Correio da Cidadania

Entre novos e velhos revisionismos, Memória Sufocada é o cinema que sobreviveu ao bolsonarismo

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Filme 'Memória Sufocada', sobre a ditadura militar, estreia no Cine  Casarão, nesta quinta-feira (30) - Portal do Marcos Santos
Divulgação Memória Sufocada

O Brasil ainda não se levantou dos escombros do governo Bolsonaro, muito menos a sociedade está recuperada dos anos de intoxicação ideológica fascista. Após um governo formado por homens que reivindicam a ditadura militar, o país se afastou dos sonhos de bem estar social plasmados na Constituição Federal de 1988, não por acaso um documento que nunca contou com o respaldo dos agentes do regime anterior. E, tal como na ditadura, viu uma deliberada destruição da política cultural e do cinema nacionais. É deste contexto sombrio que emerge Memória Sufocada, documentário de Gabriel Giacomo, lançado às vésperas de mais um aniversário do golpe militar.

Em entrevista ao Correio, o cineasta reflete sobre o forte revisionismo histórico a respeito da ditadura militar, o que fez parte do movimento de popularização da figura de Bolsonaro, até sua vitória eleitoral. Pela primeira vez na história da chamada Nova República, o Estado brasileiro, em sua forma política posterior ao regime militar, festejou aquele que foi um movimento das velhas oligarquias nacionais e uma pequena classe média urbana. O nome da obra não é ponto sem nó e dialoga com o livro Verdade Sufocada, livro do coronel e torturador mais ilustre da ditadura, Carlos Alberto Brilhante Ustra, talvez pioneiro no esforço de reabilitação histórica dos militares, anterior à explosão das redes sociais e seu manancial de mentiras produzidas profissionalmente.

“Teve uma época em que a gente até falava 'mas fazer outro documentário sobre a ditadura brasileira?' Já tem tanto filme sobre a ditadura, né? E na verdade eu acho que precisa fazer sempre, acho que sempre vamos ter períodos em que teremos de recontar a história, principalmente no Brasil, que não teve nenhum dos violadores de direitos humanos punidos, ninguém envolvido na ditadura foi preso, nenhum agente de Estado condenado. Como não teve uma punição judicial fica sempre meio aberto o debate sobre se eles eram criminosos mesmo. Permite-se a dúvida”.

Não bastasse o ataque frontal à classe artística e cultural do país, Gabriel Giacomo ainda se deparou com a pandemia e a interdição forçada das relações sociais. Tal golpe do destino mudou completamente o roteiro de produção, que abandonou a ideia de entrevistar atores políticos e sociais da época e, utilizando uma estética e fotografia típicos de redes sociais contemporâneas, realizou uma obra de resgate histórico e historiográfico.

“Além da pandemia, houve um esvaziamento dos órgãos públicos. Não acabou a ANCINE, mas foi parando, sendo deixada de lado, sem precisar fechar oficialmente. Basta as coisas não andarem, colocar pessoas de confiança na liderança para minar o trabalho do órgão, ao invés de acabar oficialmente e gerar uma polêmica maior. E realmente foi tudo parado. Era praticamente impossível conseguir produzir um filme com recursos públicos, com incentivo do governo durante esse período”, explica Giacomo.

 

A preocupação em combater as mentiras é realmente um norte do filme, que faz menção às fake news dos velhos tempos, produzidas pela mídia de massa, então ainda mais conservadora e monopolizada do que hoje, quando os mecanismos de distorção da realidade ganharam voo próprio com as redes sociais. Assim, os autores mantêm no ar um site do filme com farto acesso às fontes de pesquisa de Memória Sufocada. “A ideia é que as pessoas também possam montar um filme em suas próprias cabeças, acessar documentos, seguir pistas e reconstruir a verdade histórica”.

