Correio da Cidadania

Olhe para cima e acredite que só a ciência não é capaz de nos salvar

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Um elemento marcante no filme “Não olhe para cima” (Don’t look up, 2021) é a crítica ao entretenimento que tenta tratar questões sérias e graves de forma "mais leve". Na esteira desse espírito crítico foram escritas algumas reflexões em relação ao filme, que trata de questões sérias e graves de nosso tempo. “Olhar para cima” é buscar altivez crítica diante de temas tão relevantes.

A atualidade do negacionismo, da distopia e da catástrofe

Em 2020 e 2021, inúmeras pessoas poderiam não ter morrido caso autoridades públicas tivessem seguido referências epidemiológicas básicas em relação à Covid-19. No Brasil são estimadas em centenas de milhares as mortes causadas pela política bolsonarista de busca ativa da imunidade de rebanho diante da pandemia. O negacionismo em relação ao conhecimento científico, sobretudo nas ciências humanas e naturais é uma marca do bolsonarismo e de outros movimentos de inspiração fascista pelo mundo.

Por isso, para o público brasileiro que não está imerso na política de ódio e ressentimento bolsonarista, o tema do negacionismo é fundamental para abordar o genocídio promovido no país. Só por abordar o negacionismo, “Não olhe para cima” já teria audiência garantida. Mas além de promover um debate a respeito do negacionismo científico, o filme o faz articulando outras dimensões centrais para entendermos a sociedade contemporânea: distopia e catástrofe.

Vivemos uma realidade distópica. E há espaço de reverberação para produtos culturais que tematizem a distopia. Ainda mais se contarem com elencos estelares e muito investimento em produção e distribuição. Temos também a iminência de catástrofes. A própria pandemia é em alguma medida expressão de uma catástrofe planetária.

“Não olhe para cima” tematiza a dimensão política e cultural da distopia que vivemos e também aborda uma situação iminente de catástrofe; que se concretiza. Um filme que trata de catástrofe e no qual o mocinho não vence o bandido já é algo louvável se considerarmos um histórico de “Independence Day” e outros produtos culturais do gênero.

Dito isso, vale a pena ver o filme antes de olhar para baixo.

Agora cabe-nos avaliar como o filme aborda a distopia, a catástrofe e a ignorância.

Indústria de alienação X Senso crítico impotente e conformado

A caricatura boçal dos políticos e influenciadores mais importantes no mundo de “Não olhe para cima” expressa muito do perfil de alguns dos principais políticos e influenciadores do mundo real. Isso torna o filme em boa medida perturbador. Nosso afastamento do que ocorre na tela nos traz condições para voltarmos a pensar no que tínhamos esquecido: que a nossa realidade é marcada por uma indústria de entretenimento e opinião fútil, superficial e alienante. Esse caráter de perturbação e choque com a realidade pode oferecer um sentimento de “posse de senso crítico”, que é algo muito estimado por determinados setores sociais, sobretudo dentro de uma classe média ilustrada ou de uma burguesia esclarecida. Se o filme retratasse iniciativas consistentes de resistência e combate à alienação cultural, o senso crítico poderia se desdobrar em algo consequente. Mas na ausência de alternativas, a “posse de senso crítico” alimentado por determinados produtos culturais acaba muito mais servindo para conformar e confortar posturas conformistas e resignadas. Assim, receamos que “Não olhe para cima” se alinhe com “Uma verdade inconveniente” e outras produções do tipo nesse sentido.

Podemos destacar ao longo do filme as tomadas de pessoas comuns observando os acontecimentos nos Estados Unidos e no “restante” do mundo, junto às tomadas de natureza, que dão um ar de seriedade à narrativa. Mas se por um lado parecem lampejos (porque são inserções bem curtas) de sensatez em uma realidade absurda, também revelam a impotência da maior parte da humanidade em relação a medidas necessárias e possíveis de serem tomadas diante da catástrofe iminente do cometa que se chocará com a Terra e extinguirá a espécie humana.

