“Guerras Híbridas”, um panfleto pró-Putin e demofóbico
- Detalhes
- Jonas Medeiros
- 05/02/2020
O livro “Guerras Híbridas: das revoluções coloridas aos golpes” (Expressão Popular, 2018), de Andrew Korybko.
Seu tema são os métodos de “guerra indireta” (a “guerra de quarta geração”) que o autor nomeia como “guerras híbridas”. O que elas são? Elas teriam dois elementos: (1) as revoluções coloridas e (2) as guerras não convencionais. Toda “guerra híbrida” começaria com “revoluções coloridas” (manifestações fabricadas pelos EUA para desestabilizar regimes que não são alinhados aos seus interesses estratégicos) e pode ou não avançar para guerras não-convencionais (travadas por atores não-convencionais para os quais os EUA terceirizam seus interesses, sem precisar arcar com o uso direto de suas tropas). Se o golpe brando para mudar o regime não for bem-sucedido, parte-se então para o golpe duro.
O subtítulo da tradução brasileira é diferente do subtítulo original. Parece-me que a Expressão Popular, uma editora de esquerda, buscou aclimatar o livro para o contexto brasileiro, modulando a recepção do conceito justamente para aqueles potenciais leitores que já acreditam que junho de 2013 foi uma “revolução colorida” que levou mecanicamente ao golpe de 2016 (e à eleição de Bolsonaro em 2018). O subtítulo original é “a abordagem adaptativa indireta à mudança de regime”. Um subtítulo bem menos vistoso e sem a palavra chamariz “golpe” para o contexto brasileiro.
Qual é a importância do subtítulo original? Ele revela o objetivo do livro. Como o autor explica na introdução, o termo “abordagem adaptativa” foi cunhado em 2014 por ninguém menos que o próprio comandante das forças armadas russas para se referir à Primavera Árabe durante a “Conferência de Moscou sobre Segurança Internacional” em maio de 2014. Os protestos de 2011 não teriam passado de fabricação estrangeira dos EUA, manipulação psicológica da população para travar uma guerra híbrida e desestabilizar não apenas alguns regimes do Oriente Médio como a própria Rússia.
O objetivo do livro seria, então, aprofundar esta categoria nativa das forças armadas russas (“abordagem adaptativa”) no interior da Teoria Geopolítica para, assim, desenvolver uma “teoria das guerras híbridas”. O ponto de vista da análise é sempre o do Estado russo, trata-se de um esforço teórico submetido aos interesses geopolíticos do governo de Putin e que pretende servir de instrumento para este, o que o autor explicita logo no começo, quando se refere àquela Conferência de Moscou, e no final, quando apresenta não apenas previsões de onde podem eclodir novas “revoluções coloridas”, como também o que chama de uma “estratégia contrarrevolucionária eficiente” que o Estado russo deveria empregar para combatê-las.
Dos pontos de vista teórico, metodológico e empírico, o livro é fraco. O autor diz que se baseia em estudos de caso da Síria (a primavera árabe de 2011 neste país e a guerra civil que se seguiu) e da Ucrânia (o movimento EuroMaidan de 2013-14) para avançar a construção da teoria das “guerras híbridas”. A Ucrânia seria mais um caso de “revolução colorida” (Capítulo 2) e a Síria seria um caso mais de “guerra não-convencional” (Capítulo 3).
Contudo, segundo ele, o caso da Síria já seria de “conhecimento público” e, portanto, não seria necessário “repetir os fatos” (p. 87) – portanto, ele basicamente não analisa a Síria a fundo. Mesmo no caso da Ucrânia, no qual o autor gasta mais tempo, não há tratamento cuidadoso do processo político e nenhuma reconstrução empírica com dados, apenas encadeamento “lógico” de teorias, conceitos e autores.
A tese apresentada é a de que os protestos foram fabricados por “operações psicológicas” comandadas do estrangeiro que teriam criado e manipulado divisões artificiais entre a população. O autor chega a apresentar no Anexo 1 um modelo da “mecânica” das “revoluções coloridas”, no qual defende que a ocupação de praças públicas (uma tática utilizada não apenas na Ucrânia mas em vários outros movimentos de protesto durante a década de 2010 – leiam o livro do Paolo Gerbaudo sobre isto) é um elemento central destes protestos “fabricados” pelos EUA; além disso, reduz protestos e manifestações a subterfúgios que são mobilizados por pessoas mal-intencionadas apenas para desestabilizar “regimes legítimos” e usar civis como “massa de manobra” para se proteger (“escudo humano”), se camuflar e “provocar” resposta das forças policiais.
