Correio da Cidadania

Depois de 1848, nada novo (3)

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Positivismo e neopositivismo versus materialismo histórico dialético

 

Uma tarefa a que Comte se propôs, classificar as ciências, apresentou num Curso de Filosofia Positiva em Auguste Comte (1798-1857), em Paris (1826), publicado em forma de livro (1830). Apoiou-se nos sábios franceses, nos matemáticos La-grange, d'Alembert, Fourier e Gauchu, no geômetra Monge, nos físicos Biong, Dulong e Ampère, nos astrônomos e matemáticos Laplace e Arago, nos químicos da escola de Lavoisier e Berthollet (dentre eles Gay-Lussac), nos biólogos e naturalistas Buffon, Lamarck, Etienne Geoffrey Saint-Hilaire, Cuvier, de Blainville etc., todos seguidores dos fundamentos de Descartes.

 

Recusando princípios subjetivistas, Comte pensava dever-se buscar resposta quanto a como se produzem os fenômenos e não a por que se dão os fenômenos. Para sua classificação, respeitava que a dependência entre as diferentes ciências se determina pela dependência existente entre os fenômenos do mundo externo ao pensamento. Dependência a ser determinada a partir da observação, não de uma conceituação apriorística. Por este princípio, Comte chegou a 6 ciências gerais: a matemática, incluindo a mecânica; astronomia, física, química, fisiologia e sociologia.

 

Após caracterizar as ciências decorrentes das gerais, viu-se ante o problema de agrupá-las em série, numa lógica precisa. Essa pretensão de resultado lógico, para Comte, deveria apelar ao conhecimento histórico. Mas ao passo que a ciência faz progressos, a ordenação histórica torna-se impraticável e cede à lógica:

 

Eu penso mesmo que não se conhece plenamente uma ciência sem conhecer sua história. Mas esse estudo deve ser feito totalmente separado do estudo próprio e lógico dessa ciência, sem o qual sua história não seria inteligível (1).

 

Na parte teórica de suas 6 ciências fundamentais, Comte faz um resumo histórico, mostrando como se desenvolveu o conhecimento a respeito. Com esta base, formula a lei de três estágios do conhecimento humano. Cada ramo passa por três estágios teóricos: teológico (fictivo), metafísico (abstrato) e científico (positivo).

 

A concepção teológica admite uma via direta na natureza de um ser sobrenatural – Deus – que age por onisciência e onipotência. A concepção metafísica inventa essências particulares para explicar os fenômenos estudados. E a concepção positiva de mundo não reconhece motivos particulares, mas vê os fenômenos como os percebem os sentidos. Comte propôs uma ciência a que denominou engenharia social (sociologia) e localizou-a entre ciências da natureza, como ciência dos corpos orgânicos, ao lado da fisiologia. Entendia por sociologia, em sentido amplo, a ciência das comunidades dos seres vivos, entre as quais situava igualmente a comunidade dos homens:

 

Todos os seres vivos apresentam duas ordens de fenômenos essencialmente distintas, aquelas relativas ao indivíduo e aquelas concernentes à espécie, principalmente quando é sociável. É principalmente com relação ao Homem que esta distinção é fundamental. A última ordem de fenômenos é evidentemente mais complexa e mais particular do que a primeira: dela depende, sem que influa sobre ele. A partir daí duas grandes divisões na física orgânica: a fisiologia propriamente dita e a física social, que se baseia na primeira (2).

 

Com relação a fenômenos sociais, Comte defendia:

 

... por um lado a influência das leis fisiológicas do indivíduo; por outro, alguma coisa de particular que modifica os efeitos e que mantém em ação os indivíduos uns para com os outros...(3).

 

E entendia fenômenos sociais pelos pontos de vista:

 

1°) da ordem social estudada pela estática social, que se ocupa das leis da coexistência, do regime da sociedade;

 

2°) do progresso estudado pela dinâmica social, que se ocupa das leis da sucessão, do movimento da sociedade.

 

Fez os fatores sociais derivarem diretamente dos fatores biológicos correspondentes: o da organização e o da vida (4).

 

A ordem é, para Comte, a organização, a reunião sistemática das partes num todo único. Organismo vivo e ordem social se equivalem. Vida é crescimento, progresso na organização. O fato biológico do crescimento é essencial ao progresso social. Comparativamente, no organismo sem organização não há vida; na sociedade sem ordem não pode haver progresso.

 

Ao comparar biologia a sociologia, concluiu: ambas têm leis estáticas e dinâmicas; as estáticas predominam na biologia; as dinâmicas, na sociologia; a biologia deve ocupar-se dos organismos existentes e a sociologia pela evolução da sociedade.

 

Comte supunha que a evolução da humanidade se completaria na era industrial, o estado positivo. Nisto lembrava Hegel, para quem a história culminava com o Estado Burguês. Comte defendia uma compreensão abrangente como Hegel, mas não demonstrou a mesma profundidade de conhecimento. No caso da sociedade considerava:

 

... todo estudo isolado de seus vários elementos seria, pela natureza mesma da ciência, profundamente irracional e essencialmente estéril (5).

