Correio da Cidadania

A propósito do livro de Leonardo Padura, O homem que amava os cachorros – Parte 2

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“Missões especiais”

 

Os dois personagens principais da ala que executou Trotsky – Mercader e Eitingon – poderiam ter a clarividência distanciada para reconhecer seus crimes e recolocá-los na história? Poderiam esquecer seu heroísmo de militantes disciplinados dispostos a tudo, até ao crime? Poderiam compreender que as “missões especiais”, segundo Kruchev, “violações da legalidade socialista”, eram crimes? Vejamos um pouco do que se sabe deles.

 

De autoria de Ramón só existem, ao que se sabe, dez cartas inseridas no final do livro de seu irmão, Luis Mercader (1). É injusto julgar alguém por cartas ocasionais, relacionadas à vida cotidiana. Mas o que se vê aí não é nem o herói, nem o carrasco. Talvez um militante disciplinado com todas as viseiras que podem cegar o cumprimento do dever em um regime de partido único. Mas essencialmente um pequeno burguês conservador interessado em acompanhar o rendimento escolar de seus filhos adotivos, para que possam depois conseguir um bom emprego, perseguindo-os com receitas moralizantes sobre o valor absoluto do trabalho.

 

Temos também o Ramón Mercader que aparece pela palavra de Sudoplatov (2), o mais alto responsável pelo assassinato de Trotsky, depois de Stalin e Beria. Ao longo de seu livro de memórias ditadas entre 1992 e 1994, ele não cessa de apresentar o assassinato de Trotsky como ápice dos serviços prestados por ele e Eitingon à União Soviética. Sudoplatov, que encontrou Ramón em Moscou, em 1969, não poupa elogios físicos e morais ao assassino: sedutor, alto, vigoroso, era “um verdadeiro revolucionário profissional, orgulhoso do papel que havia desempenhado na luta”. Nessa ocasião, Ramón lhe teria dito: “Se eu tivesse que reviver esses anos 1940, eu refaria de novo, mas no mundo atual seria diferente”. Contou-lhe também os detalhes da execução do plano. Inicialmente, a equipe chefiada por Kotov-Eitingon e Caridad tinha previsto um ataque à casa de Trotsky no momento em que Ramón estivesse lá dentro, de tal forma que ele se aproveitasse da confusão para atirar no alvo. Mas Ramón não concordou com esse plano e tomou para si próprio, sozinho, a execução do assassinato. Porém, no momento em que deu o golpe da picareta, Trotsky moveu ligeiramente a cabeça, o que fez com que tivesse forças para gritar. Ramón tinha um punhal com o qual poderia ter terminado o serviço. E lamenta: “Veja que eu, um guerrilheiro treinado, que já havia matado uma sentinela durante a guerra da Espanha, fiquei quase inteiramente paralisado pelo grito de Trotsky” (3).

 

O mesmo relato, com algumas diferenças, é feito por Ramón a seu irmão mais novo, Luis Mercader, no período em que, de volta do México, viveu na União Soviética, entre 1960 e 1974. Quando Luis lhe pergunta como entrou tão facilmente na casa de Trotsky e como, depois, não conseguiu fugir, Ramón retruca: “Quando vibrei o golpe de picareta na cabeça, o homem começou a gritar como um porco degolado. Imediatamente fui cercado e não pude fazer mais nada”. Ao irmão, Ramón justifica o assassinato - é ao menos o que declara Luis nos anos de implosão da União Soviética – com os mesmos velhos argumentos: Trotsky era um agente de Hitler, estava negociando com o embaixador alemão no México, que lhe dava dinheiro para sustentar a casa-fortaleza; às quintas-feiras dispensava os empregados e reunia-se com ele e seus mais chegados colaboradores. Teria sido só depois de saber disso que o governo soviético teria dado a ordem para matá-lo (4). Quem mente aqui? Ramón, querendo justificar ao irmão um crime que este já aventava ter sido inútil e prejudicial a ele próprio, ou Luis, querendo desculpar seu irmão perante a posteridade?

