... De fome um pouco por dia...
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- Maria Clara Lucchetti Bingemer
- 25/11/2008
Antes que o ano apague as luzes, é digno e justo reverenciar mais um centenário, que inexplicavelmente esteve um tanto discreto, para não dizer ausente, quase ignorado, da mídia e do proscênio da vida social brasileira. Há cem exatos anos nascia no Recife, no coração do Nordeste brasileiro, aquele que seria o maior pensador sobre a manifestação mor da injustiça sócio-econômica em nosso país: a fome.
Josué de Castro – esse é seu nome – aprendeu em seu Nordeste natal como essa grande predadora que é a fome lentamente corrói a dignidade humana e vai transformando o ser humano em bicho, em animal. Pernambucano, foi no Rio de Janeiro que Josué de Castro concluiu sua formação em medicina. Logo em seus primeiros anos de formado, entendeu que "a fome" - essa força viva que destrói e mata - estava presente na vida de grande parte da população brasileira. E a ela dedicou o melhor de seu talento, sua formação. Foi a fome sua escolha como ser humano e como cientista. A pensá-la, denunciá-la para combatê-la.
Olhando o monstro de perto, Dr. Josué percebeu que não era produzido pela natureza, mas sim, tristemente, pelos humanos. Contrariando o pensamento então dominante nas ciências biomédicas, realizou uma pesquisa e empreendeu um trabalho científico que "desnaturalizava" a fome. Ou seja, explicava e afirmava que a fome não dependia do clima, nem das condições da natureza. Era, pelo contrário, fruto de ações humanas, de suas opções, da política econômica que rege países, regiões, sociedades. Isso constituía o tema central de seu famoso livro "Geografia da Fome".
Por haver denunciado a fome como flagelo fabricado pelos homens contra outros homens e pesquisar suas causas e injunções, Josué de Castro teve seus direitos políticos cassados pelo regime militar que governou o Brasil a partir de 1964. Exilou-se em Paris, onde passou a lecionar na Sorbonne. Na capital francesa, morreu em 1973, sem ter nunca mais voltado vivo ao seu país e sem ter sido oficial e nominalmente anistiado e reintegrado à plenitude de sua cidadania brasileira.
A fome é, afirmava o grande cientista, a expressão biológica de males sociológicos. Está intimamente ligada às distorções econômicas, às injustiças estruturais, que fazem com que se forme uma verdadeira indústria da injustiça, alargando os bolsões de pobreza e concentrando as riquezas nas mãos de uns poucos, enquanto outros não possuem nem o necessário para comer e sustentar as forças do corpo.
Em seu livro "A descoberta da fome", publicado em Lisboa, em 1966, Josué de Castro dá esse impressionante depoimento, que fala com clareza até onde vai sua estatura de ser humano e cientista: "Não foi na Sorbonne, nem em qualquer outra universidade sábia, que travei conhecimento com o fenômeno da fome. A fome se revelou espontaneamente aos meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis do Recife - Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite. Esta foi a minha Sorbonne. A lama dos mangues de Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejo... São seres anfíbios - habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos. Alimentados na infância com caldo de caranguejo - este leite de lama -, se faziam irmãos de leite dos caranguejos..."
"Foi assim", continua Josué de Castro, "que senti formigar dentro de mim a terrível descoberta da fome." Tal como outro recifense, nascido mais tarde, igualmente genial e lúcido, mas homem de letras e não de ciências (João Cabral de Melo Neto), Josué de Castro nos legou a consciência do imenso e profundo pecado estrutural que é chaga na carne brasileira: a fome e a miséria, a vida Severina, que morte é "de emboscada antes dos 20, de velhice antes dos 30, de fome um pouco por dia".
Possa seu centenário ser ocasião de recordar seu pensamento e aplicar suas lições. Possa o Brasil erguer a cabeça fora da lama onde ainda chafurda, apesar de todos os passos que deu. Possa a memória de Josué de Castro fazer com que o flagelo da fome seja algo definitivamente erradicado do nosso meio quando avançamos já pelo século XXI.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio e autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), e outras obras.
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