Correio da Cidadania

Inversão de papéis e crise estrutural

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A confusão e a inversão de papéis tem sido a marca da vida política brasileira. Como bem sintetizou o jornalista Bob Fernandes, o PT se elegeu criticando o ajuste fiscal que propunha Aécio, ao mesmo tempo em que se colocava claramente contra a retirada de direitos trabalhistas. Como se sabe, a bancada do PT no parlamento apoiou a MP 665, medida crucial para o pesado ajuste fiscal de Dilma e Levy, que dificulta o acesso ao seguro-desemprego, sendo, portanto, uma retirada de direitos dos trabalhadores. Já o PSDB, por sua vez, votou contra a MP e ainda se viu no direito de reivindicar sua “socialdemocracia” que sempre existira apenas no nome da sigla, afirmando que era contra um ajuste feito sobre as costas dos trabalhadores.

 

Oportunismo e casuísmo à parte – afinal o mesmo PSDB majoritariamente apoia o PL da terceirização, que é, sem dúvida, um ataque gravíssimo aos trabalhadores –, a confusão e a inversão de papéis entre direita e esquerda que apresentamos acima aponta para um fenômeno que merece reflexão. As mudanças abruptas de posição e o divórcio exacerbado entre discurso e prática talvez causem menor perplexidade se os observarmos como consequências necessárias das tentativas inglórias de um governo de esquerda de administrar um capitalismo em crise estrutural, sobretudo em nosso caso brasileiro, partindo-se de uma posição já periférica.

 

A crise que se explicitou em 2008 nos mercados globais – e que já fora precedida por décadas de crescimento pífio da economia mundial – nos parece longe de ter sido resolvida. Ciclos sustentados e prolongados de crescimento pautados na valorização produtiva de capital parecem cada vez uma relíquia do passado. É necessário por certo aprofundar o debate sobre as raízes de tal fenômeno.

 

Pensamos que de alguma forma a resposta a tal questão reside na contradição entre, de um lado, a obsolescência do trabalho vivo para a produção de riqueza material devido à concorrência que exige a incorporação crescente de novas técnicas e conhecimento; do outro lado, o fato de que apenas a exploração de trabalho vivo pode engendrar a mais valia necessária para a reprodução ampliada contínua do capital. Trata-se, portanto, do antigo debate do velho Marx sobre a queda tendencial da taxa de lucro, que deve ser resgatado hoje, mesmo que com as devidas mediações.

 

Neste sentido, a financeirização da economia e a profusão de capital fictício, que é seu lastro, tornam-se assim a válvula de escape para capitais que não logram mais cumprir sua antiga “vocação” de amplificar – mesmo que reproduzindo desigualdades – o crescimento econômico e a renda. É comum a afirmação de que seriam justamente tal financeirização, e o rentismo que a acompanha, os responsáveis pelos fracos resultados em termos de crescimento do PIB mundial.

 

Do nosso ponto de vista, sustentamos tese contrária, a saber: são justamente os booms artificiais nos mercados financeiros que estimulam em certos momentos o aumento de investimentos produtivos que, de outra maneira, não se realizariam. Este foi o caso do crescimento da economia dos EUA na década passada até a explosão dos mercados subprime. Evidentemente, tal “saída” para a dinâmica capitalista não pode oferecer perspectiva duradora e isto está na raiz da referida crise sistêmica que acreditamos estar em curso.

 

Em certa medida, é preciso dizer que a mesma dinâmica não se fez ausente no efêmero ciclo de crescimento brasileiro da década passada.  É certo que o boom das commodities e a ampliação – via crédito e certas políticas de renda – de um mercado consumidor historicamente reprimido teve seu peso. Entretanto, não se pode desconsiderar que a inflação de ativos – animadas em boa parte por capital externo que se locupletava com a valorização cambial – também acarretou em estímulos em termos de formação de capital real e crescimento. Enfim, todo o processo que fez água nos últimos anos, como estamos vendo. E daqui para frente?

 

Diante da lógica eminentemente curto-prazista e instável de "valorização do valor" em escala global dos diferentes capitais, a despeito de toda verborragia em torno de projetos nacionais de crescimento e desenvolvimento econômico (sim, alguns ainda ousam falar disso), na prática as políticas econômicas e as mudanças institucionais caminham de forma unívoca no sentido de acomodar as pressões do mercado e de um capitalismo em crise. Premidos pelo humor dos capitais, pelas agências de risco e congêneres, os países são forçados a fazer a "lição de casa", mesmo sabendo que nada garante a priori a sua "aprovação".

 

A nosso ver, é este ponto de vista que deve iluminar o conjunto de questões que pautam o debate econômico nacional atual. Promove-se o ajuste fiscal rigoroso e o aumento das taxas de juros como norte exclusivo da política econômica. Ajuste este que tem um sentido claramente concentrador de renda em função das MPs, que limitam seguro-desemprego, abonos e pensões aos assalariados, ao mesmo tempo em que o governo aumenta a carga de juros auferida pelos rentistas com a subida da SELIC.