 

Ele também conta ao irmão que assumiu por vontade própria a tarefa de cometer o crime sozinho. A causa, nesta versão, é que o fracasso do primeiro ataque à casa de Trotsky, em maio de 1940, chefiado pelo pintor comunista David Alfaro Siqueiros, provocou grande alvoroço entre os agentes soviéticos presentes no México. “Kotov-Eitingon ficou desesperado. Tinha ordem de Stalin para matar Trotsky e fazia questão de executá-la. (...) Ramón e Eitingon eram amigos muito chegados e meu irmão sabia que o outro não poderia voltar à União Soviética sem ter concluído com sucesso a missão que lhe tinha sido confiada, seria morto (5).

 

O livro de Luis Mercader oscila entre os clichês stalinistas sobre os fatos, mediados já por uma declaração de profundo desconforto com a vida no interior do regime soviético, e a incorporação das denúncias que vieram à luz durante a perestroika. É na primeira parte do livro, fruto das primeiras entrevistas, que Luis se autoriza ser o porta-voz de Ramón Mercader, de umas memórias que o próprio nunca quis escrever. Para, diz Luis, “ajudar a lembrar objetivamente meu irmão Ramón Mercader del Rio e assim corrigir a enorme quantidade de mentiras e erros publicados sobre ele e minha mãe. (...) Ramón foi um herói da União Soviética. (...) Para muitos que escreveram contra eles é incompreensível que ambos pudessem ter arriscado desinteressadamente suas vidas, apenas por um ideal, por uma União Soviética que então consideravam ‘a pátria dos comunistas do mundo’. (...) Estavam dispostos a perder a vida, se necessário, porque eram verdadeiros comunistas, como se entendia esta palavra de 1917 a 1956” (6).

 

Tudo leva a crer, nas expressões repetidas de Ramón Mercader e na primeira parte do livro de Luis, que o grande mal da União Soviética tinha sobrevindo a partir das denúncias dos “crimes de Stalin” por Kruchev, no XXº Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1956. De fato, desde que voltou, em 1960, Ramón perguntava por Eitingon, não compreendia por que os dois heróis, ele e Sudoplatov, estavam presos desde a queda do todo poderoso chefe dos serviços secretos, Beria. Teria mesmo feito gestões para que eles fossem liberados (7).

 

Interessante é também, sempre considerando ser o ponto de vista do irmão mais novo, o retrato que pinta de Ramón. “Queria ser militar. (...) Era muito rígido no seu modo de ser e teria sido um militar exemplar. (...) Era um homem muito rígido também no âmbito sexual. Nunca soube de qualquer amizade frívola sua, de aventuras. Creio, por exemplo, que não tenha jamais colocado o pé em um prostíbulo. Era uma pessoa de exagerado puritanismo comunista. (...) Pode ser que entre Ramón e Sylvia Ageloff tenha existido uma terna amizade, mas nada além disso. (...) Era sério, preciso em todos os aspectos da sua vida e nas relações com os outros. Tinha, como já disse, uma psicologia de militar. Para ele, negro era negro, branco era branco”(8). Seria Luis o puritano que descreve, ou seriam ambos moralistas?

 

Era também por estas características que Ramón criticava, não a mãe que o havia levado a ser agente do NKVD, mas a vida da mãe antes de aderir ao comunismo. No início dos anos 1920, Caridad, casada e com cinco filhos pequenos, havia tido intensas relações com os círculos anarquistas de Barcelona, frequentando também ambientes boêmios onde circulava muita droga. Ela ajudava ativamente as ações diretas dos anarquistas e por isso a família do marido a internou em um manicômio, à força, onde ficou por três meses. Ameaçada pelos anarquistas, a família soltou-a. Data dessa época o seu vício de consumo de heroína. Esta era a mãe que Ramón Mercader criticava asperamente nos anos 1960, em Moscou: a drogada, a que havia abandonado o marido, “excessivamente” bom (9). Também não perdoava a mãe, já caída em desgraça perante Beria, que o tinha desobedecido, indo direto da União Soviética para o México, em 1945.

