Correio da Cidadania

Sobre parasita e outros sanguessugas

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Para Seu Pelé, Felipe e Gustavo – que são tantos, mas não tontos.

Bong Joon-ho nos joga na cara a pecha de parasitas. Questão a saber é quem se encaixa a esta carapuça, a esse bumerangue lançado pelo sul-coreano. Qual será a mão com palma amarela a se reconhecer nesta condição denegada? Serão aqueles que desde a tenra infância se veem assaltados pela urgência urgentíssima de matar leões todos os dias? Como é o caso de Seu Pelé, 68 anos, morador de Seropédica, duas horas e meia de ônibus aos sacolejos, para chegar ao bairro da Tijuca, na zona norte carioca, e isto só o tempo da vinda, todos os dias, para trabalhar numa rua sem saída, oficina improvisada, dividida com Seu Raimundo, 70 anos, paraense do bairro de Jurunas antes de migrar para o Rio de Janeiro há longínquos trinta e cinco anos; Pelé, lanterneiro, conta que fora posto para fora da firma que trabalhou durante vinte anos quando os carros se modernizaram – como ele diz.

Raimundo, por sua vez, também saiu nesta mesma leva de demissões porque não conseguiu avançar nas dificuldades dos motores de injeção eletrônica. Ele conta que não tinha cabeça para estudar e o patrão descontava as horas de trabalho que ele teria que investir nos cursos de formação. Pelé e Raimundo viveram dez anos na oficina improvisada numa rua sem saída no bairro da Tijuca, perto da Vila Operária de Vila Isabel, onde Raimundo criou boa parte da família. Até que os carros foram desaparecendo, os clientes foram migrando para automóveis mais novos.

Raimundo e Pelé contam da facilidade com que os seus antigos clientes tiveram para se endividar em financiamentos com prestações a perder de vista. Eram os tempos da bonança neodesenvolvimentista. Por outro lado, eles, nossos personagens, ficaram a ver navios. Raimundo abandonou família. Voltou para o norte. Talvez trabalhe em alguma barraca de peixe na Feira do Ver-o-peso. Pelé se tornou faxineiro de prédio, espécie de faz-tudo, na mesma rua onde é figura conhecida, o que lhe garante o ganha pão. Continua gastando as cinco horas por dia, ida e volta, mas se orgulha de ter os filhos criados.

Há três anos andava cabisbaixo. É que na sua família de seis irmãos, quatro deles morreram com 65 anos, e ele tremia de medo de que fosse maldição a tomar aos seus de arrasto. Passou a data, venceu a conta, deu seu suspiro de sorte. Mas ele e Raimundo sucumbiram aos novos tempos. Não foram capazes de dar a volta por cima e amargaram os seus reveses. Seriam eles os parasitas de Bong Joon-ho?

Alguns não terão dúvidas em esticar o indicativo da condenação. Irão dizer que não venceram etapas e que ficaram pelo caminho. Outros dirão que se acomodaram, que esperam a providência divina ou a do Estado, bolsas e proventos para lá e para cá. Mas é este o aporte que podemos sacar do filme de Bong Joon-ho? Ousamos dizer que não.

Mas que dizer da família de Ki-taek? Aquela que vive nos baixios de uma das mais pungentes economias mundiais. Aquela cujo patriarca não percebeu, tal como Raimundo e Pelé, que a mercearia em que sempre trabalhara estava com o prazo de validade vencido, e que em aproximando a hora dos chacais, deveria ter se preparado para os tempos grises, deveria ter operado o milagre da multiplicação de funções (ser motorista e trocador, ou ser marceneiro, carpinteiro e florista, ou ser cozinheiro, gourmet e entregador de pizza, ou ou ou...).

Que dizer daqueles que se acomodam a viver em antros mal cheirosos, mal dormidos, infestados de novíssimos vírus purulentos? Que dizer dos que se entocam a espera de pequenos favores, de benesses fortuitas, de arranjos de hora e ventos de popa? Serão estes os parasitários de Bong Joon-ho?

