Correio da Cidadania

Não olhe para cima = não se mova, não volte nem avance, fique onde está

0
0
0
s2sdefault

Chris Evans faz participação surpresa em Não Olhe Para Cima - POPline
O que cada um de nós faria se pudesse ver a própria morte se aproximar? Sim, isso mesmo: frente à frente, face a face, como em um espelho, a morte, cada vez mais perto, a certeza inescapável do fim desta vida – a única, afinal, que conhecemos. Quem choraria? Quem correria? Quem aceitaria?

Tais perguntas são inevitáveis e, imagino, muita gente já pensou nisso. Até onde sei, ninguém tampouco encontrou resposta definitiva e o questionamento permanece. Com a pandemia de COVID-19, esse tipo de pergunta parece muito mais presente na vida de quem ainda resguarda um mínimo de humanidade, mesmo porque a pandemia também evidenciou que muita gente no mundo não se importa um mínimo com essas questões. O que o cinema tem a ver com isso? O que o cinema ainda pode oferecer para nos fazer pensar nessas questões?

A julgar por Não olhe para cima (Don’t look up, EUA, 2021, dir. Adam McKay, roteiro de Adam McKay sobre argumento de David Sirota, 138 min.), nada ou muito pouco. O filme suscita esse tipo de questionamento, é verdade, embora o faça de maneira ultraconformada. Uma superprodução com grandes estrelas, capaz de atrair a atenção de diversos tipos de público, formatada para o mercado internacional, Não olhe para cima segue um estilo de filmografia ágil, com trilha sonora beirando o melodramático e uma combinação de ficção com imagens que poderiam estar em qualquer documentário sobre natureza da BBC.

Todos os elementos da fórmula de sucesso para dar a impressão de que a indústria cultural tem preocupações nobres comparecem. No entanto, o filme é apenas isso mesmo, uma fórmula comercial para maquiar o mais ferrenho conformismo, um produto do espetáculo cuja função é obliterar qualquer consciência crítica e proporcionar às suas plateias aquela espécie de catarse apassivadora que se alimenta de si mesma: quanto mais se consome, mais só se quer consumir.

Para tanto, ao desconsiderar as causas das nossas contemporâneas estupidez e sensação de impotência, o filme mobiliza todo o arsenal do cinema de entretenimento para exagerar os efeitos, ou melhor, causar efeitos nos espectadores. Nesse sentido, é um filme absolutamente coerente, no sentido de não deixar espaço para a transfiguração, restringindo-se a retratar a realidade tão fielmente quanto o senso comum é capaz de percebê-la. Evidentemente, essa manjada fórmula nada sugere de novo ou incômodo, apenas regurgita o que já é aceito.

Há quem pense ser alta filosofia, mas constatar a inevitabilidade da morte é apenas um truísmo. E, de fato, se há muitas maneiras de dizer que a história acabou, o catastrofismo ao qual Não olhe para cima adere é apenas mais uma delas. Pois o filme é uma pregação para convertidos, incautos ou, talvez, incultos, ao mesmo tempo em que também se dirige à irritação dos negacionistas e dos assumidamente destrutivistas. Seu sucesso não só é líquido e certo como é um fato, o que se observa facilmente pelas reações que já causou nas redes digitais.

Na verdade, esse filme já é praticamente um clássico natalino, forte candidato a ser algo como um Ben-Hur, um Rei dos reis, um Esqueceram de mim, um Duro de matar do século 21, repetidos ad nauseam com o passar dos anos. É claro que não se trata de provocar os espectadores para uma superidentificação que possa desarranjar o senso comum, mas de mover-se meramente no plano do próprio senso comum para que os espectadores que se identificarem não entendam exatamente por que se identificam – seja com os mocinhos, seja com os bandidos – nem como poderiam agir sem repetir mais uma vez o que veem na tela.

Não nos enganemos: é possível prever, com alta probabilidade de acerto, em quem votará quem gostar ou não do filme, quem se identificar com a presidenta ou com o cientista e assim por diante. A repetição é o efeito desejado pelo filme, e não a contestação; a reafirmação, e não a inovação ou a ação libertadora das falsas oposições.

