Fascismo e democracia liberal (1)
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- Ugo Palheta
- 01/02/2021
Do fascismo
O fascismo pode ser classicamente definido como uma ideologia, um movimento e um regime. Designa assim em primeiro lugar um projeto político de “regeneração” de uma comunidade imaginária – em geral a nação (*1) – que supõe uma vasta operação de purificação, ou seja, a destruição de tudo que, do ponto de vista fascista, obstruiria essa homogeneidade fantasmada, dificultaria sua unidade quimérica, distanciaria de sua essência imaginária e dissolveria sua identidade profunda.
Como movimento, o fascismo está crescendo e conquistando uma ampla audiência, apresentando-se como uma força capaz de desafiar o “sistema”, mas também de restaurar a “lei e a ordem”; é esta dimensão profundamente contraditória de revolta reacionária, uma mistura explosiva de falsa subversão e ultraconservadorismo, que permite seduzir camadas sociais cujas aspirações e interesses são fundamentalmente antagônicos.
Quando o fascismo consegue conquistar o poder e se transformar em regime ou mais precisamente em estado de exceção, ele sempre tende a perpetuar a ordem social, apesar de suas reivindicações “antissistema” e às vezes até “revolucionárias”.
Esta definição permite estabelecer uma continuidade entre o fascismo histórico, o do período entre guerras e o que aqui chamaremos de neofascismo, ou seja, o fascismo de nossos tempos. Como veremos mais adiante, afirmar tal continuidade não implica em ser cego às diferenças de contextos.
Crise de hegemonia
Se sua suposta ascensão ocorre em um cenário de crise estrutural do capitalismo, instabilidade econômica, frustrações populares, aprofundamento dos antagonismos sociais (de classe, raça e gênero) e pânico de identidade, o fascismo não entra na ordem do dia apenas quando a crise política atinge um nível de intensidade que se torna intransponível no quadro das formas estabelecidas de dominação política, ou seja, quando não é mais possível à classe dominante assegurar a estabilidade da ordem social e política através dos meios ordinários associados à democracia liberal e pela simples renovação de seu pessoal político.
Isso é o que Gramsci nomeou crise de hegemonia (ou “crise orgânica”), cujo componente central é a crescente incapacidade da burguesia de impor sua dominação política pela fabricação de um consentimento majoritário à ordem das coisas, isto é, sem um aumento significativo no grau de coerção física. Na medida em que o elemento fundamental que caracteriza esta crise não é o surgimento impetuoso das lutas populares, e muito menos um levante que criaria profundas fissuras no Estado capitalista, este tipo de crise política não pode ser caracterizada como crise revolucionária, ainda que a crise de hegemonia possa, em certas condições, conduzir a uma situação de tipo revolucionário ou pré-revolucionário.
Tal incapacidade decorre, em particular, de um enfraquecimento dos laços entre representantes e representados, ou, mais precisamente, das mediações entre o poder político e os cidadãos. No caso do neofascismo, esse enfraquecimento se reflete no declínio das organizações tradicionais de massa (partidos políticos, sindicatos, associações), sem as quais a “sociedade civil” é pouco mais que um slogan eleitoral (pensemos nas famosas “personalidades da sociedade civil”), promove a atomização dos indivíduos e assim os condena à impotência, disponibilizando-os para novos afetos políticos, novas formas de adesão e novos modos de ação. Ora esse enfraquecimento, que torna a formação de milícias de massa em grande parte supérflua para os neofascistas, é o próprio produto das políticas burguesas e da crise social que eles não podem deixar de engendrar.
No caso do fascismo de nosso tempo (neofascismo), é óbvio que são os efeitos cumulativos das políticas seguidas desde os anos 1980, como parte da resposta “neoliberal” das burguesias ocidentais à onda revolucionária dos anos de 1968 e outros momentos do século 20, que tiveram sucesso em todos os lugares – em proporções diversas, dependendo do país – a formas mais ou menos agudas de crise política (aumento dos níveis de abstenção, desintegração gradual ou colapso repentino de partidos no poder etc.), criando as condições para uma dinâmica fascista.
