O salário do medo (e do Armagedom)
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- José Martins
- 12/01/2019
A evolução dos salários mundiais no decorrer dos ciclos econômicos mais recentes mostra melhor a natureza depredadora da economia do imperialismo. Não como um mero problema de desigualdade de rendimentos, como é costumeiramente salientado pelos reformadores sociais de direita ou de esquerda, mas como uma questão de crescente exploração das diferentes classes capitalistas nacionais sobre a classe operária internacional.
Nos últimos dois ciclos econômicos de superprodução, o mundo do capital desenfreado mudou de forma surpreendente as perspectivas políticas e sociais em todas as nações do globo. Sem exceção.
A miséria se potencializa na esteira da exploração. Aumento de produtividade da força de trabalho assalariado e diminuição dos salários torna-se uma tenebrosa unidade que convive harmoniosamente na totalidade do mundo produtor de capital. Nitroglicerina pura.
Em 2017, por exemplo, o crescimento do salário real global foi não apenas menor que em 2016, mas caiu para sua mais baixa taxa de crescimento desde 2008, mantendo abaixo dos níveis obtidos em 2006/7, imediatamente antes da última crise cíclica global. Uma sorte de congelamento relativo dos salários reais.
Quem dá o recado é a própria Organização Internacional do Trabalho (OIT), sediada em Genebra, Suíça, em seu mais recente relatório anual Global Wage Report 2018/19.
De acordo com o relatório, existe no mundo cerca de 3.3 bilhões de pessoas no mercado de trabalho. É a chamada população economicamente ativa. Deste total, aproximadamente 54%, quer dizer, 1.8 bilhão de pessoas são trabalhadoras assalariadas. Há vinte e cinco anos eram 1.04 bilhão. Houve um acréscimo de 760 milhões de trabalhadores assalariados. Aproximadamente 42% de acréscimo da massa de trabalhadores assalariados em um quarto de século.
Não há mais o que explorar
Alguém já ouviu falar de algum outro período histórico mais disruptivo do que este? Nem as grandes guerras realizaram tamanha façanha.
Os últimos vinte e cinco anos foram o período mais intenso de globalização do capital na história do regime capitalista de produção. Completou-se a globalização do exército industrial de reserva.
A lei geral da acumulação capitalista nunca foi tão livre para ser praticada. E isso mudou dramaticamente todas as circunstâncias tradicionais de funcionamento do mercado mundial.
Não existe mais espaço territorial virgem no globo terrestre. Estupro capitalista planetário. Agora, em todos os cantos do globo o que existe é trabalhador livre de qualquer propriedade de meio de produção a vender sua força de trabalho no mercado em troca de um salário (uma quantidade de moeda) para, no final do processo, ser explorado nas linhas de produção de valor e de mais-valia (capital).
A principal mudança provocada pela plena realização do exército industrial de reserva foi um novo desenvolvimento desigual e combinado dos diferentes salários entre as nações. Veja no gráfico abaixo essa evolução no longo prazo.
No longo prazo, entre 1999 e 2017, a OIT calcula que a média dos salários no, grupo das vinte maiores economias do mundo (G-20), cresceu 55%. Entretanto, nesta média global existem grandes disparidades entre, de um lado, as economias dominadas (“emergings” no gráfico), onde a média dos salários reais triplicou, no período, e, de outro lado, as economias dominantes (“advanced”, no gráfico) onde essa média cresceu apenas 9%.
A despeito de um crescimento relativamente mais rápido dos salários nas economias dominadas, eles continuam mais baixos do que nas economias dominantes do G20.
E o salário?
Não se pode imaginar que esse crescimento relativamente mais rápido dos salários nas economias dominadas quer dizer que os trabalhadores nestes países tenham alcançado altos salários nos últimos dez anos.
A duplicação do salário real de um trabalhador metalúrgico na China, no período 2008/2017, por exemplo, fez apenas aproximá-lo do que já existia no Brasil, Argentina, México, Turquia, e outras miseráveis nações dominadas, mas o mantém ainda a uma longa distância dos salários industriais nas economias dominantes.
A disparidade entre os salários reais mensais entre os dois blocos de economias dominantes e dominadas continua muito elevada. Convertendo todas as médias salariais das economias do G20 em dólar e aplicando a paridade do poder de compra (PPC) das taxas de câmbio nacionais, a OIT registra uma média salarial de US$ 3,250 por mês nas economias dominantes e de US$ 1,550 por mês nas economias dominadas.
É claro que se o cálculo da OIT não aplicasse a PPC às taxas de câmbio correntes, a diferença salarial entre os dois blocos seria muito maior.
Entretanto, mesmo com essa grande diferença, a elevação relativamente mais rápida dos salários reais nas economias dominadas causou um impacto fulminante na sua já travada taxa de exploração (produtividade) e, consequentemente, em sua competitividade frente às economias dominantes no mercado mundial.
E não se trata aqui apenas de uma perda de competitividade no comércio externo (exportação de mercadorias-capital), mas principalmente de perda de atratividade territorial pela repartição e alocação global das gigantes empresas mundiais. Grande quantidade destas últimas já retornaram para sua terra natal, principalmente os EUA de Donald Trump.
Os limites (e crise) atuais das economias dominadas encontram-se exatamente nesta sua rigidez genética de aumentar a produtividade do trabalho, ao contrário do que se observa nas economias dominantes, onde predomina a mais-valia relativa.