Como alerta Giacomo, “não sei se algum dia o Brasil será uma democracia sólida com avanços sociais garantidos. Talvez devamos disputar os direitos pra sempre”. Os direitos e, como mostra a pandemia, a memória, pois segue em marcha a militância da mentira: no momento, a ordem nas fileiras da extrema-direita é sabotar a percepção social do coronavírus no Brasil, com evidente intenção de garantir uma nova anistia, desta vez para Bolsonaro, Pazuello e outros saudosos da ditadura militar em sua criminosa gestão da crise sanitária. Revisionismo ontem e hoje, de mãos dadas. Barbárie contra a qual a resistência sempre poderá contar com a arte.

Confira a seguir a entrevista com Gabriel Giacomo.

Correio da Cidadania: Como se deu o processo de concepção e produção do filme?

Gabriel Giacomo: A ideia de fazer um filme que falasse sobre a ditadura e sobre o coronel Ustra, autor de livro que o ex-presidente Jair Bolsonaro considera sua obra de cabeceira, surgiu 2018. Saímos de um presidente ilegítimo para outro que defendia a ditadura abertamente, considerava o torturador mais notório do regime militar um herói, época marcada também por um movimento de relativização do golpe de 1964 e dos danos causados pela ditadura.

Esse discurso começou a ganhar força nas redes sociais, teve até um documentário daquela produtora Brasil Paralelo, cujos produtores fizeram uma obra que colocava as coisas em dúvida, dava a entender que havia uma ameaça comunista na época, cheio de argumentos enviesados e umas falácias. Esse documentário teve bastante visualização nas redes. Eu comecei a me perguntar, na minha cabeça era tão consolidada essa memória de que a ditadura foi um período ruim pro Brasil, em todos os aspectos, de repressão até a economia.

A ditadura foi um desastre para o Brasil, isso é uma noção generalizada, mas comecei a ver que estava começando a se perder um pouco essa memória, que pra mim era consolidada. Resolvi fazer o filme tentando explicar às novas gerações quem foi o coronel Ustra, o que aconteceu de uma forma geral na ditadura.

No entanto, quando a gente começou o processo de pesquisa do filme veio a pandemia. A princípio a ideia era entrevistar bastante gente, mas como veio a pandemia e naquele começo era impossível entrevistar alguém, todo mundo sabia como as coisas aconteciam e com o governo Bolsonaro a Ancine (Agência Nacional de Cinema) ficou parada, não funcionava mais nada, não existiam mais editais, era impossível conseguir algum recurso pra financiar um filme, mais ainda com esse tema.

Assim, tomamos a decisão de fazer um filme só com materiais de arquivo, o que no final virou um mecanismo; usamos material disponível na internet, organizando e ampliando materiais que já estavam disponíveis para qualquer pessoa pesquisar. A precariedade da possibilidade de produção daquele momento se tornou um dispositivo de linguagem do projeto.

Correio da Cidadania: O nome do documentário se inspira no livro do coronel Ustra, A verdade sufocada, uma obra, digamos, pioneira de revisionismo histórico pró-ditadura?

Gabriel Giacomo: Sim, foi uma resposta ao livro do Coronel Ustra, cheio daquelas mesmas argumentações que parte do exército, Bolsonaro e a maioria dos conservadores usam pra justificar o golpe de 64. A mesma repetição de mentiras, de que havia uma ameaça comunista no Brasil, que não é verdade, nunca teve o risco de uma revolução comunista no Brasil.

Importante frisar que o livro também nega as práticas de tortura, diz que quem foi morto pela ditadura estava em combate, no conflito armado, de maneira que o nome do filme faz referência indireta a esta obra do Ustra. Tentamos trazer o máximo de fatos comprovados, com documentos, com tudo, e rebater a desinformação que ele coloca em seu livro.

Correio da Cidadania: Você mencionou na primeira resposta a questão de se combater um certo revisionismo histórico pró-ditadura como um fator que motivou e mobilizou a produção do filme e, de uma forma não muito convencional, há um site do filme que compartilha materiais e fontes de pesquisa. Até que ponto você sente esse revisionismo na sociedade, para além de redes sociais, e considera importante esse aspecto?

