Resenha: O privilégio da servidão
- Detalhes
- Gabriel Brito, da Redação
- 22/11/2019
O Brasil e o mundo ardem em debates sobre como superar uma crise econômica que já dura mais de uma década. Em meio a tal contexto, governos de extrema-direita e expressões políticas classificáveis como neofascistas se elegem e popularizam. Apresentam-se como antissistêmicas na mesma medida em que suas propostas aprofundam radicalmente o mesmo sistema.
No caso brasileiro, a ofensiva dos governos federal e também locais para a Reforma da Previdência, em favor de sua capitalização pelos tubarões do sistema financeiro, ao lado de notícias emblemáticas como o fechamento da fábrica da Ford em São Bernardo do Campo, são expressões cabais do contexto.
Apesar de impopulares, tais medidas de transferência de recursos do Trabalho ao Capital geram poucas respostas organizadas e combativas. E essa parece ser a grande contribuição da última obra de Ricardo Antunes – O privilégio da servidão – o novo proletariado de serviços na era digital.
Eloquente desde a capa, com a arte de Antonio Kehl em cima do grafite Reload, do artista francês Levalet, o livro vem muito bem a calhar em tempos onde o revigoramento de setores identificados à esquerda é urgente.
Dividido em quatro partes, se estrutura na noção de que, ao contrário do que defenderam alguns teóricos, não demos “adeus ao trabalho” (nome de outra obra sua). Nossas sociedades continuam profundamente dependentes da venda de sua força de trabalho e, claro, renda.
Pior: em condições até inferiores àquelas pactuadas na fase anterior. E com extração ainda intensiva de matérias primas.
“Ao contrário da eliminação do trabalho pelo maquinário informacional-digital, estamos presenciando o advento e a expansão monumental do novo proletariado na era digital, cujos trabalhos, mais ou menos intermitentes, mais ou menos constantes, ganharam novo impulso com as TIC, que conectam, pelo celular, as mais distintas modalidades de trabalho. Portanto, em vez do fim do trabalho na era digital, estamos vivenciando o crescimento exponencial do novo proletariado de serviços”, conclui.
Cabe-nos compreender a atualidade desta classe. “Dadas as profundas metamorfoses do mundo produtivo, o conceito ampliado de classe trabalhadora, em sua nova morfologia, deve incorporar a totalidade dos trabalhadores e trabalhadoras, cada vez mais integrados pelas cadeias produtivas globais e que vendem sua força de trabalho como mercadoria em troca de salário, sendo pagos por capital-dinheiro, não importando se as atividades que realizam sejam menos predominantemente materiais ou imateriais, mais ou menos regulamentadas”.
Antunes avança na análise e vislumbra um aumento do fosso entre uma elite de trabalhadores altamente qualificados para funções indispensáveis ao capital e uma vasta maioria de descartáveis, apta a aceitar condições ainda mais rebaixadas.
Por isso, questiona se estamos diante de uma “classe média ou novo proletariado de serviços”. Saímos da era taylorista-fordista de organização do trabalho para uma nova, de flexibilização total, com o adendo toyotista de “expropriar os trabalhadores até intelectualmente”.
Não à toa criou-se o jargão “colaboradores” para designar subordinados e, de certa forma, as empresas tratam de “horizontalizar” seus processos, de modo que os trabalhadores participem e concebam soluções no dia a dia.
E aí chegamos a outro problema: a perda do sentido de classe entre os trabalhadores, cuja subjetividade é alterada pelo capital.
Precisamos, assim, de instrumentos de luta à altura dos desafios, o que leva o autor a analisar a trajetória do sindicalismo brasileiro. Sob tutela estatal e negociador desde a gênese, mostra-se hoje insuficiente. Mas, respondendo a uma das perguntas do final do livro – Há espaço para o sindicalismo? Há espaço para o socialismo? -, é claro que não se tornou prescindível.
“É necessário conceber uma forma de sociabilidade que recuse o trabalho abstrato e assalariado, resgatando o sentido original do trabalho como atividade vital... Construir um novo sistema de metabolismo social, um novo modo de produção e de reprodução da vida fundada na atividade livre, autônoma, autodeterminada, baseada no tempo disponível para produzir valores de uso socialmente necessários”.
Como tive a oportunidade de ouvir do próprio Antunes, “a extrema-direita apresentou um projeto. E as esquerdas?”. Fica claro que não nos cabe fazer consertos num sistema cujos instintos se tornam cada dia mais assassinos. Trata-se de exigir outro.
Ficha técnica:
Título: O privilégio da servidão - o novo proletariado de serviços na era digital
Autor: Ricardo Antunes
Editora: Boitempo
Ano: 2018
Páginas: 328
Preço: R$ 64,00
Gabriel Brito é jornalista e editor.
Artigo publicado na Edição 32 da Revista Margem Esquerda.