Catástrofe climática e o Jornalismo de Ocorrência em Santa Catarina
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- Miriam Santini Abreu
- 24/05/2024
Capa do caderno do Grupo NSC
A proporção da catástrofe que se abate sobre o Rio Grande do Sul provoca uma pergunta: como Santa Catarina se prepara, levadas em conta suas próprias características socioespaciais, para enfrentar as consequências das mudanças climáticas? Procura em vão quem busca respostas nos grupos de mídia do estado. Esses grupos, organizados em associações, tecem seus interesses com as estruturas do estado, irrigando-se de dinheiro público e privado para fazer cada vez menos jornalismo.
Parte expressiva do que virou a dita cobertura jornalística no estado vive de divulgação de BOs, os Boletins de Ocorrência. É um Jornalismo de Ocorrências, em que inexistem conexões entre elas e outras noticiadas antes ou depois, desprezando a compreensão de que não basta, no processo de mediação jornalística, limitar-se a ininterruptamente noticiar fatos sem inseri-los na totalidade dos fenômenos dos quais fazem parte e que os explicam.
A catástrofe no Rio Grande do Sul foi capa, por exemplo, do caderno do Grupo NSC (11 a 17 de maio) em abordagem previsível, a solidariedade:
A SOLIDARIEDADE CATARINENSE
Santa Catarina se une para ajudar as vítimas da catástrofe climática que devastou o Rio Grande do Sul, deixou mais de 100 mortos, milhares de desabrigados e centenas de cidades tomadas pela água.
Quem estuda análise de discurso sabe que os sentidos se movimentam. Por vezes, uma mesma palavra, por estar inserida em diferentes formações discursivas, pode significar diferente, como no caso da palavra “terra” no discurso de um sem-terra ou de um latifundiário. Em outras vezes, palavras diferentes podem ter o mesmo sentido por se inscreveram em uma mesma formação discursiva. Isso é ilustrativo na pesquisa de MARIANI (2001) sobre os sentidos da solidariedade na mídia impressa. Ela verificou que a palavra forma uma rede parafrástica (de paráfrases) que inclui “caridade”, “ajuda” “filantropia”, “novas faces do bem” e “mão estendida”. Apesar de serem palavras diferentes, a autora observa que na mídia o que pode resvalar para a produção de diferentes eleitos de sentidos muitas vezes se fecha em sentidos atomizados, produzindo ilusões de consenso social (p. 43).
De modo geral, as coberturas sobre o Rio Grande do Sul mostram a ação dos solidários e solidárias e a ininterrupta videoteca da tragédia cotidiana nas cidades gaúchas destruídas. Mas por que a catástrofe ocorreu na relação com sucessivos crimes ambientais? Quem são os responsáveis? Leitores, ouvintes e telespectadores não terão respostas satisfatórias nesses grupos de mídia.
Essa ausência, na perspectiva de Santa Catarina, grita em um exemplo impactante. Uma notícia de fevereiro passado no site do Tribunal de Contas de Santa Catarina revela que cerca de 3 mil áreas de 100 municípios do estado têm maior risco de deslizamentos de solo e de inundações (1). O levantamento realizado apontou o seguinte:
– ausência de órgãos de proteção e defesa civil formalizados em 13 deles
– ausência de Fundo Municipal de Proteção e Defesa Civil (Fumdec) em 49 municípios
– ausência de Plano Municipal de Contingência (Plamcon) em 34
– ausência de locais cadastrados para uso como abrigos em 31 cidades
– 79 não realizam exercícios simulados conforme o Plamcon, ou seja, apenas 19 realizam
– ausência de canais de comunicação com as famílias que residem em áreas de risco em 55 municípios
– 74 municípios com áreas de risco mapeadas afirmaram não possuir cadastro das famílias residentes em áreas de risco
– ausência de fiscalização periódica das áreas com riscos de desastres por 36 cidades
– 72 municípios disseram que o art. 42-A da Lei 10.257/2001 — Estatuto da Cidade — não foi observado na edição ou na revisão do Plano Diretor.
A notícia foi reproduzida de forma protocolar em sites noticiosos de Santa Catarina. Os dados não mereceram investigação, e são ainda mais alarmantes quando associados a um fato divulgado no “SC em Pauta” em 22 de fevereiro de 2024: mesmo sendo um estado propenso a diversos eventos climáticos extremos, Santa Catarina não tem um quadro efetivo na Defesa Civil. O órgão é formado basicamente por comissionados, terceirizados e alguns servidores cedidos, sendo nomeados como cargo de confiança (2).
Estão aí aspectos da pauta até agora invisibilizada nesse Jornalismo de Ocorrências. E isso sem contar o papel de Santa Catarina na destruição da legislação ambiental federal, iniciada nos mandatos do governador Luiz Henrique da Silveira, analisada brevemente em artigo intitulado “Código Florestal Brasileiro e Código Ambiental de Santa Catarina: legislação a favor do lucro” (3). Assim como fez o Rio Grande do Sul, Santa Catarina alterou o Código Ambiental em 2009 e em 2022. Uma análise dos retrocessos do novo código pode ser lida na página da Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida (Apremavi) (4).
O resultado dessas mudanças aparecerá. E pegará a população (e o jornalismo) de surpresa.
A situação da mídia em Santa Catarina
Não há um diagnóstico recente e público da mídia em Santa Catarina para permitir uma análise mais detalhada e de interesse para jornalistas, professores e estudantes de jornalismo e interessados no apagão de coberturas fundamentais para o estado. Uma parte do diagnóstico aparece em artigo de Giovanni Ramos e Magali Moser, de junho de 2023, intitulado “O triste fim dos três grandes jornais catarinenses” (5). Ele mostra como sucumbiram três marcas regionais históricas: Diário Catarinense, A Notícia e Jornal de Santa Catarina.