 

E o que se sabe da palavra de Kotov-Eitingon? Quase nada a não ser as referências às suas opiniões feitas por Luis Mercader e por Sudoplatov. Da parte do primeiro, fica-se sabendo que Eitingon foi um homem muito importante na vida de Ramón, muito admirado por ele, um grande amigo de toda a família Mercader. “Era um espião de alta categoria, um tipo simpático e agradável, mas com uma vontade de ferro: quando necessário a impunha sem hesitação” (10).

 

De fato, percebe-se a “vontade de ferro” de Kotov-Eitingon neste relato das peripécias da operação para matar Trotsky, feita em 1997 pelo FSB (Serviço Federal de Segurança), a instituição que substituiu os antigos órgãos policiais na atual Federação Russa pós-soviética. A propósito do assassinato do jovem americano Sheldon Harte, agente soviético que se havia infiltrado dentro da casa de Trotsky como seu simpatizante, que favoreceu o primeiro ataque à casa-fortaleza e em seguida desapareceu com os invasores, o relato, baseado em documentos dos arquivos do NKVD, dá a palavra ao próprio Eitingon: “No momento da operação verificou-se que Sheldon era um traidor. Embora tenha sido ele a abrir a porta, no cômodo ao qual ele conduziu os participantes do ataque, não havia nem os arquivos nem o próprio Trotsky. Quando os atacantes abriram fogo, Sheldon declarou que, se ele soubesse disso, enquanto americano, jamais teria aceito participar. Este comportamento serviu de base para a decisão tomada localmente de liquidá-lo. Ele foi morto por mexicanos” (11).

 

Na visão de Sudoplatov, Eitingon também se caracterizava por inúmeras qualidades: sedutor, sua arma era o humor, a ironia e a zombaria.  Para além de elementos de sua biografia, o que Sudoplatov demonstra é que ambos conformavam uma dupla solidamente integrada, tendo trabalhado juntos nas chamadas “missões especiais” desde o momento em que se uniram, em 1939, para planificar o assassinato de Trotsky, até os tempos difíceis em que ambos foram presos como cúmplices de Beria, em 1953, e depois da soltura deles, no fim dos anos 1960. Desde aquele primeiro momento, diz Sudoplatov, tornaram-se amigos íntimos. “Para nós, os inimigos do Estado eram nossos inimigos pessoais” (12).

 

Todo o livro de Sudoplatov é permeado pela idéia da disciplina militar, da honra no cumprimento das tarefas de assassinatos e outras “violações da legalidade socialista”, como as chamou Kruchev. Tentando explicar o fracasso do primeiro ataque à casa de Trotsky, em maio de 1940, depois de descrever as circunstâncias em que se realizou, declara que tudo deu errado porque os atacantes – mexicanos e combatentes espanhóis da guerra civil - “não eram assassinos profissionais, treinados em ataques pessoais. Infelizmente, Eitingon não tinha tomado parte na ação. Se ele tivesse participado, teria verificado os planos e se assegurado da morte de Trotsky” (13).

 

A trajetória de Kotov-Eitingon, de assassino profissional em plena glória de sua carreira, separa-se tragicamente da de Sudoplatov em 1951. Stalin preparava novos complôs, novos processos públicos, novos expurgos como os dos anos 1936, 1937 e 1938. Uma imensa conspiração foi montada atingindo membros dos serviços de segurança e médicos, grande parte deles judeus, acusados, justa e injustamente, de assassinatos mediante envenenamentos e tratamentos médicos contra-indicados, abrangendo a morte de grandes personalidades ocorridas no passado recente. Era também uma campanha antissemita que augurava dias terríveis para os judeus russos. Quis no entanto a boa sorte que o ditador-chefe morresse em 5 de março de 1953, para alívio de todos os que ainda não tinham sido fuzilados ou morrido de fome nos campos de trabalho. Beria soltou imediatamente os acusados, como relata o próprio Sudoplatov. Pouco meses depois, com a queda de Beria e seu fuzilamento, os destinos de Eitingon e Sudoplatov uniram-se novamente, sendo ambos presos como cúmplices do ex-todo poderoso chefe da polícia secreta soviética.

