Correio da Cidadania

No golpe do olhar, o foco na consciência: as fotografias de Walter Firmo no IMS

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No famoso conto que inspirou o filme Blow-up: Depois daquele beijo (dir. Michelangelo Antonioni, R.U., 1966, 1h51min.), Júlio Cortázar afirma que o ato de fotografar é uma das melhores, se não a melhor maneira de combater o nada. Uma fotografia é o que resulta de uma luta contra a fugaz inconstância do mundo. Fotografar é buscar gravar em imagem o fugidio, é tentar fixar a certeza de tudo que parece instável e duvidoso, é uma forma de dominar o que de imponderável há no curso dos acontecimentos, numa palavra, é negar a inexorabilidade do fluxo do tempo que nos leva para a morte.

Essa luta, sabemos, é vã como aquela contra as palavras. Pois o máximo que uma imagem bem fotografada revela é sempre e tão-só alguma possibilidade de olhar, nada mais que isso. Se confiamos sem desconfiar que a nossa capacidade de interpretar o que vemos certamente aumenta, não podemos também esquecer que o flagrante de uma verdade oculta pode ser frustrante e a revelação fotográfica pode gerar mais dúvidas e incertezas. No mundo das imagens digitais cada vez mais onipresentes, essa sensação – de tormento, engano ou insatisfação – é muito bem conhecida.

Diante de uma foto, a nossa consciência de que há um hiato entre a representação do real e o próprio real é muito forte, ao mesmo tempo que uma fotografia pode confundir realidade e representação. As nossas esperanças de reunir signo e objeto podem ser destruídas por uma simples fotografia, pois não é fácil distinguir o que emana do objeto e o que captamos dele – pois isto, o que dele captamos, só o fazemos de modo inevitavelmente parcial, de certa perspectiva, assumindo determinado ponto de vista, escolhendo o enquadramento, recortando o espaço do visível. Uma foto nos revela que é impossível ver tudo, há sempre o que nos escapa. Por isso, fotografias nos fazem sentir sermos estrangeiros no mundo em que habitamos, para recuperar a fórmula de Walter Benjamin: o signo fotográfico é real e é signo de um real que não está e não pode estar ali, numa palavra, uma foto não é o próprio real, mas nos põe diante dele sem disfarçar a parcialidade da nossa visão. Essa é a duplicidade imanente à fotografia: uma foto, talvez mais do que uma pintura ou um desenho, é uma presença que remete a uma ausência, não apenas a de um objeto ou evento fotografado em outro lugar que não ali onde estamos, mas a nossa própria, aquela que um dia, sabemos, será definitivamente consumada quando morrermos. Ao nos reafirmarem a certeza da nossa temporariedade, as fotografias alimentam as nossas dúvidas.


Festa de São João Cachoeira, Bahia, 1971. Foto de Walter Firmo / Acervo IMS

O que isso tudo tem a ver com a arte de Walter Firmo? O título da exposição é um registro das palavras do fotógrafo: “no verbo do silêncio, a síntese do grito”. Isto é, para ele, as suas fotos sintetizam silenciosamente as ações expressivas de seu povo em seus momentos mais significativos – a sua cultura, os seus rituais, movimentos, gestos, semblantes, trabalhos, jogos, atitudes... Diante das fotos de Walter Firmo, testemunhamos, sim, um tempo muito vivo, pois que tempo de uma vida muito rica, cheia de espírito, magia e luz, um tempo que já passou, como podemos identificar nas fotos dos grandes nomes da música brasileira, mas que ainda não deixou de ser nosso, como sugerem principalmente as fotos das pessoas comuns. De fato, não há signo ou figuração mais perfeita da morte do que a imobilidade e o silêncio de uma foto. Pois uma foto nos implica como testemunhas da passagem do tempo, do movimento da vida em direção à morte, justamente por aumentar a nossa consciência da diferença de temporalidade entre nós, observadores, e o fotografado observado. Ao mesmo tempo, uma vez que só testemunham a dissolução do tempo porque sobrevivem a várias gerações de pessoas, observadoras e observadas, fotos parecem indestrutíveis, eternas (sem falar na sua capacidade de reprodução potencialmente infinita). E grande parte da força das imagens fotográficas de Walter Firmo está em que, diante delas, sentimo-nos testemunhas não apenas da dissolução do tempo, mas de uma renovação da esperança de continuidade – as suas fotografias são sobretudo promessas de permanência, pois testemunhamos nelas a possibilidade de vencer o nada absoluto da morte.