Catástrofe como o que está por vir e pode ser evitada

Outro ponto que pode incomodar no filme é sua caracterização de catástrofe. Todo o roteiro se estrutura sobre o acontecimento de uma catástrofe iminente. E quando os astrônomos apresentam o problema no gabinete presidencial como uma catástrofe planetária, a presidente Orlean (Meryl Streep) e seu assessor e filho Jason (Jonah Hill) apresentam e minimizam outras catástrofes planetárias, dentre as quais a fome e a falta d’água. Essa minimização das catástrofes é algo corrente. O que justifica tal postura geralmente é uma crítica que figuras como Orlean, Trump e Bolsonaro fazem ao que consideram alarmismo ou vitimismo. E para furar as bolhas da profunda ignorância e da insensibilidade no filme, os astrônomos tentam apresentar o problema como algo realmente sério e urgente.

Havendo algum avanço na luta contra a ignorância e a insensibilidade, é possível que qualquer narrativa que trabalhe a perspectiva de catástrofe iminente se mostre frágil. Porque se é iminente, resta a esperança de que pode ser evitada por intervenção humana (de preferência heroica, como destacou o filme ao apelar para um veterano guerra tosco como salvador do planeta). Mas as noções de catástrofes iminentes e de esperança provavelmente se tornarão crescentemente inconsistentes, na medida em que se torne mais inevitável a compreensão de que vivemos catástrofes em curso e catástrofes já consumadas. Pois como poderíamos lidar, por exemplo, com o aquecimento global e as centenas de milhares de mortes evitáveis de Covid no Brasil, respectivamente? Extermínios de populações tradicionais ao longo dos últimos séculos e a extinção de inúmeras espécies da biodiversidade do planeta nas últimas décadas são outros exemplos de catástrofes consumadas. E a lista não para aí.

Esperança na sensibilidade dos donos do poder econômico e político diante das catástrofes

A esperança na “capacidade humana” de remediar catástrofes, isto é, na capacidade de os seres humanos que mandam no planeta fazerem isso, é desmontada no filme. Inicialmente poderíamos pensar que o filme teria o mérito de mostrar que não temos a menor condição de, no atual arranjo de poder político e econômico, enfrentar desafios que ameaçam a existência humana no planeta. Mas depois pensamos: e se Peter Isherwell, o dono da empresa de tecnologia BASH, fosse um pouco menos ganancioso, o desfecho da trama não poderia ser diferente?

Esse questionamento simples abre um outro caminho de avaliação da narrativa de “Não olhe para cima”. Pois o filme trabalha com a tese de que o interesse público foi sequestrado por interesses particulares mesquinhos poderosíssimos. E isso desloca os problemas políticos e econômicos para o campo da moral. As posturas do megaempresário e da presidente dos Estados Unidos são observadas e lamentadas. O egoísmo e a ganância teriam chegado a estados completamente lamentáveis. E cabe aos telespectadores e à 99% da humanidade se lamentar, e somente se lamentar muito. Pois afinal: como determinados indivíduos, que acumularam absurda riqueza e influência, apresentam problemas emocionais e cognitivos tão sérios? Talvez seja um acaso infeliz que “coincidentemente” aqueles indivíduos que estão à frente das decisões sejam tão “burros e vis”. Por outro lado, para quem desconfia que não são coincidências que levam a crises sociais e planetárias, o filme não oferece referência alguma às estruturas e relações sociais que permitem a absurda concentração de riqueza e influência política.

A defesa da ciência, fragiliza-se na medida em que a compreensão dos problemas sociais nos leva a depositar as fichas na crença em um novo arranjo de acasos para que os chefes de Estado e os megaempresários que os controlam tenham bons corações. Diante dessa perspectiva, resta-nos talvez rezar (como os protagonistas o fazem no final) para que antes de termos catástrofes, os super-ricos e seus serviçais políticos à frente dos Estados Nacionais se sensibilizem com os problemas e “ouçam a voz da ciência”. Mas afinal, sociopatas são os super-ricos, ou (pelo menos) os mais malvados entre eles, ou sociopático é o próprio sistema econômico que preserva e incentiva uma concentração absurda de riqueza e poder?

A impotência da ciência em conscientizar sobre o significado da catástrofe

Feitas essas considerações sobre a existência ou iminência de catástrofes e os caminhos ilusórios para enfrentá-las, passemos à importância e impotência da voz da ciência no filme. A voz científica mais coerente no filme é de Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence), a jovem astrônoma que descobriu o cometa em rota de colisão com a Terra e em nenhum momento titubeou em apresentar a gravidade da situação. Diferentemente de seu orientador, o astrônomo Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) que é cooptado pelos poderes dominantes, midiático e político, e depois se redime, retomando à sua coerente mas um tanto insignificante vida familiar e profissional.

