”, Lenin avaliou a importância da velha guarda bolchevique. Ele disse: “Se não quisermos fechar os olhos à realidade, então será preciso reconhecer que atualmente a política proletária do partido vem não da sua composição, mas da enorme e inquestionável autoridade da minúscula camada de dirigentes que se pode chamar de velha guarda partidária” (2). Lenin escreveu essas linhas num momento dificílimo para a Rússia, quando o país já se encontrava isolado e quando a luta proletária mundial estava em profundo refluxo. Para Lenin, era fundamental preservar a velha guarda, pois ela era guardiã da tradição, do programa e dos métodos. Num novo ascenso mundial, ela deveria mostrar o seu valor. Essa era a sua esperança.

O que fez Stalin com essa “velha guarda”? Matou vários deles. Quem pensa que Stalin matou apenas nazistas, pense de novo. Já circula na internet uma imagem com as fotos dos membros do Comitê Central (CC) de 1917 que foram assassinados por Stalin. Mas a lista que muitos viram é imprecisa. Nós a refizemos em base a fontes melhores e mais detalhadas. Eis o que lhes aconteceu:

1) Lenin – Morreu em 1924 fruto de uma série de acidentes vasculares cerebrais.
2) Zinoviev – Fuzilado em 1936 no marco do 1º Processo de Moscou.
3) Trotski – Assassinado no México em 1940 por um agente stalinista.
4) Kamenev – Fuzilado em 1936 no marco do 1º Processo de Moscou.
5) Reizin – Informação não encontrada
6) Dzerzhinski – Morreu em 1926 de infarto.
7) Miliutin – Fuzilado em 1937 no marco do 3º processo de Moscou.
8) Rikov – Fuzilado em 1937 no marco do 3º processo de Moscou.
9) Stalin – Morreu em 1953 de causas naturais.
10) Sverdlov – Morreu em 1919 de gripe espanhola.
11) Bubnov – Fuzilado em 1937 acusado de espionagem.
12) Muranov – Morreu em 1959 de causas naturais.
13) Shaumian – Assassinado em 1918 por interventores ingleses.
14) Noguin – Morreu em 1924 de causas naturais.
15) Bukharin – Fuzilado em 1938 no marco do 3º processo de Moscou
16) Sokolnikov – Preso em 1939 e assassinado sob tutela do Estado.
17) Artem-Sergueiev – Morreu em um acidente em 1920.
18) Krestinski – Fuzilado em 1938 no marco do 3º processo de Moscou
19) Kollontai – Morreu em 1952 de infarto.
20) Uritski – Assassinado em 1918 por um membro do partido popular-socialista.
21) Ioffe (suplente) – Suicidou-se em 1927 em protesto contra a burocratização do partido.

Esse foi o Comitê Central eleito no VI Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo (bolcheviques), realizado entre 23 de julho e 8 de agosto de 1917, e que conduziu o partido e os sovietes à vitória. Como se vê, dez dos seus 21 membros tiveram suas mortes provocadas pela repressão stalinista (incluindo aí o suicídio de Adolf Ioffe, que teve motivação política); seis mortes tiveram causas naturais; três membros do CC tiveram morte violenta não relacionada à repressão stalinista e uma morte, a de Lenin, pode ser indiretamente atribuída a um ato violento, já que segundo todas as opiniões os derrames sofridos pelo fundador da União Soviética em 1922 e 1923 foram consequência do atentado sofrido em 1918. Sobre um membro do CC (Reizin) não encontramos informação. Fica, portanto, absolutamente claro que a repressão stalinista foi a principal causa de desaparecimento da “velha guarda” do partido.

Sobre a repressão contra outras composições do CC (anos posteriores a 1917) e outras instâncias partidárias, não nos alongaremos muito. Isso exigiria todo um artigo ou livro. Tomemos apenas como exemplo o XVII Congresso do PCR (bolcheviques), ocorrido em 1934. Esse congresso entrou para a história como “congresso dos fuzilados”. Analisemos alguns números: dos 139 membros e candidatos a membro do CC eleitos no XVII Congresso, 70% deles foram presos e fuzilados entre 1937 e 1938. Dos 1966 delegados com direito a voto e a voz, mais da metade (1108) foi condenada por “atividade contrarrevolucionária”. (3)

Interessante observar também o grau de repressão no Exército Vermelho. Em seu famoso livro A tragédia do Exército Vermelho (1937-1938), o historiador militar russo O. F. Suvenirov reuniu os seguintes dados: (4)

Estas são apenas as principais categorias de comando que nos dão uma vaga ideia da dimensão assumida pela repressão no interior do Exército Vermelho. Dentro de cada uma dessas categorias ainda existe uma série de outras subcategorias que foram quantificadas por Suvenirov, mas que decidimos não reproduzir aqui para não tornar o artigo demasiado pesado.