Não há nenhum dado primário de entrevista com manifestantes, observações, reconstrução cuidadosa etc. que aponte para tais conclusões, elas são tidas como dadas e o autor apoia-se apenas em uma teorização superficial do que seriam as “psy ops” ou “operações psicológicas”. Uma das bases teóricas do autor se destacou para mim: o livro “Propaganda” de Edward Bernays, publicado em 1928. O livro defende a partir deste autor que a psicologia das massas é controlada por uma elite invisível.
Contudo, não temos acesso a evidências empíricas de como teria sido fabricada a publicidade contra os governos sírio e ucraniano, o leitor deve confiar cegamente no autor. Além disso, no decorrer de quase um século, a Teoria da Comunicação se desenvolveu e se complexificou bastante (a sociologia funcionalista de um Lazarsfeld já é mais complexa do que este controle vertical, sem contar os avanços dos estudos culturais, que demonstram a capacidade ativa dos sujeitos na recepção de mensagens midiáticas), a ponto de ter se tornado insustentável defender uma concepção tão simplista, mecânica e linear dos processos comunicativos como a deste autor...
Outra coisa que chama atenção é que, no Capítulo 2, o autor defende que um único teórico político estadunidense – Gene Sharp – seria o responsável por ter escrito o “manual” das revoluções coloridas, ensinando para os “supostos manifestantes” diversas formas de desobediência civil. Não há no livro evidências empíricas que suportem que os processos políticos na Síria e na Ucrânia tenham sido decisivamente influenciados por este cara, a não ser algumas reportagens da mídia estadunidense e um documentário ufanista do próprio Gene Sharp.
Na verdade, o que há no livro nada mais é do que uma lista de repertórios de ação coletiva... Qualquer estudioso de movimentos sociais sabe que estas táticas viajam, são difundidas, apropriadas, ressignificadas por diferentes atores, em processos de difusão simbólica que dificilmente estão sob “controle” de um só ator. Nenhum manual é capaz de monopolizar a circulação de repertórios de protesto. O livro parece coisa de quem não sabe como os movimentos sociais atuam e funcionam – ou não quer saber, afinal o falseamento desses processos de difusão de repertório de luta e a afirmação de que manifestantes são “manipulados psicologicamente” serve, em última instância, para apoiar a repressão e medidas de controle do Estado que o autor defende.
Tudo isto leva a uma característica central do livro: sua demofobia. Em vários momentos, o autor escreve ironicamente “manifestantes” (exemplo: p. 12) e “repressão” (exemplos: pp. 123 e 130), com aspas (as dezenas e talvez centenas de mortos na Ucrânia provam que a repressão do Estado foi bem real).
Qual é a origem e a consequência disto? A origem é o alinhamento com a perspectiva do Estado e a consequência é uma deslegitimação dos movimentos sociais e, em última instância, a sua criminalização. Os atores são tratados como desprovidos de agência (“manipulados”) e, no limite, há menos interesse investigativo nos protestos e mais interesse em deslegitimá-los a partir de uma “teoria” já pronta que os enquadra como manipulados, inimigos dos interesses do Estado (russo ou aliado da Rússia) e, portanto, criminalizáveis.
E isto nos leva a outra característica central do livro, a qual eu já havia apontado no início: ele é abertamente um instrumento de defesa dos interesses do governo de Putin. O autor reproduz a paranoia do Estado russo de que qualquer movimento social que ocorra em sua periferia “só pode” ter sido uma conspiração estrangeira para desestabilizar seus aliados e a si mesmo.
Aliás, esta palavra-chave – “desestabilização” – é bastante reveladora do que move o autor: a estabilidade dos regimes políticos alinhados à Rússia. Não é à toa que a solução apresentada pelo autor para as “guerras hibridas” é “[A] forte promoção de ideais patriotas […] pelo Estado e por suas ONGs afiliadas pode levar à eventual criação de uma mente de colmeia em favor do governo que participaria de contraenxames contra quaisquer insurgentes anti-Establishment” (p. 98). Além disso, recomenda que “o Estado seja capaz de monitorar a Internet e identificar a origem de certas informações que entram no país” (p. 99). Às vezes isto vai “assumir a forma de censura”; no caso da Rússia, ele recomenda que o Estado se esforce para incentivar a “‘nacionalização’ das mídias sociais e da Internet” para diminuir “a influência direta das campanhas de informação subversivas” com o objetivo de “buscar a autarquia social e informacional” (p. 99).