 

Durante um certo período as memórias de Sudoplatov foram consideradas a fonte mais importante e única de revelações sobre a atuação dos serviços secretos soviéticos. Mas depois da abertura temporária dos arquivos secretos verificou-se que elas continham inúmeros erros (14). Na verdade, essas memórias são um tecido obviamente estruturado de contrainformação e mentiras, para tentar cortar pela raiz versões de crimes dos serviços secretos ainda não completamente esclarecidas e para se vangloriar das missões especiais que tiveram um resultado positivo para a “Pátria de todos os trabalhadores”. A continuada fé de Sudoplatov nessa política fica escancarada nesta singela observação sobre o seu idealizador, Stalin: “É difícil pensar que esse homem era capaz de enganar os outros, de tal forma eram simples as suas reações” (15).

 

Que Ramón Mercader tenha sido torturado pela polícia mexicana no primeiro período após o crime, é a probabilidade mais certa. Mas Sudoplatov inventa quando diz que ele foi torturado “duas vezes por dia durante seis anos” e que a tortura só cessou quando sua verdadeira identidade foi descoberta (16). Os relatos de Julián Gorkin, já citados, falam não apenas da montagem imediata de uma comissão permanente do NKVD na cidade de México para gerenciar a presença de Ramón na prisão, bem como da sem-cerimônia das visitas amigáveis de simpatizantes comunistas, muitos ligados à administração da prisão (17).

 

Mas é o próprio FSB, no já citado texto de 1997, apoiado em arquivos do NKVD da época, que afirma que o preso recebeu, desde o início, um sólido apoio jurídico, através de uma advogada em contato direto com “dois agentes confiáveis”, ligados à “rede de Nova York”, com “instruções especiais”, e, depois de 1943, diretamente da União Soviética. “Durante todo o período de encarceramento de ‘Raymond’ [código de Ramón], a partir de 1941, foram examinadas diversas variáveis para fazê-lo sair da prisão e deixar ilegalmente o país. (...) Assim, na primavera de 1945, ‘Raymond’ foi à cidade, ao dentista, em companhia de seu advogado. Não o tendo encontrado, eles passaram o dia todo na cidade. A saída se repetiu dois dias depois, desta vez o preso passeou livremente sem seu advogado, entrou em lojas. E no ano novo de 1946 foi-lhe permitido encontrar, no apartamento de um amigo, com um ex-detento com quem ele havia feito amizade”.

 

Apesar disso, estas ocasiões não foram aproveitadas para a fuga, reprova o documento (18).Como se vê, são as próprias fontes do NKVD que desmentem esta versão de seis anos de tortura com hora marcada. As saídas de Ramón da prisão para ir ao dentista ou à casa de um amigo são também relatadas no livro do jornalista mexicano José Ramón Garmabella, acrescentando a presença de uma escolta amigável (19).

 

Sudoplatov mente ao atribuir a morte de Sheldon Harte ao fato de, na ocasião do primeiro ataque frustrado à casa de Trotsky, ele ter aberto a porta da casa e ter reconhecido um outro agente importante da equipe de assassinos, Ioussif Grigoulevitch. Ora, se culpado pela infração de segurança houve, foi a desse também célebre assassino profissional que bateu à porta. Então, diz Sudoplatov, Sheldon Harte teve que ser sacrificado. Outra mentira, como se vê, pela explicação já referida do relato do FSB.

