A Presidência acéfala e o programa único de Levy
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- Luis Fernando Novoa Garzon
- 25/03/2015
O golpe já aconteceu sem precisar do golpe em si. Dilma já foi impedida na prática e ela parece se sentir muito à vontade assim. A midiatização e carnavalização dos protestos contra a corrupção bastou para que se acionasse um gabinete de emergência, que passou a unificar a execução e a gestão do ajuste. Em pronunciamento no dia 16 de março, foi Dilma quem suplicou por um consenso mínimo para “fazer tudo aquilo que tem que ser feito pelo bem do Brasil". Consenso mínimo sobre o que é governar com firmeza: “Nós vamos ser firmes. Não vou deixar de dizer pra todo mundo que nós queremos fazer o ajuste. Firme é isso".
Ajuste fiscal e financeiro em sacrifício deliberado de soberania, de direitos e de qualquer patamar civilizatório eventualmente adquirido: esse foi o pacto feito dentro do pacto. A rendição não deixa de ser voluntária, já que Dilma e o PT tiveram condições, nos últimos anos, particularmente nas últimas eleições, de construir uma resposta à crise muito distinta da que está sendo esboçada. Se antes concebíamos anticandidatos para explicitar o sufocamento da democracia enquadrada por grupos econômicos e aparatos repressivos, como lidar com uma democracia em fim de linha, que gera uma anti-presidente, em outros termos, uma presidente sem qualidades, hologramática no limite?
Na locução oficial dos mercados (Davos, IIF e FMI), a esterilização dos espaços de percepção dos embates de classe, que ainda poderiam impor “constrangimentos extemporâneos” à “política econômica necessária”, demonstra maturidade institucional. Chegamos ao anticlímax do processo de democratização? Trinta anos depois é como se fosse uma segunda derrota das Diretas, enquanto movimento originalmente nivelador, igualitário e democratizante.
O acordão da Ditadura militar com o PMDB, que redundou no Colégio Eleitoral em 1985, reaparece farsescamente no atual condomínio estabelecido entre o Levy/mercado financeiro e o Congresso comandado pelo PMDB. Conjunção que indica o grau de capitulação do governo Dilma e de esgotamento dos últimos espaços de dissonância, como as eleições gerais, ainda que plebiscitárias.
Em 1985, o PT foi o único partido a denunciar o dispositivo do Colégio Eleitoral e a expulsar os deputados que o convalidaram. Em 2015, foram o PT e sua presidente reeleita que fizeram prevalecer o programa único neoliberal, resguardado por um interventor designado pelos mercados. Dilma acéfala comandará apenas programas sociais, previamente desnutridos, que virão a ser o “social” a ser emoldurado para consumo externo.
Quem manda no vácuo
Depois das provas exorbitantes de esvaziamento, quem responde em última instância é Levy, o primeiro-ministro da exceção. O teste de nuclearidade do poder é o da indispensabilidade em determinado arranjo. Só Levy pode ameaçar pedir demissão e ganhar em troca plena discricionariedade para sua agenda. A mesma agenda dos banqueiros que querem vender e revender o Brasil, arrancando a pele da classe trabalhadora e capitalizando cada gota de água ou petróleo, cada palmo de terra ou grama de minério, para desse modo posicionar os capitais instalados no país de forma vantajosa na crise.
Diante disso, no espelho invertido onipresente que define o imaginário do país diariamente, o maior problema só poderia ser a corrupção e não a desigualdade derivada da venal instrumentalização do país e de seu povo. A corrupção entendida como uma somatória de ações individuais maximizadoras de “políticos ladrões” obscurece a orquestração de políticas empresariais de assalto continuado aos recursos públicos. A espetacularização focada nos desvios dos intermediadores resguarda o mata-mata corporativo e financeiro do olhar público, o jogo canibalístico de destruição criativa em que a burguesia brasileira se destacou mundialmente por sua capacidade de espoliação. Denominação merecida tanto pela pulsão de ascensão dos remanescentes brasileiros da burguesia interna como pela necessidade de uso do invólucro nacional pelos capitais estrangeiros aqui recém-aportados.
Nossas (in)distintas classes dominantes nunca puderam se expor na cena política com cara própria. Na ditadura empresarial militar, “reinava” a tecnoburocracia. Na década do desmonte neoliberal, alçaram um príncipe bastardo e sua corte de consultores para “financeirizar” não só a economia, mas a própria estrutura do Estado. Depois dos excessos perpetrados, precisaram recorrer a um ex-líder operário, devidamente tosquiado e azeitado, para reciclar o modelo neoliberal. Na esteira dessa operação de estabilização, foi eleita e reeleita uma gerente cacifada na interface criada entre governo e os grupos econômicos. Agora parecem querer falar por si mesmas, retirando a confiança depositada na gerência petista, fazendo-a saco de pancada útil para forjar fileiras à direita e acuar qualquer forma de poder social que tenha sobrevivido aos anos de pacto “social-liberal”.