 

Pode-se com isso talvez agradar no curto prazo as agências de risco e detentores de riqueza financeira. Mas de forma alguma se sustenta a alegação do ministro Levy de que tais medidas irão recuperar os investimentos na produção e o crescimento econômico. O contrário me parece muito mais próximo da verdade. E mesmo no que tange a suposta vitória da “credibilidade”, que seria para muitos a virtude a se ganhar a partir das dores trazidas pelas medidas atuais, trata-se por certo de uma “vitória de Pirro”.

 

Já vimos este filme, por exemplo, em 1999. Mesmo sendo um “aluno muito aplicado” e aderindo até então cegamente às diretrizes dos mercados, após a moratória russa de 1998 os mesmos mercados “reprovaram” o país (Brasil), o que obrigou o governo a liberar a taxa de câmbio e promover ainda mais contenção fiscal, subir ainda mais as taxas de juros e aprofundar ainda mais a recessão.

 

Em síntese, dada a dinâmica instável e volátil da globalização e de uma crise internacional que se prolonga, não há qualquer “credibilidade” duradoura – ainda mais para um país periférico como o nosso – e qualquer nova turbulência externa há de escancarar a realidade de que cortar um dedo hoje não nos exime de ter de cortar um braço amanhã.

 

O debate sobre o PL da terceirização deve ser visto dentro da mesma arquitetura de crise estrutural. Não repetiremos aqui o conjunto bastante robusto de evidências de que o PL aumentará enormemente a precarização do trabalho e reduzirá direitos e salários. No fundo, o que está em causa é uma tentativa de se recriarem formas de extração de mais valia absoluta diante do cenário já descrito de dificuldades estruturais de incorporação sustentada de mais-valia ao capital. Trata-se, portanto, de uma tentativa de nivelar a exploração da força de trabalho brasileira ao que há de pior no decantado “modelo asiático”, elogiado inclusive por parte da esquerda.

 

O argumento esgrimido por muitos economistas e empresários de que a terceirização implicaria num aumento da produtividade da economia brasileira, nesse sentido, só é válido se o que se chama aqui de “produtividade” é o alargamento imediato das margens de lucro na base do aumento da jornada de trabalho e do arrocho salarial, de forma a tentar melhor suportar a concorrência global. Triste e cruel paradoxo.

 

De um lado, a suposta “vantagem comparativa” da economia brasileira estaria lastreada na precarização intensa do trabalho. De outro lado, aprofunda-se um ajuste fiscal em que os cortes de gastos reduzem substancialmente investimentos públicos em infraestrutura – comprometendo assim a redução de custos para o conjunto da economia – e as verbas para as universidades e para pesquisa científica e tecnológica em geral – comprometendo a melhoria da educação e da qualificação e também da capacidade de inovação tecnológica do país.

 

Ou seja, são preteridos com o ajuste fiscal fatores essenciais que ajudaram a criar historicamente os ganhos de produtividade e de competitividade de outros países capitalistas que supostamente estaríamos buscando alcançar.

 

Ainda sobre a terceirização, é preciso mencionar também que o PL, na medida em que trará a compressão de direitos e salários, por certo tende a aumentar no curto prazo as margens de lucro e assim, automaticamente, melhorar os balanços financeiros de muitas empresas. Dada a dificuldade de valorização sustentada dos capitais na produção real, abre-se aqui a brecha para a distribuição de mais dividendos e de mais valorização fictícia dos capitais acionários de diversas empresas. Neste sentido, a terceirização também namora a financeirização do capital.

 

Neste quadro, é de se esperar que a piora na distribuição de renda que já está em curso tende a se agravar e anular as melhoras obtidas em anos anteriores. A proposta de taxação das grandes fortunas por certo guarda importância e deve ser estimulada através de mobilizações na sociedade etc.

 

Ao mesmo tempo, para além das dificuldades políticas em aprová-la, há de se considerar que a própria dinâmica contemporânea do capitalismo amplifica o risco de inviabilizar tal proposta na prática. Pensamos isso, não apenas por conta da possibilidade de exportação da riqueza líquida para fora do país como forma de se tentar escapar da tributação nacional, possibilidade esta favorecida pela própria globalização do capital.

 

Além disso, há a possibilidade de que uma taxação efetiva dos patrimônios na forma de imóveis e de papéis (ações, títulos etc.) desencadeie um processo de venda massiva e incontrolada de ativos. Como a própria medida da riqueza no capitalismo contemporânea é cada vez mais frágil e oscilante – posto que se assenta em bolhas e na profusão desmesurada de capital fictício –, é de se esperar que algo assim ocorra. E como o modelo econômico no Brasil e no mundo é absolutamente refém desta dinâmica, os obstáculos para a referida taxação se tornam ainda maiores.

 

O que dissemos mais acima por certo não implica que bandeiras como a da taxação das fortunas e tantas outras não estejam na ordem do dia. Muito pelo contrário. O que buscamos chamar a atenção é de ser preciso uma discussão séria na esquerda, em prol de um novo modelo que crie novas formas de sociabilidade e de organização econômica, independentes da lógica cega e fetichista dos mercados e da busca de valorização sem fim dos capitais em meio à crise aqui exposta.

 

Na ausência disto, o triste papel que caberá à esquerda e seus governos será o de prosseguir sendo o co-gestor da crise, subordinando a economia, a política e a sociedade às vicissitudes da dinâmica irracional e antissocial em curso.

 

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Daniel Feldmann é professor do curso de Ciências Econômicas da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

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