Os artifícios dos fogos e outras fagulhas
- Detalhes
- Danilo Geraldo
- 01/07/2020
Em tempos de São João, abre-se uma temporada de luzes reluzentes, fumígenas ou não. Os fogos de artifício, que azucrinam tanto a vida dos amigos felíneos e cachorríneos (SIC), também serviram aos devaneios da infra-supremacia branca. Os trinta-300 trouxeram novamente os foguetes à baila de nossa história. Capitaneados pela Leônidas tupiniquim, cujo nome indica a estação que caracteriza o nosso clima nordestino aqui no Hemisfério Norte (como observado pelo ministro interino da saúde) proporcionaram um show pirotécnico na Praça dos Três Poderes.
Em um país de absurdos, lugar-comum em que absurdos não mais se destacam como novidade, resolvi revolver fato de nosso passado anedótico, na ânsia de nos tirar do marasmo temporal no qual nos encontramos no momento. E eis que, ao correlacioná-los, a bateria de informações da “pós-verdade” acaba nos levando a uma constatação curiosa: os fogos de artifício já foram artifícios (!) para outras lamentações no passado, mesmo que nem os direitistas mais verborrágicos se lembrem deles. Pois bem, vou muni-los, rememorando dois acontecimentos que ilustram o explosivo final da década de 1980.
Nas comemorações do ano novo de 1989, um célebre barco de pesca empreendeu-se na tarefa indigna de levar turistas abastados para ver as comemorações na cidade maravilhosa. O honroso pesqueiro cearense, chamado de “Kamaloka” passou por uma gourmetização e, então recebeu o nome de “Bateau Mouche”, seguindo a linha parisiense e neocolonial que perdura até os dias atuais. Pois bem, eis que começam os fogos na virada daquele ano e a tripulação se aglomerou em um bordo da embarcação, extasiada ao ver as reações químicas no céu durante aquela passagem.
Eis que a festividade virou tragédia. No meio do lusco-fusco multicolorido e da contagem regressiva o barco adernou, levando muitos a se afogarem na Baía da Guanabara. Assim como inúmeras fatalidades no país, esse é mais um caso em que se conta o que conseguimos captar com nossos sentidos, pois dizem por aí que o laudo foi inconclusivo, com responsáveis impunes até hoje. O episódio ganhou requintes de linha direta, com direito a piscina no Projac para representá-lo.
Vamos a outra grande festividade, agora definitivamente no ano de 1989, o futebol, com Maracanã lotado para ver Brasil e Chile nas Eliminatórias daquele ano, jogo quente. O Brasil já vinha ganhando de 1 a 0, torcedores incendiados. Aos 23 minutos do segundo tempo, um sinalizador foi acionado por uma torcedora, caindo próximo ao gol do campo chileno. A responsável, que se popularizou como a “fogueteira do Maracanã, virou celebridade. O artefato fumígeno caiu próximo ao goleiro Rojas, que prontamente se jogou no chão tão logo viu a luz, a fumaça e o placar do jogo. O goleiro, que aparentava sangramento, foi imediatamente socorrido e carregado por seus colegas ao vestiário, dispensando maca e assistência médica. A torcida, formada por muitos que, como eu, versaram-se nas artes de ser dispensado das obrigações escolares desconfiou na hora: “Isso é mercúrio”, bradou um torcedor, “fogo não corta, queima”, denunciou outro. A encenação, comprovada pelo parco tira-teima e jogo de câmeras da época, tirou a possibilidade de o Chile disputar a Copa de 1990. O desfecho: o goleiro perdeu o emprego do São Paulo, time em que jogava, e a “fogueteira” virou capa de revista masculina.
Contadas as nossas relações com esses artefatos fumígenos que tanto embalam nossas conversas de boteco, temos mais uma agora: o “bombardeio” ao STF no dia 14 de junho. Esse talvez seja o acontecimento em que o protagonismo dos fogos realmente tomou a escalada que tanto galgava desde os anos 80. O mesmo não posso dizer dos que acenderam o pavio.
O show pirotécnico do STF sobre as luzes flamejantes do grupo alucinado nos traz primeiro a tragédia quanto ao atentado contra o sistema de pesos e contrapesos brasileiro, mas também ao próprio processo democrático. Além disso, o caso vem à luz nesse texto (fazendo mais um trocadilho), pela sua ironia instantânea, à semelhança dos acontecimentos anteriores. Foguetes são problemáticos sobre a ótica não-especista, e seu uso provoca muito transtorno para muitos, de animais de estimação a seres humanos precarizados, da fabricação à explosão. Mas, se o querido e guerreiro leitor que persistiu até aqui me permite uma crítica menos contundente, porém mais original, os fogos sempre estão no lugar errado na hora errada.
O ângulo, seja ele minunciosamente calculado no caso do grupelho de Brasília, ou mais inesperado no caso do Maracanã, é que faz com que essas histórias perdurem como alguma lição filosófica para além do acontecimento em si. E digo mais: o ângulo em que se encontram observadores incógnitos frente aos novos acontecimentos pode ter como trágico destino o mesmo da tripulação do Bateau Mouche. Não nos neguemos a participar de nossa história anedótica por purismo ou por acharmos que nossa posição é confortável, pois a política bordeja e afundamos aos brilhos de fogos bonitos, mas com objetivos insanos.
Danilo Geraldo é biólogo, ecossocialista e estudante de Ciências Econômicas da UFPB.