 

Sudoplatov mente e, como bom stalinista, difama Ignace Reiss, agente secreto soviético residente na Suíça, que decidiu romper publicamente com Stalin, tendo sido assassinado em Lausanne, em 3 de setembro de 1937. Calunia Reiss, sugerindo que roubou dinheiro, e indica dois nomes como únicos autores do crime, tentando limpar a barra de Serge Efron (20), um dos russos brancos que tinham sido recrutados em Paris pelo NKVD, participante reconhecido do grupo que sequestrou o “trânsfuga”, conforme as minuciosas investigações das polícias suíça e francesa, graças a todas as provas deixadas pelos assassinos. Em seguida ao crime, Efron se refugiou na União Soviética, mas veio a ser preso em 1939 e fuzilado em circunstâncias não esclarecidas (21).

 

Para retirar importância às confidências de Caridad Mercader a Castro Delgado, constantes na obra de Julián Gorkin, já mencionadas, fazendo tábula rasa do cargo desse militante como representante do PCE (Partido Comunista Espanhol) junto à Internacional Comunista no período pós-guerra civil espanhola, classifica-o de “quadro subalterno”, “primo longínquo de Fidel Castro” (talvez pense que todos os Castros do mundo são parentes) (22).

 

No caso de Léon Sedov, filho mais velho de Trotsky, morto em circunstâncias misteriosas, em 16 de fevereiro de 1938, em Paris, Sudoplatov advoga a tese de que se tratou de uma morte natural, sem intervenção dos serviços secretos soviéticos. Argumenta que não há referência alguma a essa morte nos arquivos e que ninguém foi condecorado por esse suposto feito (23). O historiador Dmitri Volkogonov, em sua biografia de Trotsky, afirma que ninguém duvida de que Sedov foi envenenado, mas não há rastros. Lembra ainda que o NKVD tinha uma seção especializada em venenos (24). Sedov havia sido Internado em uma pequena clinica para uma banal cirurgia de apêndice que transcorreu bem. Mas depois de uma convalescença normal de quatro dias, entrou, de repente, em uma crise de agitação, começou a andar nu pelos corredores e a delirar em voz alta. Em seguida, caiu na cama com febre alta e, dois dias depois, estava morto. A morte nunca foi explicada do ponto de vista médico. Soube-se, em seguida, que Sedov havia sido colocado nessa clínica, propriedade de russos brancos exilados em Paris e em estreito contato com o NKVD, por um agente soviético que se fazia passar por militante trotskista e amigo do morto, Mark Zborowski (Etienne). Tudo encaminhava à conclusão de mais um crime dos stalinistas (25).

 

Na verdade, a morte de Léon Sedov só pode ser entendida se entrarmos no capítulo do laboratório de venenos, de cuja história fazem parte intrínseca Sudoplatov e Kotov-Eitingon. Sudoplatov fala longamente das atividades desse laboratório toxicológico (Labo X) criado por Lenin e defende a sua existência para o Estado soviético. Enumera as acusações relativas ao envenenamento de pessoas que levaram ele e Eitingon à prisão em 1953. E narra o processo que sofreu, relativo a algumas dessas mortes, na Rússia pós-soviética, conseguindo provar que, embora tenha cometido esses crimes, o fez sob ordens superiores (26).

 

A história de envenenamentos sistemáticos apareceu espetacularmente nos expurgos iniciados em 1951, ressurgiu depois nas acusações contra Beria e seus subordinados, entre eles, Sudoplatov e Eitingon, em 1953, e depois da implosão da União Soviética. Médicos faziam experiências sobre as consequências de venenos em prisioneiros supostamente já condenados à morte, avaliando a duração da agonia e a forma da morte, de modo a mascarar as causas em acontecimentos de saúde como enfarte, insuficiência cardíaca e outros. Eitingon é particularmente citado por um médico acusado, Maïranovsky, como alguém que permanecia no local da agonia do envenenado para ver a eficácia do produto (27). Depois estes venenos foram utilizados em várias personalidades conhecidas, como, por exemplo, o diplomata sueco Raoul Wallenberg, que havia salvo milhares de judeus na Hungria ocupada pelos nazistas durante a guerra, depois sequestrado pelos soviéticos em janeiro de 1945, quando do avanço do exército vermelho, e morto em uma prisão moscovita, em 1947. Kruchev reconheceu a sua prisão e a morte por insuficiência cardíaca (28).