Do começo ao fim, o autor se alinha com a perspectiva do Estado russo, seja dos seus interesses geopolíticos externos (defende a Hungria de Orban que é “difamada” como uma ditadura – p. 138 – tem também vídeos dele no Youtube defendendo o AfD, partido alemão de extrema-direita, bem como torcendo pro Trump ganhar as eleições de 2016) seja dos seus interesses internos (abafar qualquer dissidência como “subversão”, promover a defesa do Establishment patriótico de Putin, etc.).
Há, a todo momento, o medo paranoico de que o povo se expresse, tome as ruas e faça política (a qual deve estar nas mãos de uma elite política e militar). O resultado: a repressão policial é sempre justificada e relativizada (como no caso que ele usa aspas: não seria repressão “de verdade”, seria apenas manipulação de fotos e vídeos por pessoas interessadas com uma agenda oculta).
Eu nem sequer aprofundei neste post a inserção do autor do livro em um circuito de intelectuais, think tanks, sites e revistas da direita cristã russa (deixo este ponto para um próximo texto). E fico me perguntando: como pode um livro tão mal escrito e tão claramente alinhado à Rússia autoritária de Putin estar fazendo tanto sucesso em uma parte significativa da esquerda brasileira? (Guerras Híbridas está entre os mais vendidos da Livraria Leonardo da Vinci em 2019, cada vez mais posts e tweets enxergam guerras híbridas por todo lugar e intelectuais renomados começaram a utilizar o conceito).
Tenho minhas hipóteses, mas deixo este outro ponto para a reflexão de quem está me lendo. Mas vamos abrir os olhos para a estatolatria, o autoritarismo e o conservadorismo subjacentes a este livro, que não é de modo algum um instrumento útil para o pensamento crítico e para a prática do campo da esquerda.
A quem exatamente interessa este tipo de narrativa conspiracionista? Quem está confortável com a possibilidade de esmagar a dissidência política e naturalizar a repressão estatal?
Para terminar: em quanto tempo será que eu vou ser acusado de ser um instrumento das guerras híbridas e de ter sido pago para ler e escrever sobre este livro durante as minhas férias?
Post Scriptum
A perspectiva geopolítica russa estrutura o livro como um todo. É o que estou chamando de atitude pró-Putin. O autor não cita diretamente Alexsandr Dugin, mas é o seu pensamento geopolítico que estrutura o livro como um todo. Quem é Dugin? Alguns o chamam de “Rasputin do século 21” pelo seu papel de assessoria estratégica ao governo de Putin (e às forças armadas russas desde a década de 1990). Dugin é um intelectual conservador e cristão russo, que fundou o Partido Nacional-Bolchevique depois do fim da URSS, criou uma escola de pensamento geopolítico chamada (Neo)Eurasianismo e que tem até livro publicado debatendo com Olavo de Carvalho. O Capítulo 1 de Guerras Híbridas segue a mesma linha de pensamento de Dugin: concebe as disputas geopolíticas contemporâneas entre a potência unipolar (e liberal) dos EUA contra as potências multipolares (e antiliberais) da Rússia, China e Irã, além de se apropriar de autores ingleses e estadunidenses da geopolítica (como Mahan, Mackinder, Spykman e Brzezinski) invertendo sua perspectiva para formular de modo mais claro os interesses estratégicos próprios da Rússia. Quem quiser ler esta palestra transcrita de Dugin vai reconhecer a mesma estrutura do Capítulo 1 de Guerras Híbridas: Geopolitics: Theories, Concepts, Schools, and Debates.
PS 2: Korybko a favor de Trump em 2016 para “acabar com o totalitarismo do politicamente correto” (ele chama a Lady Gaga, que estava apoiando Hillary, de “freak” em 2min10s, demonstrando seu conservadorismo): Andrew Korybko – We shouldn’t be surprised about Trump’s victory.
Jonas Medeiros é Doutor em Educação pela UNICAMP, co-autor de Escolas de Luta (Veneta, 2016) e co-organizador de Ocupar e Resistir (Ed. 34, 2019).
Comentários
A resposta correta é que nos prejudicamos sozinhos, a despeito das mentiras midiáticas da inofensiva, porém barulhenta, esquerda petista e sua incansável deformação intelectual das bases.
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