Correio da Cidadania

Uruguai: a criminalização do social expressa no futebol

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Foto: Arquibancada do Estádio Obdulio Varela, na foto familiares dos desaparecidos com suas fotos. Nicolas Macchi

Um clube de futebol pode se envolver com questões políticas e sociais? Existe algum limite de atuação para uma equipe para além das competências esportivas? Para o governo do presidente uruguaio Luiz Alberto Lacalle Pou a resposta para primeira pergunta é um retumbante não, e para a segunda um eloquente sim. O último dia 23 de junho ficou marcado pela intervenção feita pelo Ministério de Educação e Cultura junto ao Club Social y Desportivo Villa Española, na qual destituiu a atual direção do clube e nomeou um interventor como novo mandatário. O objetivo deste será “regularizar as ações do clube”, analisar o seu carácter social e convocar novas eleições.

Mas o que motiva o governo uruguaio a intervir diretamente em um clube desportivo que atualmente joga a segunda divisão do campeonato de futebol do país? A justificativa bancada por um grupo de torcedores e ex-dirigentes que levaram denúncias a tal esfera é que regras estatutárias não estariam sendo cumpridas, mas principalmente que o clube executou atividades de “cunho político”. Tais atividades foram ligadas ao coletivo Cultura del Barrio, responsável por realizar atividades culturais envolvendo o Villa Española e seu bairro (Parque Guarani onde se localiza o Estádio Obdulio Varela e está sua sede social), assim como manifestações por memória e justiça referentes as vítimas das Ditadura Militar uruguaia, e manifestações de jogadores contra a aprovação da LUC (Ley de Urgente Consideración).


Uniforme lançado esse ano em homenagem as/os desaparecidos/as na Ditadura Militar uruguaia. Reprodução das redes sociais do Club Social y Desportivo Villa Española.

Desde o dia 23 de Junho ocorreram inúmeras manifestações pelas redes sociais contra a intervenção do governo uruguaio, acusando seu carácter autoritário, assim como foram registrados casos de agressão e ameaças contra a direção destituída e jogadores do atual elenco, como Santiago “Bigote” Lopez que resolveu encerrar sua carreira futebolística. Em função desse clima de animosidade criado em volta da situação do Villa Española, a Mutual Uruguaya de Futbolistas Profesionales declarou paralisação total das atividades enquanto não fossem garantidos pelo Estado uruguaio as condições mínimas de segurança.

As questões que podem ser movidas aqui são as seguintes, se acusam o Villa Española de atitudes “políticas”, aqueles que o denunciam também não estão sendo movidos por motivos políticos?

Um clube que desde sua fundação esteve ligado a ações sociais de apoio mútuo, que carrega em seu uniforme as cores da bandeira espanhola republicana não esteve envolto de política desde o princípio? A quem incomoda ações que remetem a memória dos/as mortos/as e desaparecidas durante a Ditadura Militar uruguaia e de outros países do Cone Sul? Não é uma situação de Direitos Humanos básicos? Em um país de ampla tradição democrática como o Uruguai, um jogador de futebol não pode expor sua posição diante de um referendo que vai afetar diretamente sua vida e de toda coletividade? Intervir contra essas ações não é uma ação de censura contra os direitos básicos de uma instituição e individualidades dentro de um regime democrático?

Tal ação do governo uruguaio trás preocupação, considerando o cenário de crescimento de governos autoritários na América Latina dos últimos anos, caracterizar a defesa de Direitos Humanos e ações sociais como algo negativo ou ainda digno de uma intervenção estatal demonstra como o autoritarismo pode ser utilizado contra aquilo que é visto como “inimigo”. Para alguns pode ficar a justificativa de que “um clube não pode se envolver em ações político eleitorais” ou algo do gênero.


