“Grande mídia”: a verdadeira tropa da elite
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- Max Luiz Gimenes
- 16/10/2007
Logo no primeiro dia deste mês de outubro, o jornal “Folha de São Paulo” publicou um artigo fruto da indignação do apresentador global Luciano Huck. Ele estava horrorizado, coitado. Havia acabado de perder o seu Rolex em um assalto. Aproximadamente uma semana depois, veio a resposta da periferia. O rapper e escritor Ferréz, em artigo publicado pelo mesmo jornal, tentou mostrar a face humana do assaltante, chamado por ele de “correria”. Embora a intenção de se contrapor veementemente à posição elitista de Huck seja louvável, Ferréz acabou, por meio de seu desabafo impulsivo, errando a mão. E deu um tiro não só em seu próprio pé, mas no de muitas outras pessoas.
Boa parte da imprensa aproveitou a brecha para acusar todos os defensores dos direitos humanos e de uma visão sociológica do crime de fazerem apologia ao mesmo. De acordo com ela e com o nosso querido apresentador, o certo seria chamar a tal tropa de elite – cruel e desumana como a do filme que está em cartaz –, pois isso, sim, seria tratar segurança pública de maneira séria. Aproveitou-se, também, para vender a idéia de que ter muito dinheiro em um país vergonhosamente injusto – desde que se paguem os impostos em dia – nada tem a ver com a desigualdade social e, muito menos, com a criminalidade. Curioso foi o fato de a seriedade com que o assunto foi tratado não transcender o revanchismo, pois o que mais sugere Luciano Huck além de repressão? Em algum momento ele se questionou acerca da origem da criminalidade ou de como fazer para que esta triste manifestação da degradação humana deixe efetiva e definitivamente de acontecer?
Luciano Huck tem todo o direito de dizer o que lhe der na telha. E Ferréz também. A nossa democracia garante isso. O que ela ainda não garante e é o que há de mais cruel nessa “ditadura midiática” em que vivemos é que todos têm o direito de falar, mas poucos, o de ser ouvido. E a esse filtro costuma-se dar o nome de “grande mídia”. O que Huck e sua tropa não têm é outra coisa, chama-se legitimidade. Como bem questionou o “correria” de Ferréz, como pode alguém levar no pulso algo que proporcionaria moradia para muitos seres humanos abandonados ao relento? E o que Huck tem a dizer dos roubos praticados contra o povo brasileiro com a proteção da lei – e de boa parte dos neo-indignados de plantão –, como a desvinculação de receitas da união (DRU), o pagamento dos juros da dívida pública, as privatizações do patrimônio nacional, entre tantas outras medidas que perpetuam as desigualdades e os conflitos sociais?
Em tempos de valorização do chamado “marketing pessoal”, ter uma ONG não basta. Ter status de socialmente responsável – ou fazer algo para poder repousar um pouco mais tranqüilamente a cabeça no travesseiro – não é suficiente. É oportunismo. A garotada da entidade de Luciano Huck é preparada para ingressar no mercado de trabalho, buscar ascensão social e tornar-se bem sucedida, como o apresentador. Se não conseguirem, as crianças estarão preparadas, também, para aceitar que a culpa é tão-somente delas mesmas e de sua própria incompetência. E sempre haverá crianças carentes necessitadas de projetos assistencialistas como o de Huck, uma vez que eles não as habilitam a refletir de maneira consciente, independente e crítica, ou seja, não as emancipam.
Só há ricos porque existem também os pobres. É óbvio. Não se trata de fazer apologia ao crime, mas de colocar as coisas no seu devido lugar. Não duvido da competência profissional de Huck, assim como não vejo motivos para a desproporção de seu salário em relação ao de um bom professor, por exemplo. Todos os que optaram por uma vida com recursos que destoam daqueles de que o conjunto da população dispõe e do racional e humanamente aceitável têm, sim, responsabilidade pela criminalidade. E devem estar cientes disso. Mas o “rolo” em torno do Rolex não foi justo, como afirmou Ferréz. Vivemos em um sistema injusto e, conseqüentemente, as relações dele provenientes são igualmente injustas. Não é aceitável que alguém seja sentenciado, por não vislumbrar outra saída, a cometer crimes para sobreviver. Assim como não é possível tolerar que vidas sejam colocadas em risco por conta disso.
No momento em que houver verdadeiramente igualdade de oportunidades e eqüidade nos resultados obtidos com o trabalho de cada um, poderemos então dizer que o criminoso pratica ações reprováveis porque assim deseja ou porque assim escolheu. Enquanto esse momento não chega, a questão continua sendo muito mais complexa. Com direito também a crimes do colarinho branco e morte de pessoas humildes, acontecimentos que, não raramente, passam um pouco mais distantes da mira da tropa da elite.
Max Luiz Gimenes é militante do PSOL.
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