Kate não se conforma em nenhum momento com a hegemonia da ignorância em relação à catástrofe iminente. Alijada de sua carreira científica, já tendo assumido o emprego de caixa de supermercado, Kate se enturma com jovens “contraculturais” que saem à noite para beber e conversar. Em uma dessas conversas, diante de observações de seus colegas sobre negociatas políticas conduzidas pela empresa BASH e o suposto plano (concretizado mais tarde no filme) de seu presidente, de construir uma nave para sair do planeta com alguns selecionados diante da catástrofe, Kate afirma “Eles nem mesmo são inteligentes o suficiente para serem tão maus quanto vocês acham”. Kate também passa o filme todo procurando entender por que um general dos Estados Unidos realizou uma pequena trapaça ao vender água e um sanduíche (distribuídos gratuitamente no interior da Casa Branca) a ela e ao doutor Mindy.

Kate assume o papel de certa “pureza” da ciência. E o seu próprio sobrenome, que veio a batizar o cometa que causaria a extinção da espécie humana, é uma referência interessante para isso. Dibiasky = Dibia + Sky. Sky é céu. E segundo o Wikipedia: “Dibia são os mediadores místicos entre o mundo humano e o mundo espiritual e atuam como curadores, escribas, professores, adivinhos e conselheiros de pessoas na comunidade. Eles geralmente são consultados no santuário de uma divindade principal da comunidade”.

“Saídas” individuais para a impotência diante da realidade social

Apontamos mais acima que o filme trata da dimensão política e econômica da realidade sob um prisma moral individual, quando cogitamos a possibilidade do megaempresário ser mais sensível e altruísta. Mas também podemos identificar uma variação aqui, no sentido de que a pureza e ingenuidade de Kate “Dibiasky” remeteriam a um sentido mais espiritualizado para os problemas observados. Em gradação, poderíamos talvez dizer que a impotência do ser humano diante da economia, o levaria a depositar suas esperanças na política. A observação de que a política remete à economia e a impotência do ser humano diante da política o levaria a depositar suas esperanças na moral. A observação de que a moral desprovida de poder é frágil e a impotência do ser humano diante da moral, o levaria a depositar suas esperanças na espiritualidade. Essa “gradação de impotência”, embora possa oferecer referências para que as pessoas se situem na realidade, na verdade separa dimensões da existência humana que talvez não façam sentido sem estarem articuladas.

Kate simboliza uma perspectiva coerente, combativa e pura de ciência. Mas talvez fosse necessário à Kate algumas lições elementares de ciências sociais. Pois o foco nos indivíduos e não no sistema de relações sociais não é capaz de explicar a potência da ignorância e a impotência da ciência. Isso só pode ser devidamente explicado na medida em que compreendemos a importância da ignorância como necessidades da reprodução do capital em um mundo colapsado, com catástrofes consumadas e em curso.

A impotência de Kate nos remete a um problema que extrapola a perspectiva do filme, que, afinal, se conforma à catástrofe e apresenta uma resistência impotente diante de uma realidade “desmoralizada”. Mas, apesar de desmoralizada, essa realidade não deixa de se impor, imoralmente. E é essa a realidade conformada por relações políticas e econômicas típicas do capitalismo contemporâneo, decadente mas obstinado em manter privilégios e afundar cada vez mais a humanidade e o planeta. O problema de Kate é a noção de que nossa principal e única batalha é a batalha da ciência contra a ignorância. Por certo, não podemos negar que essa seja uma batalha importante. Mas sem nos perguntarmos sobre as causas da força da ignorância, a luta contra ela fica bastante frágil.

Afinal, o que é a ignorância e de onde vem sua força?

