Correio da Cidadania

Ibsen às avessas

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Saindo de um belo evento sobre gênero e libertação da mulher, a partir da famosa peça de teatro do norueguês Henrik Ibsen, "Casa de bonecas", deparo-me com chocante notícia no jornal. Uma mulher revela ter sido violentada repetidas vezes por um estranho que entrava cada noite em sua casa, aproveitando-se do fato de morar sozinha com os filhos. Com medo de ser morta, com medo de que os filhos acordassem e sofressem violência, ela nada dizia e suportava a tortura até que o agressor cansou-se e partiu.

 

A peça de Ibsen representa um marco na história da emancipação da mulher. Nora é casada com Torvald, um bem-sucedido advogado. Dona de casa e mãe de família, Nora é a típica mulher burguesa mimada pelo marido como boneca e posta à margem de todo e qualquer envolvimento com a realidade da vida e do mundo. Figura emblemática, enfeite bonito feito para divertir o dono, um dia Nora se dá conta de sua situação e rebela-se. Deixa a casa e a família, e sai para o mundo. Ibsen não nos conta o que foi feito dela.

 

Nora cansou-se de ser figura emblemática, enfeite e objeto de deleite visual e sexual. Cansou-se de ser mantida à margem da vida. Cansou-se de perceber que o marido não a respeitava, não a tratava como companheira. Cansou-se de viver com alguém que até então não havia percebido ser um estranho.

 

A irmã de Nora, anônima que não ousa revelar seu nome ao jornal que a entrevista, morava sozinha com os filhos. Não existia marido, não havia homem em seu universo. E por isso, avalia ela, o agressor sentiu-se à vontade para entrar em sua casa e abusar de seu corpo, submetendo-a à violência do estupro. Mais: por não haver homem para defendê-la, o agressor voltou uma noite após a outra, ao longo de vários dias, só indo embora e deixando-a em paz quando se cansou de usá-la.

 

Após o tempo de Nora, muita coisa mudou. A mulher foi fazendo lentamente sua passagem do espaço privado para o público. Abriu brechas no mercado de trabalho, disputou e entrou. E foi bem-sucedida. Hoje, muitas profissões outrora consideradas masculinas têm maioria de mulheres. A mulher conquistou o espaço público, sem deixar o doméstico.

 

Como conseqüência, a família mudou de configuração. Começaram a aparecer cada vez mais as famílias incompletas, famílias com núcleo em desagregação e, bem numerosas, famílias onde a mulher é cabeça de casal. Nestas, muitas vezes, o homem está ausente. Foi embora ou foi mandado embora e é a mulher que arca sozinha com o sustento da casa e a guarda dos filhos. Outras vezes, porém, o homem está presente. Mas como figura emblemática. Como enfeite e objeto identificador.

 

Emblema de que será esse homem, destruído pelo alcoolismo, humilhado pelo desemprego, que em nada ajuda e é apenas um peso a mais nos ombros dessa mulher que já tem que arcar com tão pesado cotidiano? Emblema da força que representa o masculino em um universo ainda machista e patriarcal. Se naquela casa morasse um homem, mesmo fraco, pusilânime, inexpressivo, a mulher não seria molestada pelos vizinhos ou por algum estranho que lhe invadisse a casa na calada da noite para satisfazer violentamente sua sexualidade frustrada.

 

Trata-se do universo de Ibsen invertido e pervertido. O homem é figura decorativa para proteger a mulher da agressão de outros homens. Enquanto Nora é a boneca com que o marido brinca e se distrai, o homem muitas vezes é o artificial escudo da mulher contra a violência que a ameaça constantemente.

 

Triste sociedade esta em que vivemos, onde o processo de emancipação da mulher cresce constantemente agredido pela violência masculina que não diminui. Triste sociedade onde homem e mulher, criados para o amor e a fecundidade, são tantas vezes inimigos que devem defender-se um do outro a fim de sobreviver. Mais de um século depois, Nora continua sendo um símbolo motivador para as mulheres que desejam encontrar-se como pessoas. Porém, muitas irmãs de Nora ainda sofrem caladas as conseqüências de ser quem são, sem encontrar a saída que as introduzirá no mundo encantado da liberdade.

