Fórmula 85/95 não vai piorar as contas do país, diz professor da Unicamp
- Detalhes
- Isaías Dalle
- 25/05/2015
Não há falta de dinheiro na Previdência, que é financiada pelo orçamento da Seguridade Social. A fórmula 85/95 é “muito melhor” que a situação atual das aposentadorias, mas não é nenhuma “concessão extraordinária”. O Brasil não tinha crise econômica, mas o Plano Levy tratou de criar uma. Opiniões de Eduardo Fagnani, amparadas em dados. Leia a entrevista.
CUT: A imprensa e os analistas conservadores têm dito que a fórmula 85/95, apesar de até reconhecerem que vai facilitar a vida dos futuros aposentados, vai prejudicar as contas do país, inclusive produzindo desconfiança nas agências de risco e classificação. Isso é verdade?
Fagnani: Em geral, especialmente no tocante à Previdência, eles cometem uma desonestidade intelectual. Eu acho que há sempre um conflito de interesses, porque em geral eles têm ligações com o sistema financeiro, seja como clientes, seja como parte do conglomerado. Eu andei vendo uns números e fiquei absolutamente assustado. Esses números que estão sendo divulgados são falsos. Ninguém tem esses números.
CUT: Que tipo de números?
Fagnani: Têm sido divulgados números sobre o impacto nas contas da Previdência. São números que sequer o Ministério da Previdência ainda tem, sobre a análise desse impacto. Na verdade, eles continuam fazendo um terrorismo econômico com a Previdência, porque há outra razão: a Previdência é o maior investimento social que existe, de 8% do PIB. Então, o que está em jogo é capturar esses recursos, retroceder nesses direitos para capturar esses recursos.
CUT: Privatizar?
Fagnani: É capturar o recurso, quer dizer, você suprime direitos, faz uma nova reforma da Previdência, ela vai deixar de gastar um tanto, então você pode gastar esse dinheiro com o setor financeira. Esse que é o jogo. Desde a Constituição de 1988, há essa tentativa de demonizar a Previdência. A Previdência é a Geni da República, porque ela é o maior gasto social. Isso eles nunca aceitaram. A gente tem visto mitos sobre o tema, que não correspondem à realidade. Desde o mito que existe déficit, de que no Brasil não existe idade mínima, e por aí vai. No caso do fator, o que a gente tem de entender é o seguinte...
CUT: No caso do fator ou da fórmula 85/95?
Fagnani: No caso do fator previdenciário, as aposentadorias por tempo de contribuição tendem a ser residuais no futuro. Porque esse tipo de aposentadoria diz respeito a pessoas que entraram no mercado de trabalho quando o mercado ainda dava alguma segurança. Então as pessoas ficavam muito tempo num mesmo emprego. Dos anos 90 pra cá, a tendência é que dificilmente um trabalhador fique num mesmo emprego, no mercado formal, por 35 anos. Os dados do ministério (da Previdência) mostram que, em 2011, por exemplo, 55% das aposentadorias foram por idade. 17% por invalidez. E as aposentadorias por tempo de contribuição, que são essas do fator, representam 28% do total. Desde a emenda constitucional 20 de 98, há duas formas de se aposentar. Uma é por idade, 65 anos homem e 60 mulher. Portanto, a tendência é de que, cada vez mais, as aposentadorias por idade sejam preponderantes.
CUT: 65 anos homem e 60 mulher?
Fagnani: Existe a aposentadoria por idade. 65 anos homens e 60 mulheres, mais 18 anos de contribuição. Esta forma tende a ser a aposentadoria preponderante, pelas características do mercado de trabalho. A fórmula 85/95 dá, por exemplo, numa conta hipotética e simplificada, 60 anos de idade mais 35 de contribuição. Isso não existe em lugar nenhum do mundo. Não existe lugar nenhum no mundo em que você tem de comprovar tanto tempo de contribuição e de idade. Se você pegar os países europeus, em geral, a aposentadoria é em torno de 60, 62 anos, 65 no máximo, e muitos nem exigem tempo de contribuição, exigem só tempo de trabalho.
CUT: Por exemplo?
Fagnani: Vários. Na Dinamarca, a idade mínima de aposentadoria é 65 anos. Na França, 62.
CUT: Mas sem pedir tanto tempo de contribuição.
São muito poucos os países que exigem tempo de contribuição. O que eu quero dizer é que as regras brasileiras não são uma jabuticaba, não são um ponto fora da curva. Já são extremamente restritivas. Se você comparar a realidade socioeconômica e demográfica desses países... Como eu vou comparar a situação de um país europeu, do ponto de vista da renda per capita e do PIB, com o Brasil? Não obstante, nós já temos, desde 1998, essa regra de 65 e 60 anos por idade. Com mais a exigência de contribuição, nossas regras são bem mais rígidas que as desses países. Especialmente quando se leva em conta a expectativa de vida. Se levada em consideração a exigência de tempo de contribuição, estamos em patamar semelhante ao dos Estados Unidos, 35 anos.