A falar a verdade, essa é uma característica da fotografia em geral, e não peculiar da arte de Walter Firmo. Testemunhas dos mortos como mortos, fotografias não nos deixam dúvidas de que nós, um dia, também morreremos – e restarão as fotos para provar. Diante das fotos de Walter Firmo, porém, a sensação é a contrária – por mais que a morte nos ameace, viveremos! Vejam aqui, a nossa existência retratada em fotos. Não são fotos de um “instante congelado”, como no senso comum se diz, mas imagens transfiguradoras que transpõem para a dimensão da eternidade o que vivenciamos como fragmentário e fugaz, uma vez que afirmam como indestrutível a teimosia de vencer a nulificação definitiva. Ainda que retratem momentos fugazes e, com isso, lembrem-nos da nossa própria transitoriedade neste mundo, – pois há, em certas fotos de Walter Firmo, como no retrato de Cartola de pijamas e Dona Zica na janela, uma afirmação sem dó nem piedade de que nada dura para sempre, de modo que temos de reconhecer que a presença da morte é constante e inevitável – a consciência de que cada instante é irrepetível e cada pessoa é única funciona, nessas imagens, como signo da dignidade singular das pessoas fotografadas, por conseguinte, da nossa.

Quando Walter Firmo começou a sua carreira no fotojornalismo, o Brasil ainda não se livrara da ideologia que opunha o trabalho intelectual – o dos cavalheiros – e o braçal – o dos operários, os trabalhadores manuais, artesãos. No Brasil dos anos idealizados como dourados, essa mesma divisão constituía não só o modo de regular a produção como impregnava os alicerces da cultura do país, cujo sistema educativo se organizava segundo a reforma de Gustavo Capanema, ministro da educação de Getúlio Vargas, com a divisão restritiva entre ensino clássico, científico e técnico.  As teorias da fotografia que, até meados da década de 1960, ainda afirmavam a natureza documental da arte, valiam-se dessa separação: uma foto é um registro inequívoco da realidade; por sua própria natureza, produzida pela impressão da luz em uma chapa ou filme sensível, uma foto é um pequeno indício de uma realidade maior, ela mesma incontestável e inequívoca, na qual as fotos também se inseririam. Eis aí a ambiguidade fundamental: signo transparente da verdade dos fatos, uma foto seria, ela mesma, um fato dentre outros fatos, um objeto dentre outros. Essas distinções rígidas marcaram toda a era de emergência da arte fotográfica, até pelo menos a década de 1960, quando a criação de imagens fotográficas ganhou maior complexidade, indo além dos experimentalismos modernistas para entrelaçar realidade e ficção em todos os gêneros fotográficos. Foram poucas e notáveis as exceções daqueles que, antes da Segunda Guerra Mundial, recusaram depositar apenas nas qualidades técnicas da fotografia – como a nitidez da informação visual, ou a qualidade da impressão – o seu valor estético, reconhecendo certa opacidade inalienável nas fotos e contestando o ideal de transparência total.


Chapada Diamantina, Bahia, 1967. Walter Firmo

O fotógrafo Walter Firmo faz parte da geração que renovou a arte fotográfica no mundo, recusando as ideias que a restringiam ao secundário papel ilustrativo do jornalismo escrito, como se fossem signos de objetividade indiscutível. Pois é bem verdade que as imagens de Walter Firmo refletem ou representam o que há de mais significativo no amadurecimento da fotografia no século XX. Aliando apuramento técnico a uma transbordante democracia de assuntos, as fotos de Walter Firmo são trabalhos de uma aguda sensibilidade e imaginação estéticas, ao mesmo tempo que são narrativas bem construídas, retratos – literal e figuradamente – que organizam visualmente as várias facetas de uma realidade brasileira na qual muitos de nós, brasileiros que somos, não raro nos sentimos estrangeiros. Contudo, pelas imagens de Walter Firmo, podemos chegar mais perto dessa realidade, sentimos como se estivéssemos em casa, como se essas imagens fossem portais que nos levam para mais perto do outro que somos nós mesmos, para dentro de cenas que habitam a nossa intimidade profunda, na qual nos despimos das máscaras que usamos da porta para fora.
 