Ao lançar uma ofensiva contra o movimento operário organizado, ao romper metodicamente todos os alicerces do “compromisso social” do pós-guerra, que dependia de uma certa relação entre as classes (uma burguesia relativamente enfraquecida e uma classe trabalhadora organizada e mobilizada), a classe dominante se tornou gradualmente incapaz de construir um bloco social composto e hegemônico. Acrescente-se a isso a forte instabilidade da economia mundial e as dificuldades enfrentadas pelas economias nacionais, que enfraquecem profunda e duramente o crédito que as populações podem dar às classes dominantes e sua confiança no sistema econômico.
Na medida em que a ofensiva neoliberal tornou mais difícil a mobilização no local de trabalho – especialmente na forma de greve – ao enfraquecer os sindicatos e aumentar a precariedade, esse descontentamento tende cada vez mais a se expressar em outros lugares e de diferentes formas:
– A abstenção eleitoral crescente em todos os lugares (mesmo que às vezes seja reduzida quando uma determinada eleição é mais polarizada) e atingindo níveis muitas vezes nunca vistos antes;
– Um declínio – progressivo ou brutal – por parte importante dos partidos institucionais dominantes (ou o surgimento dentro deles de novos movimentos e figuras, como o Tea Party e Trump, no caso do Partido Republicano nos Estados Unidos) ;
– O surgimento de novos movimentos políticos ou a ascensão de forças outrora marginais;
– A eclosão de movimentos sociais que se desenvolvem fora dos quadros tradicionais, ou seja, essencialmente fora do movimento operário organizado (o que não quer dizer sem nenhum vínculo com a esquerda política e os sindicatos).
Os neofascistas conseguem, em certos contextos nacionais, integrar-se em vastos movimentos sociais (Brasil) ou provocar eles próprios mobilizações de massa (Índia); acontece também que suas ideias permeiam certas franjas desses movimentos. No entanto, isso geralmente não é suficiente para que as organizações neofascistas se transformem em movimentos militantes de massa, pelo menos nesta fase, e as lutas extraparlamentares tendem mais para ideias de emancipação social e política (anticapitalismo, antirracismo, feminismo, etc.) do que para o neofascismo. Embora carecendo de coesão estratégica e de um horizonte político comum, às vezes até de demandas unificadas, essas mobilizações geralmente apontam para o objetivo de ruptura com a ordem social e existem concretamente possibilidades de uma bifurcação emancipatória.
Em todos os casos, a ordem política está profundamente desestabilizada. É evidentemente neste tipo de situação que os movimentos fascistas podem aparecer – em diferentes grupos sociais e por razões contraditórias - tanto como uma resposta essencialmente eleitoral (nesta fase pelo menos) ao declínio da capacidade hegemônica das classes dominantes, quanto como uma alternativa ao jogo político tradicional.
Crise da alternativa
Ao contrário da ideia comum (em parte da esquerda), o fascismo não é uma simples resposta desesperada da burguesia a uma ameaça revolucionária iminente, mas a expressão de uma crise de alternativa à ordem existente e de uma derrota das forças contra-hegemônicas. Se é verdade que os fascistas mobilizam o medo (real ou não) da esquerda e dos movimentos sociais, é na verdade a incapacidade da classe explorada (proletariado) e dos grupos oprimidos de se constituírem como sujeitos políticos revolucionários e de se engajarem em uma experiência de transformação social (mesmo limitada) o que permite que a extrema direita apareça como alternativa política e ganhe o apoio de grupos sociais muito diversos.
Na situação atual, como durante os anos entre as guerras, enfrentar o perigo fascista não significa apenas liderar lutas defensivas contra o endurecimento autoritário, as políticas anti-imigração, o desenvolvimento de ideias racistas etc., mas também (e mais profundamente) que os explorados e oprimidos consigam se unificar politicamente em torno de um projeto de ruptura com a ordem social e aproveitar a oportunidade apresentada pela crise de hegemonia.
Os dois momentos da dinâmica fascista
No primeiro estágio de seu acúmulo de forças, o fascismo busca dar uma aparência subversiva à sua propaganda e se apresentar como uma revolta contra a ordem existente. Ele o faz desafiando tanto os representantes políticos tradicionais das classes dominantes (de direita) como das classes dominadas (de esquerda), sendo todos culpados de contribuir para a desintegração demográfica e cultural da “Nação” (concebida de forma fantásmica, como uma essência mais ou menos imutável): os primeiros favoreceriam o “globalismo de cima” (nas palavras de Marine Le Pen), o das finanças “cosmopolitas” ou “apátridas” (com as conotações antissemitas que inevitavelmente carregam tais expressões), enquanto o segundo alimentaria o “globalismo de baixo”, o dos migrantes e das minorias raciais (com toda a gama de xenofobia tradicional inerente à extrema direita).