O elenco de estrelas e celebridades – algumas de talento desperdiçado nesse filme fácil, outras, de talento duvidoso – já funciona como um mecanismo metalinguístico operando em marcha ré e lenta, pois o filme aponta o culto às celebridades como um fator de cegueira social para os problemas da nossa civilização. Mas, se o filme apresenta os elementos criticáveis da nossa era, por que, então, anda para trás? Justamente por causa disso: não há nada ali de crítico, de suspeita, de dúvida ou hesitação frente ao que já se constitui como o grande senso comum atual: a tal da polarização, mais desejada do que efetivamente real, vamos dizer a verdade.

Não olhe para cima é a reafirmação do lugar comum a nós atribuído, o lugar no qual se instaura a catarse apaziguadora da qual tanto auferem uns e sequer se dão conta outros e do qual não devemos nos mover. O título do filme revela-se, então, perfeitamente ajustado, pois olhar para cima é tirar os olhos e a atenção do chão onde pisamos, de nós mesmos, da própria realidade, do mundo em que vivemos, e olharmos, imóveis de onde nos sentamos, apenas para a tela, jamais para o que fica de fora dela. Já que não vamos mais ao cinema como antigamente, não deixa de ser irônico... Mas é uma ironia da qual o filme não consegue tirar mais consequências do que uma série de obviedades e piadas fáceis, sem oferecer perigo algum às crenças hegemonicamente instituídas (de qualquer “extremo” da “polarização”, é bom esclarecer). Em vez de desenvolver o questionamento, o filme oferece uma única, velha e carcomida resposta – nefelibata, não astronômica – às inquietações possíveis por parte dos espectadores.

Da China ao Egito, do México à Europa, a contemplação dos céus sempre suscitou indagações sobre o nosso lugar no cosmos: o que descobrimos de nós mesmos ao descobrir o movimento dos astros? Temos alguma importância além de ser mera poeira das estrelas? Essas questões, hoje em dia, podem ser traduzidas por outras: o que deixamos de perceber ao buscar exposição mediática, digitalização, replicação algorítmica? O que passamos a perceber quando olhamos para fora das nossas pequeninas telas e lentes de cristal lapidado a laser? Como a falta de informação e o descrédito do conhecimento ganharam tanta importância? O que fazer da ciência e da tecnologia? Qual a diferença entre o foguetório de um Elon Musk e o telescópio batizado de James Webb, o diretor da Nasa responsável pelo projeto Apolo? Qual o sentido da submissão política ao grande capital? Por que os escândalos morais parecem apelar mais ao público do que a destruição do planeta?

Se perguntas assim são escamoteadas, não faltam constatações ao filme: há o arrogante magnata da tecnologia que se acha divinamente superior; há a política submissa ao financiador, cuja principal preocupação é o oportunismo eleitoreiro; há o descrédito da ciência e ambiguidade dos grandes meios de comunicação; há o famoso sensacionalismo jornalístico e as celebridades tão ocas quanto famosas; há o cientista ingênuo, idealista e moralmente fraco, apenas um homem comum, já que o senso é comum; há a jovem cientista que sofre exposição sexista, acaba por perder a carreira e se torna balconista, situação cada vez mais comum; há uma juventude desesperançada, deslocada socialmente e outrora chamada de transviada; há o filho frustrado e abandonado pela mãe relapsa e egoísta que se torna um desprezível sociopata; há a improvável e bem intencionada família inclusiva, reunida pelo afeto e pelo amor à verdade, conforme prega o melhor senso comum; e assim por diante. A lista de obviedades e certezas é numerosa, o que condiz com a época de lançamento do filme: no fim, a saída para os bons é a religião, apresentada como a única via comum para a transcendência, a superação última das diferenças, a reconciliação pacífica dos pecadores arrependidos e, portanto, merecedores. Enquanto oram os bons reunidos em torno à mesa – uma emulação da mais politicamente correta celebração natalina, inclusiva, diversa e com direito até mesmo à conversão dos ateus, dos cientistas e materialistas ­– os maus são punidos ainda que fujam – não fugirão, a fuga é a ilusão dos gananciosos e iníquos. Lindo, não? O quanto de autocomiseração é oferecido aos espectadores nessa sequência final?