Gabriel Giacomo: Foi a grande motivação. Teve uma época até que a gente falava, “mas fazer outro documentário sobre a ditadura brasileira?” Já tem tanto filme sobre a ditadura, né? E na verdade acho que precisa fazer sempre, acho que sempre vamos ter períodos em que teremos de recontar a história, principalmente no Brasil, que não teve nenhum dos violadores de direitos humanos punidos, ninguém envolvido na ditadura foi preso, nenhum agente de Estado condenado.

Ninguém envolvido com os crimes cometidos pela ditadura, pelo Estado, foi condenado, sofreu uma punição ou foi preso. É um motivo pelos quais esse revisionismo continua vivo também. Como não teve uma punição judicial fica sempre meio aberto o debate sobre se eles eram criminosos mesmo. Permite-se a dúvida. Se a gente tivesse feito como outros países fizeram na América Latina e realmente julgado tais criminosos, talvez não precisássemos ficar batendo nessa tecla tantas vezes.

Sobre compartilhar o material de pesquisa num site acessível ao público, a ideia era essa mesma, permitir às pessoas fazer a sua própria pesquisa também. Viu o filme? Quer ver com mais profundidade o que foi usado no filme? A maior parte do material está lá, links para entrevistas inteiras da Comissão da Verdade, links pra outros documentários que nos inspiraram a fazer o filme... Portanto, a ideia é que as pessoas também possam montar um filme em suas próprias cabeças, acessar documentos, seguir pistas e reconstruir a verdade histórica.

Correio da Cidadania: Sobre esse aspecto de verdade histórica, chama atenção que o filme destaca que este golpe de estado também foi movido por muitas fake news, distorções e discursos de pânicos, de maneira que os atuais mecanismos de desinformação e deturpação da percepção da realidade não são essa novidade toda.

Gabriel Giacomo: É louco isso, né? Porque quando comecei a pesquisar mais a fundo, assistir aos comerciais da época, deparei com muitos argumentos similares às fake news que ajudaram a eleger Jair Bolsonaro, a exemplo do discurso de proteger a família, a pátria, acabar com a bagunça, acabar com a corrupção, enfrentar os comunistas, o que hoje em dia no Brasil não faz nenhum sentido e nunca fez.

Essa argumentação voltar é algo muito maluco mesmo, porque o discurso é muito simples e semelhante, dá até pra traçar um paralelo com os discursos que levaram o nazismo ao poder na Alemanha: combater a corrupção, combater os comunistas, uma característica de todos esses regimes totalitários, que criam uma grande ameaça, um grande inimigo comum que normalmente é sempre fantasioso. Um discurso moldado para unir as pessoas nesse combate ao inimigo, perigo iminente que vai acabar com a nação. É lógico que hoje em dia os meios são outros, na época era uma aliança entre as elites brasileiras e a grande mídia. Eram outras formas de disseminar fake news. Hoje em dia temos as redes sociais, que dão mais autonomia pra disseminação das fake news. Mas elas existiram, cada uma à sua época.

Correio da Cidadania: No dia 15, o Senado promoveu sessão na qual exibiu o documentário Eles poderiam estar vivos, relativo às vítimas da pandemia de covid-19. Depois do revisionismo histórico pró-ditadura, teremos de lutar contra o sufocamento das memórias de quem viveu a covid no Brasil sob o comando de autênticos herdeiros da ditadura militar?

Gabriel Giacomo: Eu acho que sim, já parece claro que esta é mais uma memória que vai ser disputada e, assim como no período da ditadura, se não houver uma punição judicial exemplar aos culpados pela tragédia que foi a condução do antigo governo na pandemia essa memória vai ficar em aberto. Enquanto não acontecer nada a dúvida ficará no ar. Punição será fundamental. Infelizmente, passou muito tempo da ditadura e é cada vez mais difícil conseguir punir os responsáveis, porque os caras estão morrendo. Agora não podemos deixar acontecer o mesmo com os crimes cometidos na pandemia.

Correio da Cidadania: O governo Lula parece representar anseios e lutas sociais que tinham avançado em nossa transição democrática, se traduzido na Constituição de 1988 e, apesar dos limites e frustrações, produziram ao menos uma parte do bem estar social pactuado. Voltamos no tempo? O bolsonarismo e a onda global de extrema-direita nos fazem voltar a velhas trincheiras?