 

Sudoplatov foi acusado na morte por envenenamento do agente secreto soviético Isaiah Oggins, de nacionalidade americana, em 1947  (29). Em suas memórias ele reconhece que um médico injetou-lhe veneno na prisão moscovita de Burtika, provocando sua morte, e diz: “Quando penso nesse episódio sinto remorsos por Oggins, mas, nesses anos de ‘guerra fria’, não nos inquietávamos pelos métodos empregados para eliminar gente que sabia demais” (30).

 

Daí porque a segunda parte do livro de Luis Mercader está profundamente empenhada em reconstituir a história da súbita alteração do estado de saúde de Ramón, em maio de 1974, em Moscou. Homem forte e saudável, de repente fica doente, mal consegue ficar em pé e respirar. Internado em um hospital, ninguém consegue diagnosticar exatamente qual é o seu mal e as suas causas. Depois de um período hospitalizado, melhora um pouco e sua saída para Cuba é, afinal, autorizada pelos seus superiores do aparelho policial. Sobreviverá só até 1978.

 

Inquieto com a doença, ainda em Moscou, Luis consegue saber que Ramón começou a passar mal poucos dias depois de participar de uma comemoração anual pela vitória contra os nazistas na Segunda Guerra, realizada na presença das mais altas autoridades partidárias e policiais.  Nessa ocasião Ramón foi homenageado com um imponente relógio de ouro, contendo uma inscrição louvando-o como o “grande herói da União Soviética”. Luis narra este fato a Eitingon e este aventa, como pergunta, se “eles” não o teriam por acaso envenenado. Luis sabia com quem falava. O livro do irmão conclui, em um Post Sriptum, que Ramón Mercader foi envenenado através do relógio de ouro. E o que o fortalece na sua convicção são as denúncias da imprensa russa, datadas de 10 junho de 1990, sobre o laboratório de venenos e a implicação, não apenas do médico Maïranovsky, mas, entre outros, de Sudoplatov e Eitingon (31).

 

No romance, Padura dá muito pouca importância ao relógio de ouro e à denúncia de Luis. Ao terminar a leitura do livro do irmão do assassino, o narrador, Iván, tem como primeira reação “sentir pena de si mesmo e de todos os que, enganados e utilizados” embarcaram na “utopia do Estado dos sovietes” na “grande utopia do século XX”. Prevalece nele a “compaixão”. Ramón Mercader foi “carrasco e vítima”.

 

Sim, carrascos e vítimas de uma engrenagem com a qual contribuíram poderosamente foram também, entre os aqui citados, Beria, Serge Efron e Sheldon Harte, entre outros. Já David Siqueiros, Alexander Orlov, Mark Zborowski, Sudoplatov e Eitingon, bem como Stalin, morreram placidamente em suas camas, foram só carrascos. O mesmo não se pode dizer de milhões de outras vítimas ao longo da história da União Soviética. Para só falar do período em que os crimes aqui citados aconteceram: “Em 16 meses, de agosto de 1937 a novembro de 1938, cerca de 760 mil cidadãos soviéticos foram executados depois de terem sido condenados à morte por um tribunal de exceção ao cabo de uma paródia de julgamento. Ou seja, cerca de 50 mil execuções por mês, 1600 por dia. Durante o Grande Terror, um soviético adulto entre cada 100 foi executado com uma bala na nuca. Ao mesmo tempo, mais de 800 mil soviéticos eram condenados a penas de dez anos de trabalhos forçados e enviados ao Goulag” (32).

