Carbonara sí! Paçoca, não!
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- Florense Carboni
- 28/05/2007
É preparada com pedacinhos de bacon ou toucinho, pouco gorduroso, defumado ou não, refogados em fogo brando, com um dente de alho amassado, retirado antes de a preparação ser misturada aos ovos inteiros e batidos, aos quais se junta um pouco de sal, pimenta e queijo seco – parmesão ou pecorino –, ralados no ato. O molho será acrescentado à massa bem quente, recém escorrida, cujo calor cozinhará a mistura dos ovos crus. Ao final, agrega-se um pouco de azeite de oliva extra-virgem, que não deve ir ao fogo para não perder o aroma e gosto. O prato é servido bem quente, com derradeira camada de pimenta do reino, moída na hora, que, pela cor negra de carvão, teria dado o nome à pasta alla carbonara.
O prato varia em função das regiões da Itália, dos restaurantes, das cozinheiras. Alguns preferem o toucinho da barriga do porco – a pancetta –, outros, um bacon preparado com a carne das bochechas e do pescoço do animal – o guanciale. Há os que defendem que o toucinho defumado dá mais sabor ao molho, outros, que o preferem salgado e só levemente defumado. Os ovos são também motivo de polêmica: uns mandam utilizar apenas as gemas; outros, também as claras, total ou parcialmente. É forte o partido dos que juram que acrescentar creme de leite constitui heresia digna de excomunhão papal!
Origem, a versão masculina
A origem da massa à carbonara provoca discussões intermináveis, como habitual em muitas receitas do Bel Paese. Diz-se que o prato simples foi inventado pelos produtores do carvão vegetal – carbonai – que, permanecendo longos períodos nos bosques, serviam-se da praticidade de alimentos pouco perecíveis, o toucinho e a massa. Há os que defendem que o inventor seria um membro do grupo dos carbonari, revolucionários libertários, liberais e anti-clericais, que lutaram nas guerras de independência e na unificação italiana.
Uma versão pretende que o prato teria sido involuntariamente inventado no final da II Guerra por soldados estadunidenses estacionados em Roma. Saudosos do bacon and eggs dos Estates, pediam nas tratorias toucinho, ovos estrelados e espaguetes sem molho. Reunidos e amalgamados no mesmo prato, os diversos componentes teriam originado a famosa massa. Essa explicação é improvável, pois um livro de cozinha, de 1837, do napolitano Ippolito Cavalcanti, apresenta uma receita semelhante à hoje famosa carbonara.
Monumento à cozinheira anônima
A origem da receita importa pouco e são irrelevantes as variações circunstanciais que cada buongustaio italiano ou estrangeiro traz ao prato. É mais provável que, como muitos outros pratos simples, a carbonara tenha surgido em diversos momentos e lugares, no fogão anônimo de mamme ou nonne com vontade de levar algo de novo à mesa familiar, com os ingredientes simples de que dispunha. Também na história da cozinha, perdem força as teorias providenciais, elitistas e difusionistas.
O interessante é que a massa à carbonara, como outros pratos de pastasciutta, que conheceram nas últimas décadas grande sucesso mundial – à amatriciana, à puttanesca, ao pesto, aos quatro queijos etc. –, constitui uma receita de simples e de rápido preparo, com ingredientes baratos, fáceis de encontrar e de longa conservação. Ingredientes que se combinam tão bem que, como o queijo e a goiabada, parecem terem sido feitos uns para os outros.
Mais uma triste aventura
Em razão da simplicidade, para evitar surpresas desagradáveis comuns ao escolher pratos italianos fora da Itália, pedi massa à carbonara, em um iluminado restaurante de agitada rua da Cidade Baixa, em Porto Alegre. Confesso que não respeitei o aviso premonitório gritante da duvidosa decoração étnica, com o tradicional verde, branco e vermelho e os já habituais tijolos à vista, impossíveis de se encontrar no interior das moradias camponesas italianas, por mais pobres que sejam. Tijolos à vista aos quais, nesse caso, foram agregados caibros oblíquos, em enxaimel, típicos da arquitetura alemã!
A decepção gastronômica chegou-me ao cérebro pelos olhos e foi logo reforçada pelos outros sentidos. Uma cena quase dantesca! Um triste amontoado de espaguetes gritava sufocado debaixo de uma espessa camada de algo indefinido de onde emanava soberano um cheiro de mortadela com lingüiça, talvez misturadas ao toucinho. O contato da preparação estranha com os dentes, língua e palato foi também lancinante.