Agora, pensemos no seguinte. Se a mera existência de uma máquina capaz de produzir imagens já representava uma ameaça ou desafio à ordem social fincada sobre dualismos conceituais rijos, imagine se operada por um jovem negro! Daqueles que tiveram a sua humanidade negada, a ideologia hegemônica jamais esperaria uma postura menos do que submissa – quem dirá tolerar um olhar. Pois é justamente isso o que as imagens de Walter Firmo têm a oferecer: um outro olhar para a realidade e para nós mesmos. Em um dos seus depoimentos, o fotógrafo afirma que sempre buscou a ambiguidade entre a realidade e a fantasia, essencial à fotografia. Nas suas palavras, ele buscou “mudar a tônica [do fotojornalismo] na fratura exposta”, uma vez que “a vida também é doce, a vida também é mãe, não é só madrasta.” Ao se recusar fazer de sua fotografia um impossível registro fiel de uma realidade inalterável, Walter Firmo abdica da fria objetividade em nome de uma calorosa subjetividade.

Se a certeza definitiva não é e jamais será um valor absoluto, a fotografia de Walter Firmo parece sugerir vários caminhos para não estagnarmos nessa constatação. Qualquer pessoa minimamente senciente que visite a exposição de suas fotos sairá de lá com muitas pulgas atrás da orelha e impressionado com a força das suas imagens. Sua vivacidade é tal que elas transmitem uma sensação desconcertante e se desafiam certezas, também sugerem possibilidades de definição. Nas entrevistas filmadas que podem ser vistas na exposição, usando da sua não menos admirável articulação discursiva, o fotógrafo dá algumas pistas com as quais nós, observadores de suas fotos, podemos compor as nossas interpretações. Num desses vídeos, comentando uma foto que tirou de Cartola, uma foto da silhueta do sambista em contraluz, Walter Firmo afirma que sempre buscou fazer fotos que fossem como um soco, como no boxe – para ele, as suas imagens têm que nos atingir com força, e não só os nossos olhos, a nossa visão fisiológica, mas o nosso olhar, a nossa maneira de ver. As fotos de Walter Firmo, para ele mesmo, devem ser dotadas de uma tactibilidade tal que, por mais familiares possam parecer, socam o nosso olhar com um golpe que nos tira da indiferença do senso comum. É o que Roland Barthes chamava de punctum – uma picada nos meus sentidos, algo da foto que nos punge, o elemento que parte da foto e nos transpassa como uma flecha. Nestes nossos tempos de profusão fotográfica ilimitada, as imagens de Walter Firmo, muitas delas feitas há mais de 50 anos, ainda se mostram extraordinariamente pungentes!


Os mascarados, 1992. Pirenópolis, Goiás. Walter Firmo.

    Ao contrário, porém, de um soco, as imagens de Walter Firmo vivificam o nosso olhar, e não o embotam. Elas são picadas que aguçam o olhar contra toda displicência, letargia, lomba, sonolência, neutralidade ou conformismo. A curadoria da exposição – partilhada entre Sergio Burgi e Janaína Damaceno – marca muito oportunamente o aspecto político das imagens de Walter Firmo. Pois não é possível falar da fotografia de Walter Firmo sem falar da potência política, da visada política do fotógrafo. Esse aspecto tornou-se mais proeminente após Walter Firmo ter sofrido um ataque do mais ressentido racismo, quando, já gratificado com o Prêmio Esso de fotojornalismo (1963), então o mais importante do país, passou uma temporada nos EUA como correspondente da revista Manchete (1967). A partir de então, em contato com a contracultura, o jazz e o movimento dos direitos civis nos EUA, Walter Firmo adota o lema Black is beautiful e passa a enfatizar a cultura afrodiaspórica, tornando-se um fotógrafo deliberadamente engajado na causa da beleza de seu povo afro-americano – “Sempre quis cantar os negros do meu país, fotografar o meu povo, eles são maravilhosos”, como ele mesmo diz. Daí que a cor tenha para ele nascido de uma preocupação menos cerebral ou experimental – o que seria próprio do preto e branco do pós-guerra – e mais afeita às qualidades sensoriais da nossa realidade sub-equatorial. “Esqueçam os tons pastéis”, é outra de suas falas, “isso é coisa da Europa, a nossa luz aqui é a das cores vivas.” A foto do garoto na janela de uma parede vermelha mostra bem o que ele quer dizer com isso.