Na parte final dessa crítica de “Não olhe para cima”, vamos pensar um pouco na ignorância, que é um tema que atravessa todo o filme. Ignorância é o estado ou condição daquele que é ignorante. Esse estado ou condição atua nas pessoas como um afeto, no sentido de que mobiliza seres humanos para agirem a partir do despertar de estados emocionais próprios. O estado de quem se conforma com a ignorância e na ignorância se contrapõe ao estado de quem quer conhecer. A busca de conhecimento exige método e disposição de debate. Por outro lado, a ignorância se consolida na conservação das próprias crenças, inconsistentes com a realidade, por não possuírem nem um método consistente para coletarem e processarem os dados da realidade e nem disposição de ter suas proposições e opiniões questionadas. Por isso, a ignorância sempre exige altas doses de autoritarismo, no sentido de limitação de debates, juntamente com imposição das próprias verdades, falsas e inconsistentes. Mas a falsidade e inconsistência não são impeditivos para que a ignorância seja elemento decisivo para a obtenção e manutenção de posições de poder.

Na medida em que complexificamos o entendimento da ignorância, percebemos sua força, enquanto afeto que move muitos seres humanos e que é inclusive motivo de orgulho para líderes mundiais como Trump e Bolsonaro. E percebemos também que é um afeto que não atua sozinho. A força do afeto se articula com outros afetos psicossociais, em geral menos reconhecidos que a ignorância. Talvez seja possível elencar mais do que aqueles que consideraremos aqui, mas até para articularmos com referências de “Não olhe para cima” vamos trabalhar na perspectiva de uma tríade, em que se articulam ignorância, perversão e covardia.

Há perversão, covardia e ignorância em “Não olhe para cima”

A perversão é facilmente observada na conduta da presidente dos EUA, do dono da BASH e das personalidades midiáticas Brie Evantee (Cate Blanchett) e Jack Bremmer (Tyler Perry). Todos esses personagens atuam a todo instante para distorcer a realidade e levar vantagens, satisfazendo os próprios desejos, sem nenhuma preocupação em relação às consequências de suas ações. A trajetória do doutor Mindy fornece referências interessantes de posturas covardes, na medida em que ele não fica ao lado de sua colega quando ela combate a tentativa de tratar questões graves de forma leve. (A propósito, também não foi isso que fez "Não olhe para cima" com seu formato de comédia dramática?). Mindy também assume atitudes perversas, seduzido e cooptado pelo poder da presidência e da BASH, por um lado, e pela atraente apresentadora de TV, Brie Evantee, por outro.

Entretanto, o doutor Mindy supera individualmente sua covardia e perversão, o que cria um sentido de redenção para ele no final. Talvez fosse melhor se o doutor Mindy se corrompesse definitivamente, o que demarcaria com mais fidedignidade a força social dos afetos de covardia e perversão, bem como a capacidade desses afetos de subverter a própria razão. Afinal, ao fazer uma peça publicitária a serviço da BASH, o doutor Mindy claramente contrariou o que a ciência tinha para dizer sobre o assunto.

Um desfecho reconfortante, que torna a inação diante da catástrofe algo secundário

O desfecho do filme, com a redenção moral e espiritual de Mindy em uma farta mesa com comida rezando com familiares e amigos nos afasta da compreensão de que eventuais vitórias individuais sobre a perversão e a covardia não são consistentes para alterarmos a ordem social que amplifica esses afetos, junto à ignorância. O filme acaba exaltando e valorizando um “herói anônimo”, que consegue reverter um processo de degeneração ética no qual acabou sendo enredado. Diante da redenção de Mindy e da reunião “espiritualizada” com família e amigos, a catástrofe fica em segundo plano. E consequentemente, também é secundarizado o balanço das responsabilidades históricas e os esforços necessários a respeito das catástrofes “já cometidas” e as que estão sendo “cometidas”. A cena final, em que a presidente dos EUA é morta de forma banal por um animal depois de ter escapado com sucesso para outro planeta, acalenta o imperativo moral de que os justos morrem dignamente e os injustos “mais cedo ou mais tarde” pagam por suas atitudes vis. Apesar da extinção da espécie humana, os telespectadores saem reconfortados com a mensagem deixada pelo filme. Um alívio, pois mesmo diante da destruição da vida humana no planeta, temos um final feliz. Ironia? Tragédia? Talvez, só resignação mesmo.

Apesar dos temas extremamente relevantes tratados no filme, a dizer, catástrofe, esperança, distopia e negacionismo científico, a abordagem desses temas e a mensagem deixada pelo filme são bastante frágeis.

Potiguara Lima é cientista social e servidor público municipal da Educação

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