Como se vê, a repressão no alto comando do Exército Vermelho foi mais brutal quando o envolvimento da URSS na Segunda Guerra Mundial já era inevitável. Stalin tinha especial medo de que desde as fileiras do Exército Vermelho, fundado e organizado por Trotski, surgisse um oposição capaz de lhe arrancar do poder. Por isso, aqueles que consideram que Stalin foi o “arquiteto da vitória sobre Hitler” deveriam refletir sobre esses números. O Exército Vermelho acabou enfrentando a Alemanha sem uma parte importante de seus quadros históricos, forjados no calor das batalhas da Guerra Civil, o que dificultou em muito a tarefa de derrotar o invasor nazista.

Querem uma crítica não-liberal ao stalinismo? Aqui vai uma: como o assassinato de dirigentes revolucionários e comandantes militares pode ser considerado um serviço à causa comunista? É defendendo esses assassinatos que vai se convencer um jovem a aderir nossa causa?

Não se trata da “treta Trotski x Stalin”. Isso é uma simplificação grosseira do debate. Trata-se de entender o que foi o stalinismo. Quem pensa que a controvérsia entre stalinistas e anti-stalinistas é “coisa do passado” simplesmente não entendeu onde está parado. Como militar lado a lado com alguém que acha aceitável matar seus próprios camaradas em base a confissões arrancadas sob tortura e ameaça?

Ou alguém realmente acredita que Trotsky, Zinoviev, Bukharin, Radek, Tukhatchevski, Rakovski, Preobrajenski e outros líderes políticos e militares eram agentes dos serviços secretos britânico, japonês, alemão, norte-americano e inglês desde os anos 1920? O que a famosa “abertura dos arquivos” revelou sobre essas calúnias monstruosas? Absolutamente nada! A “abertura dos arquivos” apenas confirmou a participação pessoal de Stalin nos crimes, seu papel decisivo na repressão.

Os neostalinistas criticam Khruschev por seu “revisionismo”. Muito bem. Mas eles mesmos adotam a posição de Khruschev nessa questão. Em seu famoso “Informe reservado” ao XX Congresso do PCUS (1956), Khruschev critica Stalin pelos crimes cometidos, mas reivindica seu papel (vejam só!) no combate ao trotskismo e na vitória sobre o nazismo. Essa é a exatamente a posição dos neostalinistas hoje. “Stalin cometeu erros, mas veja bem…” Não se trata da discussão de “erros”, mas de crimes que não prescreveram, nem nunca prescreverão.

O socialismo é o projeto mais belo e inspirador jamais construído pela mente humana. As duras condições enfrentadas pela Rússia em seu isolamento internacional certamente acarretariam atrasos e desvios temporários de rotas na dura tarefa de levar a cabo tal projeto. Ninguém era mais consciente disso do que os próprios bolcheviques. Mas o stalinismo foi muito mais do que uma dificuldade ou desvio, foi uma monstruosidade concebida e realizada por uma mente doentia e sanguinária.

É verdade que Stalin não fez tudo sozinho e por isso o stalinismo é um fenômeno muito mais amplo do que o próprio Stalin. Mas o dirigente máximo do terror contrarrevolucionário tinha nome, patronímico e sobrenome: Iosif Visarionovitch Stalin. Essa verdade jamais poderá ser apagada da história. É pela repetição dessa tragédia que lutamos? É preciso pensar bem sobre isso.

Notas

1 –  BOYM, Svetlana. The future of nostalgia. Nova York: Basic Books, 2001, 408 p.

2 –  LENIN, V. I. Últimos escritos e Diário das Secretárias. São Paulo: Editora Sundermann, 2012, p. 32.

3 – KUZNETSOVA, N. F. Уголовное законодательство периода грубых нарушений законности (1927-1941 гг.). Курс уголовного права (A legislação criminal no período das graves violações da legalidade (1927-1941). Curso de direito criminal), 2013.

4 – SUVENIROV, O. F. Трагедия РККА (1937-1938) (A tragédia do Exército Vermelho (1937-1938). Moscou: Terra, 1998, 528 p.

Referências

BOYM, Svetlana. The future of nostalgia. Nova York: Basic Books, 2001, 408 p.

BROUÉ, Pierre. O partido bolchevique. São Paulo: Editora Sundermann, 2014, 536 p.

________. Os processos de Moscou. Lisboa: Livraria Morais Editora, s. d., 320 p.

DEUTSCHER, Isaac. Stalin. Uma biografia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, 702 p.

KUZNETSOVA, N. F. Уголовное законодательство периода грубых нарушений законности (1927-1941 гг.). Курс уголовного права (A legislação criminal no período das graves violações da legalidade (1927-1941). Curso de direito criminal), 2013. Disponível em: http://adhdportal.com/book_1490_chapter_13___6._Ugolovnoe_zakonodatelstvo_perioda_grubykh_narushenijj_zakonnosti(1927-1941_gg.).html. Acesso em: 18 nov. 2019 

LENIN, V. I. Últimos escritos e Diário das Secretárias. São Paulo: Editora Sundermann, 2012, 160 p.

SUVENIROV, O. F. Трагедия РККА (1937-1938) (A tragédia do Exército Vermelho). Moscou: Terra, 1998, 528 p.

Henrique Canary é historiador.
Publicado originalmente em Esquerda Online.

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