 

Maria Clara Lucchetti Bingemer é autora de "Simone Weil - a força e a fraqueza do amor", Editora Rocco (http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape).

 

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Comentários   

0 #2 O difícil relacionamento entre os civiliMarta Aparecida Camilo 12-12-2008 13:03
O quadro pintado sobre o relacionamento homem e mulher, além de complexo (envolvendo fatores convencionais, tradicionais, sentimentais, emocionais, comerciais, conveniências e até fatores políticos), não é isolado dos demais contextos do mundo civilizado. Os problemas que o conjunto denominado civilização já enfrentou, enfrenta e que, em minha opinião, continuará enfrentando até sua completa extinção, caso não mudem as atitudes, estão relacionados com a nossa opção de abandonar a natureza: opção feita há muito tempo. Ou seja, civilizamos e deixamos de ser selvagens, nos primórdios do “Velho Continente”, o europeu. Nessa transposição de modo de viver, comportar e pensar, porém, no mesmo corpo biológico, travou-se uma intensa luta contra os instintos naturais, e contra a própria natureza e suas leis. Tais instintos que entre os selvagens, sendo eles animais irracionais ou humanos, são regulados ou dosados pelas leis da natureza, atingindo assim o equilíbrio entre os membros de uma população.

Nós que escolhemos ser “civilizados” arcamos com a administração de toda a complexa produção de um mundo para substituir o natural. Este mundo onde foi preservado apenas o instinto natural da competitividade, vem sendo edificado ou, sob outro ponto de vista, “demolido” exclusivamente pelas mãos humanas e apenas sob o comando de nosso raciocino: uma evolução estranha, pois não consegue atingir um ponto de equilíbrio, já que está sempre cometendo erros absurdos cada vez que parte para novas descobertas e inventos.
Nosso mundo “civilizado”, que é feito de compromissos, horários, produção de bens e consumo desnecessário, exigem substituições e aperfeiçoamentos constantes, além da necessidade infinita de novas tecnologias.
Com tal modelo de vida, esbarramos na necessidade de sacrificar alguns de nós, utilizado-se desses como ferramentas de produção, escudo ou amparo. Exemplos disto são os países economicamente e tecnologicamente mais evoluídos que exercem seus domínios sobre outros que não se prepararam da mesma forma, e isto para ocupar posição mais seguras e confortáveis, obtendo, ainda, matéria para seu consumo cada vez maior (Primeiro Mundo escraviza o Terceiro); numa sociedade o rico faz de tudo para criar e manter a classe de pobres, obtendo desta a prestação de serviços a preços vantajosos; na família, o homem, ainda, por forças das convenções e pela força física, impõe seu jugo sobre a mulher.

Somem-se a este mundo, civilizado só para nós, todos os desvios de condutas que ele gerou através do modelo escolhido para viver, e o resultado é a falta de acordo e paz desde o nível familiar até ao nível das relações internacionais entre os continentes e países.
Desavenças que emergem de um mundo patológico, pois todo ser vivo tem seus limites físicos e emocionais. E quando estes limites são extrapolados surgem as patologias ou fruto do desequilíbrio. Entre os humanos, o gênero masculino parece ser mais vulnerável às patologias geradas a partir da “civilização”. Pelo menos isto é o que têm mostrado as estatísticas.
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0 #1 Ibsen TraídoRaymundo Araujo Filho 04-12-2008 12:08
Dizem que a Vida Imita a arte. Mas também, e com maior freq6uência a trai.

Ibsen, como tantos outros artistas geniais, faziam a crítica da sociedade, pocurando apontar para um mundo melhor. Mesmo quando suas obras encerram uma projeção pessimista ou trágica.

Lamentavelmente, a emancipação da mulher com o ser, foi tranformada apenas em mera inclusão da mulhes no Mercado de trabalho. E a preço menor. Aqui, o nosso mestre agiu como o rotagonista de outra peça sua, O Inimigo do Povo. Crente que estava a alertar e denunciar uma situação opressiva, apenas possibilitou que os que lucravam com ela, se estabelecessem melhor, e ainda o alijando da sociedade.

Esta é a traição que a Vida fez a Arte deste libertário que foi o genial tetrólogo norueguês Henrick Ibsen
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