Professor defende revisão das renúncias fiscais
CUT: No Brasil, então, na situação menos severa, temos de ter no mínimo 18 anos de contribuição, o que já é bastante draconiano.
Fagnani: Em 1998 (na reforma previdenciária pretendida pelo governo FHC), eles queriam estabelecer 65 e 60 anos, mais 35 anos de contribuição, o que seria a hipótese mais restritiva do mundo. Mas a resistência a essa ideia forçou e deu origem a duas formas de contribuição. Ou você se aposenta com 65 ou 60 anos e mais 18 anos de contribuição, ou você se aposenta com 35 ou 30 anos de contribuição, considerando ainda as variações do fator previdenciário. O que eu quero dizer é que afirmam que, no Brasil, não existe aposentadoria por idade, que não existe idade mínima. Isso é mentira. Não dá para comparar a realidade dos países, mas, nos dois casos, temos fórmulas semelhantes aos países escandinavos.
CUT: Não dá pra comparar porque é bem mais fácil chegar aos 60 ou 65 anos na Suécia do que no Brasil?
Fagnani: Não dá pra comparar porque a distribuição de renda lá é bem melhor nesses países. O Brasil tem a 15ª pior distribuição de renda do mundo. Não dá para comparar um país de capitalismo tardio, subdesenvolvido, com países desenvolvidos, em termos de PIB per capita. Embora as diferenças sociais sejam abissais, nós já temos, desde 1998, um padrão de exigência semelhante aos dos países desenvolvidos.
CUT: A fórmula 85/9 suaviza, então, a situação atual, mas continua sendo bastante rígida?
Fagnani: Ainda está dentro de um padrão clássico.
CUT: Mas você acha a fórmula 85/95 melhor e, se sim, que pontos positivos você vê?
Fagnani: É claro que a 85/95 é muito melhor do que o fator. É muito melhor porque não penaliza as pessoas. Não há dúvida alguma que é melhor. Mas isso não é nada absurdo em relação ao que existe em países desenvolvidos. O que ocorre é que você está consertando, ou seja, não está concedendo nada de extraordinário em relação à realidade internacional. E o impacto financeiro tende a ser cada vez menor no futuro, pois as pessoas cada vez mais vão se aposentar por idade.
CUT: No início da entrevista, você dizia que ninguém tem números confiáveis para dizer qual o impacto que a 85/95 vai ter nas contas da Previdência.
Fagnani: Nem o ministério tem. O próprio Levy (Joaquim Levy, ministro da Fazenda) diz que ainda estão fazendo os cálculos.
CUT: Então, não temos também certeza se não causará impacto negativo...
Fagnani: Haverá impacto, mas não este que algumas pessoas estão mencionando. Não será nada significativo como andam dizendo.
CUT: Esse impacto pode ser compensado pelo aumento da arrecadação advindo de melhores aposentadorias no futuro, de mais dinheiro no bolso?
Fagnani: É difícil dizer. Mas veja só, a questão é: vai quebrar a Previdência? Não vai quebrar porque, esse é outro mito, a Previdência não tem déficit. Aqui temos outra desonestidade intelectual que se comete. Não existe déficit nas contas da Previdência à luz da Constituição.
A Previdência é parte da Seguridade Social, não é com a contribuição dos trabalhadores urbanos que se financia a Previdência. A aposentadoria urbana é superavitária, mas não é ela que cobre a aposentadoria rural. Artigo 194 da Constituição. O que financia a aposentadoria urbana, rural, saúde, assistência social e seguro-desemprego é a folha de salários do empregador e do empregado, é a Cofins (Contribuição para Financiamento da Seguridade Social), é a contribuição sobre o lucro e o PIS-PASEP. Isso está na Constituição. E os estudos da ANFIP (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil), a única instituição que faz essa conta, mostram que a Seguridade Social sempre foi superavitária. Em 2013, foi superavitária em R$ 60 bilhões, mesmo com a Desvinculação das Receitas da União, que tira R$ 20 bilhões dessa receita.
Existe dinheiro, portanto, mas esse dinheiro é desviado
CUT: Há outras formas de obter dinheiro para esse fim?
Fagnani: Aqui chegamos a um ponto importante: se você quiser financiar, por que não acaba com a desoneração sobre a folha para as empresas, que a meu ver foi um erro do governo? Em 2014, essa desoneração patronal está retirando da Seguridade R$ 25 bilhões. Essas desonerações chegam a quase 5% do PIB.
E há ainda as renúncias fiscais. A Receita Federal estima que, só em renúncias fiscais, serão R$ 260 bilhões em 2014. Equivalem a praticamente 25% das receitas da União que se deixa de arrecadar só com essas concessões.
Essa ideia de que não tem dinheiro é, comprovadamente, uma falácia. Por que você não renegocia 30% dessas renúncias? Seriam quase R$ 80 bilhões. E eu nem quero falar em reforma tributária, que é taxar dividendos, fortunas.
O ajuste fiscal poderia se dar por aí. Então, esse argumento de que vai quebrar, vai quebrar, vai quebrar, não tem justificativa.