Fazendo da “Nação” a solução para os crimes – crise econômica, desemprego, “insegurança” etc.– invariavelmente atribuídos ao que é por ele considerado estrangeiro (em particular tudo o que tenha a ver direta ou indiretamente com a imigração), o fascismo afirma ser uma força “antissistema” e constituir uma “terceira via”, nem direita nem esquerda, nem capitalismo nem socialismo. A falência da direita e as traições da esquerda deram credenciais ao ideal fascista de uma dissolução das divisões políticas e antagonismos sociais em uma “Nação” que é finalmente “regenerada” porque é politicamente unificada (na realidade colocada sob o controle de fascistas), ideologicamente unânime (ou seja, privada de qualquer meio de expressar publicamente qualquer forma de protesto) e etno-racialmente “purificada”, em outras palavras, libertadas de grupos considerados intrinsecamente “estranhos” e “inassimiláveis”, “inferiores” e “perigosos.
O fato é que, em um segundo momento, ocorre o que se poderia chamar de seu momento “plebeu” ou “antiburguês” (personagem ao qual o fascismo nunca renuncia completamente, pelo menos na fala e que é uma de suas especificidades), os líderes fascistas aspiram a forjar uma aliança com representantes da burguesia – geralmente por meio da mediação de partidos ou líderes políticos burgueses – para selar seu acesso ao poder, usar o Estado a seu favor (para fins políticos, mas também para enriquecimento pessoal, como todas as experiências fascistas têm mostrado e regularmente ilustrado por condenações judiciais de representantes de extrema direita por desvio de fundos públicos), enquanto prometia ao capital a aniquilação de toda oposição. Das pretensões iniciais a uma “terceira via” nada resta, o fascismo nada propõe senão fazer o capitalismo funcionar sob o regime da tirania.
Fascismo e a crise das relações opressivas
A crise da ordem social também se apresenta como uma crise das relações opressoras, uma dimensão que é particularmente aguda no caso do fascismo contemporâneo (neofascismo). A perpetuação da dominação branca e da opressão das mulheres, bem como das minorias de gênero, é de fato desestabilizada ou mesmo ameaçada pelo aumento em escala global, muito desigual segundo cada país, dos movimentos antirracistas, feministas e LGBTQI.
Organizando-se coletivamente, revoltando-se respectivamente contra a ordem racista e heteropatriarcal, falando com sua própria voz, os não-brancos, as mulheres e as minorias de gênero tornam-se cada vez mais sujeitos políticos autônomos (o que em nada impede divisões, principalmente se faltar uma força política capaz de unificar os grupos subalternos).
Em resposta, este processo não pode deixar de despertar radicalizações racistas e machistas que se desdobram em várias formas e direções, mas encontram sua plena coerência política no projeto fascista. Isso de fato articula a representação delirante de uma reviravolta em curso ou já ocorrendo nas relações de dominação (com essas mitologias variadas de “dominação judaica”, “grande substituição”, “colonização reversa”, “racismo antibranco [ou reverso]”, “feminização da sociedade”, etc.) à vontade fanática de grupos opressores de manter, custe o que custar, o seu domínio.
Se as extremas direitas se opõem em todos os lugares aos movimentos e discursos feministas, se nunca rompe com uma concepção essencialista dos papéis de gênero, pode às vezes, dependendo das necessidades políticas e dos contextos nacionais, adotar uma retórica de defesa dos direitos das mulheres e das minorias sexuais. Eles então chegam a silenciar algumas de suas posições tradicionais (proibição do aborto, criminalização da homossexualidade etc.), e a enriquecer com novos tons o leque do discurso nacionalista: isso fará dos “estrangeiros” (*2) os responsáveis pela violência sofrida por mulheres e homossexuais. O nacionalismo feminino e o homo-nacionalismo tornam assim possível atingir novos segmentos do eleitorado, ganhar respeitabilidade política e, no processo, desviar qualquer crítica sistêmica ao heteropatriarcado.
Continua
Ugo Palheta é professor de sociologia na Universidade de Lille. Autor, entre outros livros, de La possibilité du fascisme (La Découverte, Paris, 2018).
Traduzido por Lidia Codo
Publicado originalmente na revista eletrônica Contretemps; e retirado de A Terra é Redonda.