Ação do elenco do clube junto aos familiares dos desaparecidos durante a ditadura militar uruguaia. Foto: Nicolas Macchi Muslera

É importante ressaltar o caráter da Ley de Urgente Consideración (LUC), com quase 500 artigos ela aplicou uma das maiores reformas constitucionais vistas em território uruguaio, fortalecendo os mecanismos de criminalização da pobreza, e enquadrando protestos sociais como potenciais inimigos internos. O fortalecimento dos aparelhos repressão e a judicialização de ocupações, protestos e piquetes são apenas alguns dos pontos que a lei outorga. A lei ainda inclui artigos que podem afetar diretamente o sistema de educação e beneficiar empresas privadas e a especulação financeira. Aprovada em 2020 , ela foi referendada em março de 2022 pela diferença de apenas 1% dos votos, o que pode ser uma porta para maior violação de direitos humanos no Uruguai e para própria censura, como se vê no caso do Villa Española.

Cabe recuperar trechos da entrevista dada pelo ex-presidente do clube, Miguel Romero, ao jornal uruguaio El País, em março de 2022, para que se possa ver “os perigosos atos” movidos pela instituição e que preocupam o governo uruguaio, o mesmo que aprovou a LUC, a ponto de intervir diretamente na sua política institucional.


Bigote Lopez, centroavante da equipe. Foto: Reprodução redes sociais

“Acho que não há um conceito único que a defina (Cultura de Barrio), mas a biblioteca na sede social e no estádio, o jardim, a entrega de cestas durante a pandemia, as oficinas de gênero, as atividades esportivas do clube, as atividades culturais e sociais são geradas pelo e para o bairro, faz parte da Cultura de Barrio. É uma forma de construir e pensar coletivamente, sobretudo incorporando o valor social de nossa instituição, já que Villa Española é um clube social e esportivo”. E acrescentou que "a Cultura de Bairro existe há vários anos, especialmente promovida inicialmente pela comissão cultural do clube, composta por vários dirigentes, e depois assumida pela instituição e pela direção enquanto tal, além de ser apropriada por sócios e torcedores. A Cultura de Barrio representa também o esforço de todos aqueles que trabalham para o clube, a transparência a nível econômico e financeiro e os sucessos sustentados nessa área.” A horta do Obdulio Varela é administrada pela comissão cultural do clube, realizada pelos jogadores do elenco e cuidada por moradores do bairro Zitarrosa e alunos da Escola nº 382 (Maestro Ruben Lena). “É um dos pilares do vínculo com o bairro, com a participação de meninos e meninas do CAIF [serviço social] da região”. Segundo Romero, todas essas atividades conseguiram estreitar os laços com o bairro, onde todos pensam em resolver os problemas da comunidade junto com os vizinhos. "Isso também é para nós Cultura de Bairro", assegurou.

Complementando as palavras do presidente deposto do clube, é importante ressaltar o trabalho movido pelos inúmeros coletivos que ajudam a construir essas atividades dentro do clube como a Comissão de Cultura, Comissão Villa en Flor, Coletivo Huertas, Cantina Sócrates, Murga Los Pepinitos e o Grupo de Entretenimento Atletismo Villa Española. As imagens que ilustram essa matéria trazem outra atividade importante tocada pelo clube e suas coletividades, o apoio ao grupo Madres y Familiares de Uruguayos Detenidos Desaparecidos e a participação todo mês de maio na Marcha do Silêncio. O qual desde o final da ditadura militar no Uruguai luta por memória e justiça pelos uruguaios e uruguaias que foram vítimas do jugo militar nos regimes implantados no Cone Sul a partir dos anos 1960.


Oficina contra violência de gênero. Foto: Reprodução redes sociais.

O Club Social y Desportivo Villa Española para além dos resultados no futebol, representa muito para seu bairro, para as pessoas que estão e acabam envolvidas em suas atividades, um caso raro dentro do futebol mas que devia se tornar exemplo. Fundado em 1940 originalmente como um clube de Boxe, o Villa Española desde o início em volta das atividades da Asociación Española Primera de Socorros Mutuos, junto a coletividade de espanhóis refugiados da Guerra Civil em seu país, lançaram as raízes de um clube que antes de tudo é social e de bairro. Ainda mais hoje que a maior preocupação é destruir o pouco que se tem de estrutura social para transformação em SAFs, SADs e afins, entregando aquilo que é patrimônio de muitos nas mãos de alguém que pode pagar milhões.




Emerson da Silva Folharini é historiador.

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