Centenários I: as escrituras de João
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- Maria Clara Lucchetti Bingemer
- 21/07/2008
Este ano de 2008, tão pródigo em más notícias de violência e corrupção, traz, porém, motivos sobejos para celebrar alguns centenários ilustres. Esta coluna se dedicará a fazê-lo durante as próximas segundas-feiras. Esta é a primeira de uma série de homenagens que queremos prestar a alguns que tornaram o Brasil e o mundo mais bonito.
Para falar de João Guimarães Rosa – o primeiro homenageado - imperioso é voltar a ‘Grande Sertão: Veredas’, considerado por muitos críticos e escritores a obra maior em romance da literatura brasileira, que tem sido objeto de reflexões várias, provindas de diferentes campos e áreas do saber. De parte de escritores brasileiros de primeira grandeza, Grande Sertão tem sido louvado em todos os tons, comparado mesmo à Bíblia pela grande poeta mineira Adélia Prado: "Tudo é bíblias. Tudo é grande sertão."
A saga do jagunço Riobaldo tem tido várias interpretações por parte de muitos estudiosos que se debruçaram sobre a obra-prima de Guimarães Rosa. Riobaldo aparece como o protótipo do ser humano que se debate durante toda a sua vida entre o bem e o mal, entre a graça e o pecado, entre Deus e o diabo. Ao longo deste embate, que tem a forma exterior da violência e da brutalidade, da jagunçagem e seu cheiro de morte, entremeada e atravessada pelo amor e pela beleza e o desejo da santidade, Riobaldo faz na verdade a viagem – travessia – ao fundo de si mesmo e encontra o outro, e faz uma aproximação conclusiva com o mistério de Deus e do ser humano. No entanto, o demônio ronda e se faz presente.
Rosa descreve aí a atitude do ser humano criado e limitado, diante da epifania do Absoluto que se reveste de mediação ao alcance dos sentidos, sente atração irresistível e temor irrefreável. Qual novo Fausto, Riobaldo parte para o combate com a convicção de que o diabo o levará à vitória. O sertão, o grande sertão, é seu deserto, onde a luta decisiva é travada. Mas nesse deserto ele encontrará não o sem sentido, mas veredas, caminhos, trilhas onde pisar. Ao se encaminhar para a batalha final, mal sabe que o quê ali o espera não é a vitória da jagunçagem, mas a revelação dramática do amor.
Essa travessia por dentro do misterioso amor que só mostra seu verdadeiro rosto na morte terá como conseqüência a percepção, por parte de Riobaldo, de que o demônio como síntese do mal em sua essência é nada. Sendo ou pretendendo ser anulação do ser, o demônio propriamente não existe. Riobaldo, que no começo do livro afirma já ter perdido a crença no demônio, acabará afirmando que o diabo não passa de um estado de espírito do próprio ser humano. O diabo será o avesso e o ruim do humano. Sem as maldades do próprio homem não há demônio! Morada da eterna luta entre bem e mal, pecado e graça, o ser humano do qual Riobaldo é protótipo segue seu caminho pelo grande sertão que é a vida, escolhendo que veredas tomar na sua viagem em busca do sentido, de resposta para suas indagações.
Parece que Guimarães Rosa disso sabe bem, ao escrever seu magnífico romance, que situa a origem do mal no interior obscuro do próprio ser humano ou nas forças sociais de domínio por ele criadas. No fundo, o pacto com o diabo é estratégia do romancista para afirmar sua não existência e responsabilizar o ser humano pelo que acontece no mundo que lhe foi dado pelo Criador e que ele é, por Este, chamado a transformar. Por tudo isso e muito mais, é digno e justo celebrar Guimarães Rosa, esse gênio maior das letras, no ano de seu centenário! Amém!
Maria Clara Lucchetti Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, além de autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor" (Ed. Rocco).
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