Correio da Cidadania

Um filmaço para lembrar do colonialismo

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Demorou, mas finalmente pudemos disponibilizar o maior épico da história do cinema: Lawrence da Arábia (1962), um filme tão superlativo que, segundo Steven Spielberg, jamais poderia ser realizado nos dias atuais.

Isto não só por seu astronômico orçamento, como também pela qualidade dos profissionais envolvidos no projeto, desde o elenco estrelar (Peter O'Toole no papel que o tornou um grande astro, mais Alec Guinness, Anthony Quinn, Claude Rains, Jack Hawkins, Omar Sharif, etc.) até os técnicos, passando pelo extraordinário diretor que foi David Lean (Grandes esperanças, A ponte do rio Kwai, Doutor Jivago).

E afora o fato de inspirar-se nas peripécias reais de um dos personagens mais fascinantes do século passado, o arqueólogo, explorador, diplomata, militar, agente secreto e escritor T. E. Lawrence, que foi oficial de ligação entre as tropas britânicas e os revoltosos árabes durante a 1ª Guerra Mundial.

Com seus múltiplos talentos e interesses, Lawrence era o britânico que melhor compreendia os anseios dos árabes, na verdade uma infinidade de tribos nômades que o príncipe Faisal tentava unir para confrontar o Império Otomano.

Como os turcos eram aliados dos alemães, Faisal recebia um reticente apoio da pérfida Albion e dos franceses, que não confiavam naqueles dispersos e indisciplinados combatentes do deserto.

Lawrence, que desde os tempos de arqueólogo simpatizava com a causa que um destino insólito lhe permitia estar defendendo, acaba conquistando a confiança de Faisal e se tornando um trunfo valiosíssimo para popularizar a revolta árabe na Europa, que se deslumbrou com os feitos militares (principalmente em ações guerrilheiras) daquele oficial da rainha vestido à moda árabe.

O filme tem 222 minutos e é de uma beleza estonteante, não se restringindo à escalada de Lawrence, desde seu papel subalterno como oficial britânico até tornar-se um herói de dois continentes. Também mostra as múltiplas contradições a que ele foi conduzido pela crueza da guerra e o seu papel ambíguo dentro dela (servia aos colonialistas, mas tentava arrancar deles o máximo de benefícios para aqueles ao lado de quem lutava).

Acaba vencendo, mas também fracassando: como sempre, os poderosos, depois de outros tirarem as castanhas do fogo por eles, poupando-os de queimarem os dedos, descumpriram suas solenes promessas e Lawrence se tornou um homem amargurado e arredio à notoriedade que conquistara, inclusive graças à sua interessantíssima autobiografia, Os sete pilares da sabedoria.

David Lean consegue colocar na tela todas as nuances da personalidade de Lawrence, algumas explicitamente (como um massacre inútil por ele ordenado, de turcos que debandavam em grande inferioridade numérica), outras de forma velada.

Caso de uma possível homossexualidade do seu herói, que até hoje desperta polêmicas, ainda mais com a descoberta recente de que ele tinha, afinal, uma provável amante.

À maneira discreta dos britânicos, isto fica sugerido no relacionamento de Lawrence com seus dois jovens criados. E, com a mesma delicadeza, o filme não omite, mas também evita mostrar até o desfecho, o episódio de sua prisão pelos turcos, quando foi por eles estuprado, sem nunca ter escondido tal fato (relatou-o no seu livro).

Enfim, é um tipo de filme multifacetado, no qual cada pessoa, de acordo com seu nível de informação e sua sensibilidade, ou encontra as peças de um painel riquíssimo sobre um grande homem e sua época, ou apenas uma aventura que, embora pareça inverossímil, aconteceu mesmo, embora nem sempre exatamente como é mostrada.

Afinal, não se trata de um documentário, mas sim de um filmaço, destinado a um público infinitamente maior e, ademais, com uma inteligência que as superproduções atuais desistiram de sequer tentarem atingir.

Celso Lungaretti é jornalista e ex-preso político.
Blog: Náufrago da Utopia.

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