Alguns dirão que o tempo que lhes sobra no seu nada fazer é a condição ótima ao fabrico de malvadezas. É que eles, um a um, irão penetrando na harmonia da família bem estruturada dos ricaços de Seul. Um a um, a começar pelo irmão que forja ser o que não é, universitário, professor de inglês. E depois virá a irmã, a travestir-se de terapeuta infantil e preceptora de arte, e cada vez mais infiltrados, e cada vez mais infectando-os, lhes chegará o pai tornado chofer para curvas sem tranco, e por fim a mãe para administrar a mansão e seus horários e seus que-fazeres, a tornar-se de hora a outra chefa de mancheia em pratos refinados de cozinha internacional.

Serão estes os parasitários de Bong Joon-ho? Mas o que lhes habilitaria a esta condição? O fato de ir atropelando, de forma despudorada, quem estiver à frente de seus intentos - outras gentes que, como eles, apenas têm de seu a sua força de trabalho? Seria a sua condição de lumpen o que lhe arremessaria a este adjetivo abjeto? Ou seria o fato de tomar de assalto aos inocentes que lhes empregam de bom grado, que lhes entregam à mão e à confiança o que eles não conseguem por em equilíbrio.

No caso aqui, a família dos benfeitores – aquela na que a filha é deprimida e passa o dia trancada no quarto de bonecas; aquela na que o filho menor é contumaz consumidor de fármacos ansiolíticos a conter a inquieta condição de pequenino rei; aquela na que a mulher é voraz consumidora do que lhe vier à mesa de ofertas: serviços, louças, utensílios, viagens, perfumes e recepções; aquela na que o pai, senhor de empresas e gestor de finanças, se desdobra em acumular minúcias perceptivas tal como apenas os obcecados compulsivos que medem os outros (que lhes servem) pela suavidade da curva, operada pelas mãos hábeis de um chofer, que não lhe derrame o uísque em sua Mercedes Benz, porque imprescindível é que os seus serviçais não lhe avancem a linha, seja pela palavra inoportuna, seja pelo olor que lhes escapa e acabe por empanturrar a fina narina talhada em pó e proscrição.

Será que a família de Ki-taek é parasita por estragar a farra e a festa dos que lhes dão a oportunidade do emprego? Na certa que alguns serão os que cravarão o x na hipótese de uma resposta afirmativa. Eles tiveram a sorte de reis e puseram tudo a perder – dirão alguns. Outros dirão o que se dizia de Raimundo e Pelé, mecânico e lanterneiro, não pagavam impostos, não pagavam aluguel de oficina e atrapalhavam o trânsito da rua. Talvez Bong Joon-ho nos ensine as táticas e os modos dos que têm orelhas de mercador. Faz que ouve e não ouve. Faz que concorda e passa ao largo. Quem sabe ele, Bong Joon-ho, nos deixe questões em aberto.

Questões simples, mas, comumente, silenciadas. Questões que nos perguntem pela origem da riqueza do senhor do mundo e sua família empregadora, espécie de lumpen-burguesia rentista. Bong Joon-ho talvez nos arremesse na cara a vergonhosa condição de toda e qualquer fortuna – os seus hábitos de fornicação grotescos; suas festas empanturradas de frivolidade e asco; seus dias de fetiches e opressão. Coisa que sem que se perceba toma de assalto as gentes pelos meios os mais diversos, suas redes de propaganda e publicidade que se costumam chamar de meios de comunicação de massa. Modos que ganham o tom e cartilha do bem fazer sob a tutela da regra e seus aparatos institucionais.

E é tanto isto que, quando se vê, eis que se arvoram à condição de hegemonia e pensamento único, como se fora de uma praga propagada, enfestando condutas e formas de vida, encenando-se aqui, ali, acolá. Mas será a isto e a estes que Bong Joon-ho quis emprestar o termo parasitas? Talvez, sim. O filme sugere, mas não responde.


André Queiroz é cineasta.
Publicado originalmente no Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC.

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