 

O principal defensor do enfoque positivista da história foi Franz Leopold von Ranke (1795-1886). Almejava a veracidade, libertando sua descrição de qualquer fantasia. Exigia-se criticar metodicamente as fontes históricas e historiadores, antes que sobre essa base se erigisse nova construção histórica. Para Ranke, não era papel da história julgar passados ou ensinar futuros, mas revelar como foram os fatos e como ocorreram. Escolhia os temas de seus trabalhos a partir de: leitmotif (idéias diretoras) e de tendências dominantes, detectadas ao longo do tempo, corporificadas nas políticas de Estados e governantes. A história era para ele fundamentalmente política. Interessava-se pelas dimensões econômica e social, a partir da ética luterana e do enfoque conservador quanto ao poder da burguesia (6).

 

Comte afirmou-se como o mais significativo entre os que representaram intelectualmente a estrutura da sociedade. Por se ater ao campo das idéias, está aquém de Marx, que esclareceu a perspectiva do socialismo por meio do princípio fundamental do materialismo histórico dialético:

 

... a noção de que a existência social é o fator condicionante da consciência social, e não vice-versa.

 

A engenharia social de Comte permaneceu limitada ao campo acadêmico; enquanto Marx trouxe as ciências sociais para o campo dos fatores básicos da mudança social, para a práxis da vida. Não se limitou à teoria e buscou engajar-se na luta por uma sociedade mais justa, o estofo de suas constatações conceituais. Diferindo de Comte e Ranke, o corpo teórico de Marx analisa e testemunha as lutas da segunda metade do século XIX, nos países onde viveu e participou ativamente da história.

 

De advogado defensor de pobres trabalhadores do campo, chegou a presidente da Internacional Operária, o que lhe custou o exílio forçado e a miséria pecuniária decorrentes da perseguição dos detentores do poder. Vivenciou o destino dos que se opõem objetivamente à desigualdade social.

 

A sociologia positivista e suas formas neopositivistas passaram a disputar com o materialismo histórico dialético o caráter de verdadeira ciência social, e o enfoque positivista da história limitou-se a descrevê-la com suposta imparcialidade, sem participar de sua transformação, não tendo a postura marxista de conhecer a história fazendo-a (7).

Microssociologia no enfoque da história

 

O terceiro agrupamento de teorias divergentes do materialismo histórico é a microssociologia (sociologia empírica). Não nega abertamente o conhecimento abrangente da vida em sociedade, mas no entremeado de fenômenos sociais limita-se a estudar detalhes, aspectos parciais da realidade capitalista, sem esclarecer as relações que lhe são inerentes. A teoria não quer considerar as leis de seu desenvolvimento histórico, ocultadas pelo imediatamente aparente, para manter-se distante da consequente análise científica da realidade e da necessidade de resolver problemas sociais pela via clara da formação socioeconômica posterior ao capitalismo, posto que é conivente com ele.

 

Não se diga que o estudo microssociológico não é importante, mas criticável quando nega a preponderância dos fatores da esfera social sobre as pessoas. Limita-se a analisar laços subjetivos entre indivíduos em pequenos grupos (destacando-lhes o mundo interior), subestimar fatores sociais objetivos e centrar enfoque na personalidade. É tendência vê-lo construtor de seu meio imediato e idealizar os elementos que orientam suas atividades. Ergue um meio idealizado que não reflete o mundo real, o objetivo maior, e desvia a atenção para aspectos subjetivos psicológicos, razão por que encontros e convívio fortuitos constituem objeto de estudo tão sério quanto classe social.

 

Ao se discutir o típico, em arquitetura, associa-se o meio ambiente do pequeno grupo a questões de índole, a como os indivíduos se relacionam com amigos, famílias e natureza, sob o regime capitalista. O microambiente é exposto como oásis da paz, de idílicos hábitos típicos (ou genéricos) de uma suposta cultura regional (ou nacional). Ora! Relações psicológicas – simpatias e antipatias – não dependem unicamente de características pessoais; em grande parte são secundárias, refletem relações econômicas, políticas, ideológicas e espirituais da sociedade.

 

Para o enfoque materialista histórico-dialético, a sociedade define a estrutura e as funções dos pequenos grupos sociais, não o contrário. As relações inter-individuais não são negadas, mas se avalia a influência que o trabalho, fator principal de socialização, tem sobre elas. Os indivíduos agem como parte da sociedade; as determinantes da sociedade indicam as atividades materiais dos homens, que não podem ser reduzidas a estruturas psicológicas. Ao se desviar o enfoque da constituição social para particularidades psicológicas, escamoteia-se o conhecimento quanto à classe social, coletivo de trabalho e formações da vida associativa, que decorrem das relações de produção; e também quanto à luta de classes e à possibilidade de paz entre as classes.

 

 

Notas:

 

1) K. Marx, O Capital.

2) B. Kédrov – LaClassification des Sciences, vol. I. Moscou, 1977.

3) Idem.

4) op. cit. (nota 35).

5) A. Schaff: Duas Concepções da Ciência da História: o Positivismo e o Presentismo. História e Verdade. São Paulo - Lisboa, 1987.

6) R Villar:- História Marxista, História em Construção. Lisboa, 1976.

7) D. Anzieu e J. Y. Martin: La Dynamyque des Groupes Restreints. Paris, 1973.

 

Frank Svensson, professor aposentado da UNB, é do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro.

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