Gabriel Giacomo: É triste isso. Eu realmente concordo com essa noção de que muita coisa parecia superada, discussões já tinham avançado bastante, mas veio o governo Bolsonaro e mostrou que não. O Brasil sempre vai estar em disputa. O que vai acontecer daqui quatro anos, quem vai ser o candidato da direita conservadora?

Eu não sei se algum dia o Brasil será uma democracia sólida com avanços sociais garantidos. Talvez devamos disputar os direitos pra sempre, eles certamente estarão em disputa durante muito tempo ainda, basta ver o enorme retrocesso que o governo Bolsonaro produziu em quatro anos, comparado aos avanços vistos em governos do PT em mais de dez anos. Os retrocessos foram rápidos, a eleição foi apertada, esse caldo bolsonarista ainda não acabou, continuamos a ver um movimento de direita conservadora e mesmo enfraquecida ela está organizada.

Teremos de seguir muito alertas para evitar um novo desastre como foi o governo Bolsonaro. E talvez este tipo de disputa que vimos na última eleição não esteja superado. O Brasil tem muito pra caminhar ainda.

Correio da Cidadania: Você é uma pessoa do campo cultural, que foi um campo de batalha do bolsonarismo, da nova-velha direita, políticas de cultura foram notoriamente esvaziadas, você mesmo mencionou as dificuldades de produzir o filme nesse contexto. Como foi viver o mundo cultural, dos fazedores de cinema ou de outras obras artísticas nesse período de bolsonarismo e quais expectativas se abrem agora com a volta de um governo tido como progressista?

Gabriel Giacomo: Foi muito ruim. Porque o governo Bolsonaro além de acabar com as políticas públicas de incentivo à cultura e ao cinema também iniciou esse movimento que já vinha um pouco de antes, de criminalização dos trabalhadores da cultura de forma geral. E mais uma vez, como no período ditatorial do Brasil, aconteceu a criminalização dos trabalhadores da cultura, chamavam-nos de vagabundos etc. Foi muito difícil, porque realmente parou tudo.

Além da pandemia, houve um esvaziamento dos órgãos públicos. Não acabou a Ancine, mas foi parando, sendo deixada de lado, sem precisar fechar oficialmente. Basta as coisas não andarem, colocar pessoas de confiança na liderança para minar o trabalho do órgão, ao invés de acabar oficialmente e gerar uma polêmica maior. E realmente foi tudo parado. Era praticamente impossível conseguir produzir um filme com recursos públicos, com incentivo do governo, durante esse período.

Com a troca do governo e a volta ao Ministério da Cultura de pessoas mais capacitadas imagino que as coisas voltem a funcionar. Apesar do componente ideológico de Bolsonaro, a cultura também tem o lance de ser uma indústria, gera empregos, contribui para o PIB brasileiro, além da importância de formar a identidade de um povo, trazer lazer às pessoas, gerar recursos. Colocar viés ideológico, como fez Bolsonaro, sobre a cultura é muito equivocado, porque não é só uma ferramenta de formação cultural do povo, mas também de geração de recursos. Sufocou-se uma coisa que também contribui para o crescimento econômico do país.

Correio da Cidadania: E como fazer para ver o filme?

Gabriel Giacomo: Ele vai estrear agora, antes passou por alguns festivais, pela Mostra de São Paulo, Festival de Málaga, Festival de Viña del Mar e estreia nos cinemas dia 30 de março, às vésperas do aniversário do golpe de 1964, que se dá em 1 de abril.

Convido as pessoas a fazer um esforço de assistirem no cinema, para que o filme repercuta mais. Depois de cumprir esse circuito de cinema a nossa ideia é espalhá-lo pelas plataformas digitais e organizar sessões em universidades ou em escolas, onde se possa passar o filme, deixá-lo o mais acessível possível e fortalecer esse debate e a disputa pela memória.


Gabriel Brito é jornalista, repórter do site Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.

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