A par disso, a sua estadia nos EUA também parece ter contribuído para uma maior consciência das limitações da objetividade fotográfica sem, no entanto, levar a um menosprezo da ideia.  Pense-se na imagem do fotógrafo refletido na vitrine: se as suas fotografias não são as de um sujeito que busca dominar a cena toda de uma só visada, esse sujeito, por estar na cena, não tenta jamais falseá-la a ponto de vedar o olhar dos observadores. A teatralidade das suas fotos mais famosas – seus retratos – pode ser mencionada como o exemplo maior dessa sua atitude que busca a conversa com o fotografado e conosco, também, nós, os observadores das suas imagens. A teatralidade de Walter Firmo, porém, está mais para um teatro Oficina do que para um palco italiano clássico. A sua perspectiva é a de um observador interessado, um narrador implicado na cena e que nos convida a participar dela e sermos, assim como ele, observadores certamente judicativos e não isentos, e jamais oniscientes. Nas palavras do fotógrafo, o observador é partícipe, de tal forma que diante das suas fotos cada um deve “se permitir viajar” no que o fotógrafo viu, como na foto do garoto vendedor de algodão doce em Piatã-BA, intitulada “Vendedor de sonhos”. Para ficar apenas com uma escolha preferida, dentre tantas possíveis, chamo a atenção para a imbricação entre o subjetivo e o objetivo na foto do boy do hotel, cujo olhar encontra o nosso pelo reflexo do espelho. O garoto, cuja expressão assustada igualmente nos surpreende, não é só olhado, ele também nos olha, ele também é sujeito do olhar, e a composição da foto faz pensar em quem é o reflexo de quem: quem é o fotógrafo? Quem é o espectador? O alvo da mirada?

Por tudo isso, as imagens de Walter Firmo não são signos fragmentários de um real pré existente e externo à foto, pontual e especificável como um dígito. O que as distingue de meros índices é sua natureza icônica, característica muito bem destacada pela curadoria. Pelo que entendi, os curadores entendem que as imagens de Walter Firmo são, como os ícones religiosos, capazes de sacralizar as suas personagens fotografadas, a exemplo dos retratos das grandes personagens do samba, ou da noiva evanescente que parece um orixá de passagem, ou as duas mulheres na festa do Boi Bumbá, em Belém do Pará, “duas entidades”, nas palavras do próprio Walter Firmo.


Festa Bumba Meu Boi, São Luís, Maranhão, 1994. Walter Firmo.

De fato, a raiz etimológica da palavra ícone vem do grego eikon, justamente, imagem. Como um tipo de signo, porém, um ícone é mais do que apenas uma imagem. Ícone é todo signo que significa o seu objeto por semelhança. Nas imagens de Walter Firmo, a significação por semelhança é evidente pelas cores, a característica mais lembrada de suas fotos, mas também é notável nas suas fotos em preto e branco, felizmente recuperadas com o devido destaque na exposição. Pois assim como os elementos químicos, as características que aproximam um signo de seu objeto estão muito longe da absoluta pureza. Se a natureza icônica das imagens de Walter Firmo está na emanação das qualidades materiais, sensoriais, físicas das pessoas e cenas fotografadas, qualidades que sentimos fortemente – são socos em forma de luz, sombras, formas e cores, um verdadeiro arrebatamento sensitivo – elas também são índices, por manterem uma relação física com o mundo em que se inserem e que representam em imagem fantástica.

O próprio Walter Firmo é bem consciente disso, quando afirma: “A minha fotografia tem esse poder, essa exalação,” diz ele, “de transformar o mundo em fantasia.” Sim, à primeira vista, o que nos toma ao vermos as fotos de Walter Firmo é a vivacidade das cores, as perspectivas cinematograficamente imersivas, a luminosidade contundente, aspectos que as tornam tão infirmativas que é impossível não imaginar todo o trabalho de concepção e direção de cena – “décor”, como ele mesmo diz – do fotógrafo para a criação das suas narrativas visuais.

Na narrativa de Walter Firmo, a consciência do fotógrafo acerca das qualidades estéticas das suas imagens é revelada por outra declaração: “quando posso, busco colocá-los [os negros do meu país] num sonho, como um pintor”. Assim como pinturas, as fotos de Walter Firmo se situam em algum lugar indefinido entre o possível e o factual. São imagens cuja potência é capaz de fender a continuidade temporal da consciência e abrir as vias múltiplas das possibilidades de sentir, de imaginar e sobretudo de viver. Diante das cores das fantasias de carnaval ou das vestimentas religiosas, do vigor luzidio dos músculos realçado pelo contraste de luz e sombras, da altivez orgulhosa e espontânea mesmo na pose para a foto, do flagrante inesperado de um cotidiano despercebido, o que mais supor senão que toda resistência concreta da consciência cristalizada se esmorona para dar lugar a um aflorar de abstrações, impressões e ilações, num lapso de tempo que suspende as vozes num grito e sintetizam todas as disposições anímicas de um povo?


Pixinguinha em casa. Rio de Janeiro, 1968. Walter Firmo.