Elites despatriadas fingem escândalo com a “roubalheira” enquanto evadem seus lucros extraordinários obtidos na pilhagem da dívida pública, do território, dos orçamentos ministeriais, das reservas cambiais e dos fundos públicos. Pilhagem que prossegue e se aprofunda. Frente à escalada golpista, a resposta que vem é uma concessão, em cascata do padrão "vocês controlam, então vocês também regulam", como já se vê no sempre diferenciado regime de concessões de infraestrutura do país.
Não é o fim de um meio qualquer, mas de um meio que pode carregar consigo fins inassimiláveis na ordem competitiva pátria. Por isso, as miras sobrepostas no PT e Petrobrás se apõem menos sobre seus dirigentes que sobre a memória coletiva que essas instituições evocam. Ambas formadas nas lutas populares e nas ruas, ambas se dispondo agora a protagonizar sacrifícios adicionais naquilo que é o cômputo de conquistas coletivas inscritas nas tradições classistas, comunitárias, socialistas e anti-imperialistas.
Para defender essa memória de luta é preciso desmascarar toda e qualquer associação das práticas de adaptação, empresariamento e cooptação desses segmentos que se especializaram na intermediação de conflitos intercapitalistas com as tradições da esquerda. Que a burguesia interna acolha sua dileta criatura política. A internacionalização e o lugar a que acedeu em alianças com os capitais chinês, norte-americano e europeu não teria sido possível sem a coordenação promovida por dentro do Estado, de movimentos financeiros combinados entre BNDESPar, Fundos de Pensão, Bradesco e BTG, para ficarmos apenas com um dos arranjos de poder mais visíveis. Usando o jargão do moribundo petismo, é preciso reconhecer que as lutas (e bem como os lutos que lhes façam jus) realmente acumulam força; já as renúncias que blindam as esferas decisórias, decididamente, “desacumulam” força social.
O extemporâneo apelo, propagado pelo ministro da Justiça, ao procedimentalismo democrático, feito àqueles que estão em franco processo de contrarrevolução, revela quão deslocado se encontra o governo. Abertura e diálogo, nos marcos dessa pseudo-legalidade que impulsiona o capitalismo brasileiro, significa dizer esvaziamento de qualquer "centro de poder" fora dos mercados e uma “ampliação” do espectro da coalizão, fazendo avançar o “método Levy” de governabilidade, ou seja, por transferência direta para arenas privadas.
Não em nosso nome
O passado e o futuro do país estão sendo empenhados em nome da atualização do bloco no poder promovida pelas frações capitalistas mais desenraizadas. Nada mal para bancos e conglomerados que procuram assegurar-se contra as oscilações da crise. O que mais desejam é sinalizar ao mundo que no Brasil haverá lucrativo refúgio para capitais de alta rotatividade e investimentos com alto retorno em grandes projetos de infraestrutura e de controle de recursos territoriais.
É necessário alcançar um estágio elevado de degradação para sustentar uma realpolitik de contemporização com essa sabotagem. Depreende-se daí que Dilma e os dirigentes do partido procurem tocar o bonde com renúncias parciais premiadas. Eles que renunciem ao que quiserem, não em nosso nome.
Os partidos da chamada ultraesquerda, os coletivos auto-gestionários, as frações mais autônomas dos movimentos sociais e a intelectualidade crítica não customizada precisam o quanto antes demarcar um campo comum de defesa dos espaços públicos remanescentes, campo do qual evidentemente se auto-excluíram Dilma e o PT, ao alimentarem eles próprios a nova ofensiva neoliberal.
Um “terceiro” campo de forças, que na verdade é um segundo campo, uma alternativa de poder que prepare as rupturas necessárias para enfrentar o efeito paralisante do PT e do governo Dilma e o ativismo da nova direita em franco processo de subjetivação. Essa frente só pode ser viabilizada na luta frontal contra os promotores e os beneficiários do ajuste bem como contra os acordos setoriais que aceleram as privatizações e concessões.
Acentuar a cisão nesse caso e expor a farsa do brasileiro “com muito orgulho” de seu capitalismo é uma questão de lucidez coletiva. Manter caminhos abertos para que a população trabalhadora construa a nação socializada que lhe caiba constitui, hoje, a luta democrática derradeira.
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Luis Fernando Novoa Garzon é sociólogo e professor da Universidade Federal de Rondônia.
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