CUT: Outro dia, um especialista em contas públicas afirmou à imprensa que a fórmula 85/95 será vista com maus olhos pelas agências de risco internacionais. Quem são essas agências e como escapar da influência delas?
Fagnani: Essas agências de risco são organizações totalmente desacreditadas. Os bancos americanos que quebraram em 2008 tinham triplo A (nota máxima dada pelas agências, espécie de atestado de boa administração e confiabilidade). Essas agências são espadas que se colocam sobre a cabeça dos países subdesenvolvidos, exigindo superávit primário. O que está em jogo é uma decisão política, de soberania nacional.
CUT: A Argentina tomou algumas medidas de enfrentamento, e está sofrendo um bocado.
Fagnani: Olha, eu não sou ingênuo de achar que temos uma correlação de forças favorável. Mas dizer que não temos alternativa é outra coisa. Eu citei só algumas, como a revisão de parte das renúncias fiscais e a taxação de grandes fortunas. Superávit primário não se consegue apenas com redução de despesas. Porque, se não tem mais onde cortar gastos ou investimentos, onde se ataca? Nos direitos sociais, como é o caso das MPs 664 e 665. Por que não aumentar receitas em lugar de cortar direitos sociais?
CUT: Mesmo que não fizéssemos essa revisão das renúncias fiscais nem taxássemos as grandes fortunas, e apenas aprovássemos a 85/95, ainda assim não quebraríamos o país?
Fagnani: Imagina, isso é uma estultice sem tamanho. Isso é terrorismo econômico. É como se o país não tivesse alternativa. Você tem essas alternativas de que falamos e ainda tem a alternativa de o país crescer. Se o país crescer, aumentam as receitas. O Brasil foi o país que mais fez superávit primário no mundo de 2007 a 2013. Porque a economia crescia.
Brasil já tem idade mínima para aposentadoria, lembra Fagnani
CUT: E mesmo assim, não tivemos nenhuma concessão por parte das agências de risco. Poderíamos seguir a cartilha a vida toda e ainda assim seríamos punidos.
Fagnani: Com essa gente, quanto mais se dá, mais eles querem. Isso foge um pouco da nossa pauta, mas o fato é que nosso governo não soube se defender. Por exemplo, essa crise de que tanto falam. Essa crise não existe. Essa é uma crise fabricada. No final de 2014, nossa taxa de desemprego era de 4,8%. Que país do mundo tem uma taxa de 4,8% de desemprego? Nenhum. Como se pode dizer que estávamos numa crise? Relação dívida líquida e PIB, 35%. Qual a relação dívida líquida e PIB na Europa? 150%, em média. Japão? 200%. Eles devem dois PIBs, a Europa deve um PIB e meio. Como é que nós estamos em crise?
CUT: Isso no final de 2014?
Fagnani: Sim. Repare, há uma crise internacional, e nós não somos uma ilha, então há reflexos aqui dentro. Acho que precisávamos fazer um ajuste. Mas não esse ajuste que o governo propôs. Agora sim, em 2015, vai haver crise. Estamos no quarto mês seguido de queda na produção industrial, a renda do trabalhador caiu 4% em relação a março do ano passado. O pacote do Levy corta gastos, corta investimentos, freia a Caixa, freia o Banco do Brasil, freia o BNDES.
O que eu quero insistir é que esse argumento das agências de risco, de que vai ter crise fiscal, crise sem precedentes, tem sido massacrado desde 1988. É a tese do “país ingovernável”. O que os economistas do mercado diziam sobre aumentar o salário mínimo? “Vai quebrar a Previdência”. E o que aconteceu? Aumentamos o salário mínimo 70% acima da inflação e a Previdência urbana é superavitária. Terrorismo puro.
CUT: Você tem ideia do tamanho desse superávit?
Fagnani: Em 2012, que são números que tenho, a Previdência urbana teve superávit de R$ 25 bilhões, tirando as renúncias. Mas se você colocar as renúncias, o superávit foi de R$ 40 bi. Em 2007, o ministro Nelson Barbosa enfrentou essa questão. Ele disse que, se o governo quisesse fazer renúncia, que cobrisse o valor com recursos do Tesouro. A partir dali o ministério começou a fazer esse cálculo das renúncias. A Previdência tem tido superávit porque o Brasil vinha crescendo. Agora, sim, podemos ter problemas, mas não por causa do fator, mas porque vamos produzir uma recessão, por causa da redução de receitas vinda desse pacote.
CUT: Vamos fazer um exercício de imaginação. Se as medidas recessivas adotadas fossem suspensas a partir deste momento, quanto tempo levaríamos para eliminar os efeitos negativos?
Fagnani: Esse é um problema. Eu discordo dessa ideia do governo de que vamos fazer um ajuste agora e, depois, o país vai voltar a crescer. Isso não existe em economia. Economia é feita de expectativas. Quando você diz “vou puxar o freio”, todas as previsões que os empresários farão nos próximos anos serão de puxar o freio. Desfazer essas expectativas leva um tempo.
Originalmente publicada no site da CUT: http://www.cut.org.br/noticias/formula-85-95-nao-vai-piorar-as-contas-do-pais-diz-professor-da-unicamp-49a7/