O cozimento exagerado da massa não permitia que ela fosse mordida e mastigada. Portanto, não se tinha contato suficiente com ela para apreciar o seu gosto nem o do molho que deveria envolvê-la. A frustrante experiência gastronômica resumiu-se a ingerir uma espécie de paçoca que poderíamos decompor do seguinte modo: espaguete esbranquiçado, com molho decomposto em uma camada de toucinho, mortadela e lingüiça, por cima, e em outra, de ovos coagulados, no fundo da tigela, mergulhados na água da massa mal escorrida.
Sucesso internacional
Nos últimos anos, a gastronomia italiana suscita uma grande atração no mundo, não apenas devido à presença maciça de descendentes da grande emigração dos séculos 19 e 20. Países como a Alemanha, a Irlanda, a Polônia, que forneceram importantes fluxos migratórios, não têm sua gastronomia nacional tão apreciada como a itálica. Nas últimas décadas, a comida italiana tende a suplantar mundialmente até mesmo a francesa, caracterizada por seu elitismo, histórica e ideologicamente muito dependente da cozinha real da Ile de France.
Talvez explique o sucesso italiano o fato de que sua tradição culinária se ligue mais à mesa do nascente mundo burguês do Renascimento, como o da corte dos Médicis de Florença, que se apoiava nos produtos locais e reinterpretava usos populares, adaptando-os a palatos já mais refinados. Uma gastronomia de preparo simples, condizente com o mundo moderno. Em alguns minutos, sem grandes segredos, prepara-se um bom e generoso prato de massa, simples ou mais complexo.
Mil gostos
É grande a diversidade da culinária regional italiana. No Sul e em Roma, preferem-se massa seca e molhos a base de tomate. O Centro montanhoso aprecia os produtos da caça. Ao contrário, o Centro-Norte venera as massas com ovos, trabalhadas e recheadas, enquanto as regiões do litoral optam por pratos à base de produtos do mar.
Finalmente, o Norte, com grande influência bárbara, cozinha à base de manteiga, para horror do Sul e do Centro-Sul, que preferem a morte sob tortura a cozinhar sem azeite de oliva.
Apesar dessa multiplicidade, nas diversas classes sociais, a culinária italiana tende hoje a simplificar-se. Pouca mistura de ingredientes, pouco cozimento, tudo com produtos locais genuínos e frescos. Poco ma buono! A preparação de um prato de massa à carbonara – com espaguetes ou penne; com guanciale ou pancetta; com ou sem creme de leite – não requer grande maestria. A atração que a gastronomia itálica suscita deve-se também a gostos e aromas autênticos que satisfazem os sentidos e evocam a beleza e a harmonia da paisagem e da arquitetura italianas e, por que não, o carisma de sua gente.
Il mondo gira
Hoje, cada vez mais, o grande problema de parte da humanidade é o excesso e não a falta de comida. A lógica do capitalismo faz a agroindústria produzir alimentos baratos e saborosos, manipulando a natureza de maneira despreocupada com a saúde dos consumidores de hoje e de amanhã. Após os avanços que a gastronomia conheceu, também devido aos progressos no conhecimento da química, da natureza, do corpo humano e de seus centros de prazer, estamos regredindo a estágio em que apenas alguns poucos eleitos saberão comer e beber bem, enquanto a grande massa deglutirá qualquer coisa passavelmente comestível.
Cozinhar deve permanecer uma prática artesanal. Como em toda arte, a invenção e a reelaboração da tradição são legítimas e necessárias. A gastronomia, como arte, diferencia-se fundamentalmente da pintura e da escultura, onde a essência da criação situa-se mais na simbolização do que na matéria que utiliza. Na gastronomia, devem ser respeitados princípios fundamentais, que são vinculados aos ingredientes e à sua combinação, que, por sua vez, remetem, de modo essencial, a um contexto biológico e histórico.
Churrasco pra gringo ver
Abrir uma churrascaria em Milão e servir camarões no espetinho aos gringos seria visto pelos rio-grandenses como um desrespeito à tradição pampiana, mesmo que o rio-grandense não tenha nada contra camarões grelhados. Seria porém um afronta total se a churrascaria putativa apresentasse – e cobrasse – como o mais tradicional churrasco gaúcho, carne dura, queimada e apimentada!
Não há problema se, no silêncio das cozinhas, anfitriãs, anfitriões e gastrônomos amadores apliquem sua criatividade revisionista a pratos de todo o mundo. Motivarão no máximo desprazeres gustativos e digestivos aos seus, esperamos, educados convidados. O restaurante – lugar público –, sobretudo quando se declarar especializado em uma tradição culinária, tem de tratar com respeito a produção e a tradição que promete seguir. Carbonara, si! Paçoca, não!
Florence Carboni, 55, italiana, é lingüista e professora da UFRGS. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
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