 

Afinal, a partir do que se sabe sobre a ala dos assassinos de Trotsky e personagens do romance – Caridad, Ramón Mercader e Kotov-Eitingon –, apenas ela chegou a entrever o absurdo dos assassinatos, desde que se aceite como verídica, na sua essência, a memória de seu desabafo feito a Castro Delgado em 1943, na União Soviética. Pelas memórias citadas de Luis Mercader e Sudoplatov, podemos ter a certeza de que Ramón Mercader e Kotov-Eitingon permaneceram empedernidos defensores da política de “missões especiais” de assassinar, orgulhosos de seus feitos, considerando-os exemplos de uma militância comunista. Teria sido reconfortante para os que “inverteram suas esperanças e sonhos” no regime soviético que eles tivessem compreendido a “perversão da grande utopia do século XX”. Mas não compreenderam, como, aliás, muita gente.

 

Notas:

(1) Luis Mercader-German Sanchez, Mio fratello, l’assassino de Trotsky, Torino, Utet SpA, 1990. http://pt.scribd.com/doc/74328130/Mercader-Luis-e-Sanchez-G-Mio-Fratello-L-Assassino-Di-Trotskij

(2) Pavel Sudoplatov et Anatoli Sudoplatov, avec Jerrold et Leona Schecter, Missions Speciales – Mémoires du maître-espion soviétique Pavel Sudoplatov. Paris, Seuil, 1994.

(3) Ibid., pp. 110-115.

(4) Luis Mercader, op. cit.

(5) Ibid.

(6) Ibid.

(7) Sudoplatov, op. cit., p. 114.

(8) Luis Mercader, op. cit.

(9) Ibid.

(10) Ibid.

(11) Citado em “Opération Canard” – Nouveautés sur l’espionnage et le contre-espionnage, nº 19/100, 1997. – Em: “L’assassinat de Trotsky decrit par ses assassins”, http://www.inprecor.fr/article-inprecor?id=1005

(12) Sudoplatov, op. cit., p. 101

(13) Ibid., p. 107.

(14) Boris Volodarsky, El caso Orlov – Los servicios secretos sovieticos en la guerra civil española. Barcelona, Critica, 2013, p. 361.

(15) Sudoplatov, op. cit., p. 98.

(16) Ibid., pp. 112-113.

(17) Ver também Pierre Broué, L’assassinat de Trotsky, Paris, Editions Complex, 1980, pp. 126-127.

(18) “Opération Canard” – Nouveautés sur l’espionnage et le contre-espionnage, op. cit.

(19) José Ramón Garmabella, Operação Trotski. Rio de Janeiro, Record, 1972, pp. 167 e 177.

(20) Sudoplatov, op. cit., p. 78.

(21) Alain Brossat, Agents de Moscou. Paris, Éditions Gallimard, 1988, p. 215.

(22) Sudoplatov, op. cit., p. 113.

(23) Ibid., pp. 115-116.

(24) Dmitri Volkogonov, Trotsky, The eternal revolutionary. London, Harper Collins Publishers, 1997, pp, 359-360.

(25) Pierre Broué, Léon Sedov, fils de Trotsky, victime de Staline. Paris, Les Éditions Ouvrières, 1993.

(26) Sudoplatov, op. cit., pp. 346-352.

(27) Arkadi Vaksberg, Laboratório de venenosDe Lénine a Putin. Lisboa, Alethéia Editores, 2007, pp. 140-143.

(28) Ibid, pp. 146-147.

(29) Andrei Kozovoï, Les services secrets russes . Des tsars à Poutine. Paris, Éditions Tallandier, 2010, p. 138.

(30) Sudoplatov, op. cit. p. 350.

(31) Luis Mercader, op. cit.

(32) Nicolas Werth, L’ivrogne e la marchande de fleurs – Autopsie d’um meurtre de masse – 1937-1938, p. 16.

 

Leia também:

A propósito do livro de Leonardo Padura, O homem que amava os cachorros – Parte 1

 

 

Angela Mendes de Almeida é historiadora e coordenadora do site Observatório das Violências Policiais.

Originalmente publicado no site Passa Palavra - http://passapalavra.info/

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