Há um aspecto da realidade regional que merece pesquisa profunda: o montante de recursos públicos que jorra para a Acaert (Associação Catarinense de Emissoras de Rádio e Televisão) e a Associação dos Jornais do Interior de Santa Catarina (Adjori-SC). A Acaert representa 260 emissoras de rádio e 24 emissoras de televisão associadas, congregando 100% das emissoras comerciais e educativas de Santa Catarina. A Adjori tem 104 empresas jornalísticas associadas, circulando em praticamente todos os 295 municípios de Santa Catarina.
Entre 2017 e 2019, foi criada e vendida como a maior campanha social de Santa Catarina a campanha da Acaert JEITO CATARINENSE, que mobilizou milhares de catarinenses em torno dos conceitos básicos de “cidadania”. A iniciativa contou com a parceria de instituições públicas e privadas tendo com um dos temas principais a campanha A FAVOR DA REFORMA DA PREVIDÊNCIA (6). A reforma perversa, no governo Bolsonaro, atendeu ao interesse empresarial e tem seus efeitos apresentados em uma série de artigos disponíveis para consulta na internet.
Entre 2020 e 2022, a Acaert assinou convênio inédito com o Tribunal de Justiça, o Ministério Público e o Tribunal de Contas, além da manutenção e aprimoramento do convênio com a Secom (governo do estado) e a Assembleia Legislativa (Alesc). Ou seja, há um enlaçamento da Acaert com todas as estruturas de poder do estado.
Para compreender o tamanho desse enlaçamento, um exemplo foi a renovação, em 2020, do convênio Alesc e Acaert para divulgação de notícias do Legislativo em todas as emissoras de rádio e televisão do estado.
O contrato está disponível em link no final deste artigo (7). Ele não menciona valores, mas basta uma procura rápida no site da Alesc para localizar centenas de contratos. A palavra “rádio” traz 41 páginas com contratos (8). Algumas perguntas merecem resposta:
- Quanto somam os contratos ao longo de cinco anos de repasses para um convênio no qual a Acaert indica os beneficiários?
- Quanto a Alesc destina para veículos consolidados de mídia independente e fora da alçada da Acaert e da Adjori, como, em Florianópolis, por exemplo, o Portal Desacato e o Portal Catarinas?
Ou o dinheiro que irriga Francisco para defender a Reforma da Previdência não irriga Chico para mostrar seus efeitos nefastos?
Além dessas indagações, seriam relevantes análises sobre o conteúdo do material produzido pela Alesc distribuído por essas rádios e sobre o conteúdo geral produzido por elas. Se existem, não foram localizados. Mas um rápido giro pelo noticiário dessas rádios revela que, do ponto de vista jornalístico, não respeitam sequer a regra mais básica do jornalismo liberal, que é “ouvir o outro lado”, cotidianamente criminalizando as lutas populares e sindicais. Estão aí tema gritando por pesquisas de mestrado e doutorado.
É importante destacar que os grupos de mídia catarinense também recebem recursos públicos vindos das prefeituras para divulgação dita institucional, montante igualmente desconhecido.
Não nos enganemos. O cenário aqui esboçado é um projeto gestado e cuidadosamente mantido por quem lucra com a mentira e a desinformação. Resta-nos revelar o que se vê pelas frestas. E recordar das palavras do jornalista Marcos Faerman, sempre:
Manifesto de libertação da palavra
A busca de uma realidade exige uma linguagem capaz de captá-la. Esta linguagem não é uma fuga. É o único caminho para nos levar à débil captação de uma sociedade e de suas contradições. E da única coisa que interessa: o ser humano sufocado em sua vontade de ser.
Notas:
1) https://www.tcesc.tc.br/levantamento-do-tcesc-revela-que-municipios-catarinenses-com-areas-de-risco-de-deslizamentos-e
2) https://scempauta.com.br/2024/03/22/mp-pede-explicacao-sobre-servidores-da-defesa-civil-governo-pagara-gratificacao-a-quem-atuar-na-dc-ub-se-aproxima-do-pl-em-blumenau-entre-outros-destaques/
3) https://ojs.sites.ufsc.br/index.php/rebela/article/view/2770
4) https://apremavi.org.br/mpsc-ajuiza-acoes-para-impedir-alteracoes-no-codigo-ambiental-de-sc/
5) https://objethos.wordpress.com/2023/06/15/o-triste-fim-dos-tres-grandes-jornais-catarinenses/
6) https://www.acaert.com.br/noticia/39317/acaert-lanca-campanha-em-favor-da-reforma-da-previdencia-no-estado-e-nos-municipios-catarinenses
7) https://spectro.alesc.sc.gov.br/contratos/contrato/2626/download
8) https://transparencia.alesc.sc.gov.br/contrato.php? pagina=1&ano=&numero_contrato=&objeto=&contratada=r%E1dio&cpf_cnpj=&status=&tipo_contrato_id=&modalidade_id=Todas&valor_min=&valor_max=
Referência:
MARIANI, Bethania. Questões sobre a solidariedade. In: ORLANDI, Eni P. (Org.). Cidade atravessada. Os sentidos públicos no espaço urbano. Campinas: Pontes, 2001.
https://iela.ufsc.br/catastrofe-climatica-e-o-jornalismo-de-ocorrencia-em-santa-catarina/
Miriam Santini de Abreu é jornalista, geógrafa e professora da UFSC.
Publicado originalmente no site do Instituto de Estudos-Latino-Americanos da UFSC.
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