A sequência final é profundamente reveladora de um niilismo catastrofista disfarçado de preocupação bem-intencionada: é inútil agir, nada vai mudar até que sejamos todos destruídos por um cometa, um meteoro desejado e invocado nas redes, um deus ex machina severo e onipotente, castigador desta Sodoma que se tornou a nossa Gomorra. Aos bons, aos pios, aos amantes da verdade, resta o consolo da oração (algumas piadas também, mas jamais o sarcasmo iconoclasta...). Aos maus, o castigo da pena capital vem destruir a sua ilusória certeza de impunidade. Só que essa pena não lhes é imposta nem pelo meteoro e nem por qualquer justiça humana, aliás, absolutamente ausente do filme. É o destino dos ricos não pagar nesta vida e neste planeta. Fica para a próxima. Quem sabe em outra reencarnação, outro mundo, se houver. Não neste, pois se já não findou, em breve findará. Kardec endossaria, possivelmente Hayek também.

Não há uma única sombra de dúvida em Não olhe para cima, o que o torna complacente e acrítico em graus que beiram o insuportável. A montagem e a edição de imagens revelam o dogma conveniente que deve ter rendido alguns milhões na conta dos coniventes: o planeta vai acabar e a nossa morte não é o maior dos problemas. A profusão de imagens parece dizer mesmo que a humanidade é um nada, mero elemento genérico como, aliás, outras espécies inferiores na cadeia alimentar. Somos bons geradores de memes e compartilhadores de hashtags, mas incapazes de tomar o nosso próprio destino nas mãos. Assim a massa ignara e passiva se dispersa ao descobrir a farsa. O que vemos, então, é gente desunida correndo feito barata tonta pelas ruas, ou formigas sem ordem nem formigueiro, semelhança potencializada pela perspectiva de um drone. Atual, não? Também imagens que parecem documentais são exibidas – plantas, animais, uma criança, a coleta do lixo, paisagens espaciais, as órbitas dos planetas... Manjadíssimo, não? Pois ao misturar imagens, o filme as exibe para confundir: sequências rápidas, 1 ou 2 segundos, algumas parecem tiradas do jornalismo ou de algum celular, outras são a tela dentro da tela dentro da tela... A câmera às vezes parece tremer, às vezes treme mesmo, às vezes até cai no chão. Imagens, cortes, movimento, som, imagens, imagens, imagens, nada disso evidencia a ficcionalidade, ao contrário, a referência a qualquer real é que se esvai pela repetição de imagens desconectadas de um real que perdemos... Só fica uma sensação ambígua de não sei bem... Há uma sensação de urgência contra a qual não há o que se possa fazer... A não ser ajoelhar e rezar, como faz o namoradinho infeliz da cientista desempregada.

Como nenhum pastiche resiste a perguntas, então, perguntemos. Não há nada que valha salvar da destruição? Apenas os sociopatas sobreviverão, é a isso que devemos nos conformar? De fato, é exatamente essa a conclusão de Não olhe para cima, à qual todas as premissas são dadas, de modo a limitar quaisquer outras inferências por parte dos espectadores. Não admira, já que essa resposta se repete desde pelo menos Metrópolis, o filme que Adolf Hitler e King Vidor gostaram por diferentes razões: – Rezem, pois morrerão. Não restará pedra sobre pedra, só sociopatas. A bem da verdade, Metrópolis é uma obra prima de cinematografia, inesgotável e inesgotado até hoje, menos pela sua história de mutilações do que pela combinação contraditória de cinematografia criativa e inovadora e roteiro regressivo, no máximo, ambíguo. Não olhe para cima não é nada disso, é um pastiche de videoclipes de 30 ou 40 anos atrás com teor retroflexo, resignado, irresistente – parece falar da realidade, mas realmente apenas reafirma, das narrativas, a dominante.

Felizmente, o cinema tem mais a oferecer a quem ainda se pergunta pelo destino da humanidade. Por exemplo, Melancolia (Melancholia, dir. Lars von Trier, Dinamarca; Suécia; França; Alemanha, 2011, 136 min.), tema para a próxima coluna.

Cordiais saudações.

0
0
0
s2sdefault