Há muito sabemos, porém, que há diferentes graus de iconicidade nas fotografias. Como é impossível pensar qualquer fotografia fora das condições e situações da sua produção, bem como as da sua difusão ou recepção, tanto mais devemos prestar atenção às qualidades estéticas das fotos que observamos. De fato, fotografias são indissociáveis do ato que as define, de modo que se as fotos digitais perderam a indicialidade que caracterizava as tradicionais – já que não são produzidas por uma relação física do filme com a luz, mas por matrizes matemáticas que se auto organizam – a relação entre campo e contracampo torna-se ainda mais fundamental. Nas fotografias produzidas por Walter Firmo, o marcante traço de iconicidade, de semelhança qualitativa com o fotografado, é precisamente controlado, apenas às vezes aproximando-se do limite máximo da abstração em que linhas, formas e cores se dissolveriam em uma só abstração. Pois a abstração, nas fotos de Walter Firmo, está a serviço da narrativa, e não vice-versa, de modo que quanto mais as qualidades estéticas se tornam evidentes, mais as fotos parecem deixar de ser representações e as próprias personagem ou cena fotografadas parecem se materializar em presença viva à nossa frente – presença que nos atravessa e nos transcende, diante da qual e com a qual transcendemos a imediatidade para alcançar um outro plano de vivência possível. Está aí a imensa, a tamanha potência imersiva das imagens de Walter Firmo, a sua capacidade de narrar que o aproxima de um cineasta, mas um cineasta-fotógrafo, aquele cuja criatividade narrativa concentra-se no punctum fotográfico.

É claro que podemos pensar muitas coisas diante dessas imagens, uma vez que, como já visto, fotografias não são indícios claros e transparentes do objeto fotografado. Assim como um mapa que, para ser útil, não pode representar o território tão perfeitamente a ponto de se confundir com ele, uma foto, por mais qualitativa e tátil possa ser, só consegue representar o fotografado sob certo aspecto e, por isso, só consegue presentificá-lo ao nosso olhar até um limite, pois se fosse totalmente transparente, desapareceria, e se fosse totalmente opaca, também! A escuridão em que todas as distinções se confundem é a da morte, e fotografar significa escrever com a luz, o que implica escolher onde situar a divisa entre o claro e o escuro e, assim, deixar algo de fora do campo do visível. E, de tudo o que fica de fora, o mais importante e mais impossível de fotografar é a interpretação dela ou, em outras palavras, a consciência que nós, observadores de fora do enquadramento fotográfico, temos dos limites desse enquadramento. Dessa posição, inevitavelmente fazemos hipóteses e imaginamos um sentido para o que é visível e o que é invisível nas imagens e, com isso, ensaiamos adentrar, digamos assim, o campo de visibilidade das fotos.

As fotos de Walter Firmo parecem captar justamente algo dessa consciência – na verdade, o foco é a consciência. Uma vez que o trabalho do fotógrafo já capturou a intencionalidade consciente do fotografado – como o retrato de Madame Satã ilustra perfeitamente – o resultado desse trabalho, a foto revelada, aponta francamente para a nossa consciência – a linha do olhar de Madame Satã direta e reta no nosso – e sinaliza, assim, a uma conscientização, se assim se desejar afirmar. Talvez esse seja o feito mais impressionante da arte de Walter Firmo. Como afirmou a curadora, minha amiga Janaína, no dia da abertura, quem olha, existe, e existe como sujeito, tanto quanto nós, que também somos olhados e disso nos apercebemos quando vemos quem nos enxerga de dentro das fotos de Walter Firmo. E o que mais podemos concluir depois de contemplarmos no olhar de um cavalo uma expressão tão humana que passamos a nos perguntar que expressão nossa é aquela no olhar desse animal? Se até um cavalo é sujeito, é inevitável perguntar – que animais somos nós? Nós, que nos julgamos senhores do visível, somos surpreendentemente enxergados por um quadrúpede ... Quem somos nós? Que gente é essa que nós somos? “Gente fina, gente boa, trabalhadores”, diz Walter Firmo.


Circo Mambembe, 1972. Sabará, Minas Gerais. Walter Firmo.


VALE SABER: Não é menos digno de nota que a exposição, com entrada gratuita, aberta ao público até 11/09/2022, pode ser vista no Instituto Moreira Salles da Avenida Paulista, São Paulo. Se o lugar já vale a visita por si só, a materialidade das imagens de Walter Firmo torna a experiência inesquecível. Nenhuma amostragem pela Internet é comparável à vista in loco das fotos.

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