E o circo, o que é?
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- Paulo Henrique Lima de Oliveira
- 12/02/2008
O "Cirque du Soleil" estreou esta semana em São Paulo. O espetáculo "circense" cumpre mais uma temporada em território brasileiro e faz a alegria dos que podem ter acesso às suas apresentações. O sonho de consumo de muitos se apresenta como possível para poucos.
Um verdadeiro "frisson" midiático refaz a idéia do circo, dando-lhe uma nova roupagem, agora amparada na grandiosidade das apresentações. Querem transformar o que não é circo, mas se inspira na sua concepção, em circo. O "Cirque du Soleil" é diversão, arte, entretenimento, criatividade, consumo e quem sabe, emoção. Circo, com certeza, não é.
O espetáculo, que, aos olhos da grande mídia, cumpre uma turnée brasileira, não saiu do percurso de poucas metrópoles nacionais. Como o circo retrata um pouco a alma do povo, é possível que a escolha pelas metrópoles tenha este significado. Tenho cá minhas dúvidas.
O consumo deu uma identidade notória a este espetáculo. Já não podemos utilizar outro termo que não seja consumo quando estamos falando deste grupo artístico, que não resgata mais o sonho de descobrir o palhaço, o mágico ou o malabarista, mas cumpre aquilo que promete com perfeição. O circo, o lugar do congraçamento coletivo, da diversão, da alegria, é mais do que consumo. Neste caso, não é. O não consumir significa não ter direito ao encantamento.
Mesmo assim, muitas pessoas gostariam de estar bem estruturadas financeiramente para ver o espetáculo midiático com todas as performances impecáveis dos seus integrantes e o show de luzes, cores e música prometidas. As contradições do capital nos seduzem, afinal, somos humanos.
A "nova" roupagem do que se denomina circo apresenta algumas curiosidades: uma delas é a separação nítida dos espectadores por renda. Para clientes "especiais" de empresas patrocinadoras de espetáculos como este, sempre há a venda exclusiva de ingressos antes da abertura para a comercialização mais ampla. Reserva de mercado cheia de sentidos para os que teimam em se diferenciar dos demais pela ótica do ganho financeiro.
Os que puderem pagar mais (muito mais) terão assentos mais próximos do palco, estarão alimentados por um buffet repleto de pequenas guloseimas antes do show, terão vagas exclusivas no estacionamento e prioridade nas compras de souvenirs e artigos exclusivos do "Cirque du Soleil". A organização do espetáculo promete ainda surpresas para o seleto público. Os que não puderem arcar com estes custos ficarão com os famosos "saldões de estoque". Os grupos menos privilegiados economicamente levarão os seus binóculos para ver tudo de perto e farão lanchinhos antes de irem ao espetáculo. O importante é não se sentirem excluídos do circo. Digo, da metrópole. A sociedade faz os seus arranjos, mas não elimina de fato as suas contradições.
Creio que os antigos circos que faziam a verdadeira turnée nacional, como o "Thianny" e suas águas coloridas, não abriam tanto a promoção da divisão dos seus espectadores meramente pelo poder aquisitivo. Sim, havia os camarotes, as cadeiras e as arquibancadas mostrando certo público para cada tipo de assento. Mas o carrinho de pipoca era acessível a todos, a distribuição de ingressos para várias pessoas da cidade despertava o encantamento da meninada e mantinha um vínculo de intimidade com a vizinhança, os estacionamentos abriam as suas portas para carros novos e velhos. A venda de ingressos com meia-entrada era garantida a quem fosse estudante, sem número definido de ingressos desta categoria por dia de apresentação ou por tipo de assentos. Agora estamos falando de direitos, que muitas vezes são ofuscados pelas luzes da mídia. Cidadania e consumo são dois conceitos distintos.
Na página oficial do grupo, que encanta por sua organização, disciplina e atrações, há uma pretensiosa, curiosa e ousada definição para ele próprio: "criado como um antídoto à violência e ao desespero tão prevalentes no Século XX, este espetáculo fantasmagórico apresenta uma nova visão de vida urbana, transbordante de otimismo e alegria".
Visão esta que se apagará certamente na saída do espetáculo. Uma nova percepção de vida urbana contemplaria mais do que o proposto na chamada do espetáculo. Uma questão a ser pensada.
Circo é entretenimento, graça, descontração, contemplação, prazer, congraçamento com o público. O espetáculo internacional e glamouroso é quase circense. Carrega apenas a ilusão de ser. Desperta o valor do ter. Natural que seja assim?
Paulo Henrique Lima de Oliveira é sociólogo (UFC), mestre e doutor em Geografia (UFMG e UFU). E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. - Este texto é uma releitura de um texto publicado no jornal "Estado de Minas" em agosto de 2006, quando da vinda do "Cirque do Soleil" ao Brasil naquele ano.
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