Exploração do trabalho
Nas economias dominadas, onde predomina a mais-valia absoluta, como Brasil, China etc., a única forma de aumentar a “produtividade” é reduzindo ainda mais o salário real abaixo do seu valor. O travamento do crescimento econômico é imediato. O atual período de expansão global foi a era da estagnação da produção (a era dos “pibinhos”) para América Latina, África e Ásia.
Neste sentido, as diferentes variações do nível dos salários entre dominadas e dominantes, no decorrer dos ciclos econômicos, tornam-se decisivos fatores de desigualdade na atual expansão cíclica 2009/2018 entre estes dois blocos da economia do imperialismo.
Por falar em diferentes tipos de salários nacionais que aparecem na contabilidade dos capitalistas, é importante salientar que o relativo congelamento dos salários reais no decorrer dos ciclos mais recentes da economia global, principalmente nas economias dominantes, é confirmado e aparece mais fortemente quando se considera o salário por hora nas manufaturas.
A OIT não leva em conta no seu relatório o salário por hora e justifica: “O salario real é calculado usando o salário bruto mensal, em lugar das taxas de salários horários, que são menos frequentemente disponíveis, onde suas flutuações refletem mais os salários horários e a média das horas trabalhadas”.
Repetimos que, diferentemente do salário nominal (ou real), o salário por hora é uma categoria de custo industrial. Da esfera da produção. Esse procedimento da OIT de misturar alhos com bugalhos não considera o fato muito importante de que na produção capitalista o salário por hora só é aplicado para trabalhadores horistas (produtivos) e jamais para assalariados mensalistas (improdutivos).
Quem imaginar que isso é “muito abstrato” basta visitar qualquer manufatura em qualquer lugar do mundo e ver como isso se passa in actu.
Nas esferas improdutivas de mais-valia, como comércio, serviços, bancos, etc., os salários são sempre mensais. Por isso não passa de mistificação da economia vulgar querer calcular produtividade do trabalho (ou mesmo a “multifatorial”) nos serviços prestados nestas esferas.
Questão inescapável para qualquer análise mais rigorosa da dinâmica capitalista: só levando em conta essas importantes diferenças de salários que outros fenômenos importantes manifestados no ciclo econômico podem ser devidamente avaliados.
Veja-se, por exemplo, importante paradoxo (pelo menos para a economia vulgar) ocorrendo no período atual: as taxas recordes de baixo desemprego coincidem com inexpressivos incrementos do salário real.
Nas economias dominantes, de maneira muito mais clara que nas dominadas, o congelamento relativo dos salários no atual período de expansão converge com forte crescimento da produção, taxas de quase pleno emprego da força de trabalho e, para complicar ainda mais o entendimento vulgar, pressões deflacionárias nos preços ao consumidor (baixa inflação).
Misterioso (e imobilizante) paradoxo também para o comitê de política monetária do Federal Reserve Bank (Fed, banco central dos EUA), que não consegue mais decidir se a taxa básica de juros deve ser elevada ou diminuída.
Este fenômeno ocorrido destacadamente nas três principais economias dominantes (EUA, Alemanha e Japão) é tratado no relatório da OIT como “surpreendente em todos os sentidos”. Veja como seus economistas observam o fenômeno:
Números
“Nas economias dominantes [higt-income economies] o baixo incremento nos salários reais em um contexto de forte crescimento econômico é ainda mais surpreendente com a queda generalizada da taxa de desemprego. A taxa de desemprego na União Europeia (EU28) encontrava-se em 6.5% em abril 2018, a mais baixa taxa ocorrida desde dezembro 2008. Nos Estados Unidos, o desemprego está próximo do seu nível mais baixo desde os anos 1960, caindo para 3.8% em maio 2018. Considera-se, em geral, que existe uma relação inversa entre taxa de desemprego e crescimento do salário. Assim, quando as taxas de desemprego caem acelera-se o crescimento dos salários e, inversamente, quando as taxas de desemprego aumentam o crescimento dos salários diminui. Em 2016 e 2017 essa relação não apareceu de maneira muito forte [sic]”
Nas estatísticas econômicas oficiais dos EUA essa estratégica variável dos salários por hora, que, é bom repetir, só existe nas esferas produtivas da economia, é fartamente disponível. Veja no gráfico abaixo sua evolução nas manufaturas do país.
Diferentemente das estatísticas do salário real mensal, que mistura trabalho assalariado produtivo e improdutivo, o salário por hora nas manufaturas é importante e rigorosa variável para se determinar o custo unitário do trabalho e, consequentemente, a taxa de produtividade (ou de mais-valia) na totalidade da economia.
Nunca esquecer que na totalidade da economia mundial predomina a mais-valia relativa. Por isso pode-se falar em produtividade média global. Sem fazer confusão: Aristóteles, Hegel, Marx e outras cabeças pensantes já demonstraram pacientemente ao distinto público que a totalidade é maior que a soma das partes.
As partes dominadas dentro desta totalidade (Brasil, Argentina etc.), onde predomina a mais-valia absoluta, são párias no sistema imperialista. Não possuem moeda forte (conversível); nem forte sistema financeiro nacional privado e autônomo; nem possibilidade de política econômica ou monetária regulatória anticíclica – que o esclarecido economista Guido Mantega tentou no Brasil, virou o satanás para os economistas do imperialismo e parasitas em geral, está próximo de ser encarcerado por “corrupção”; nem produção agrícola de alimento de base integrada ao mercado interno com estoques reguladores, modernas redes de silos e armazéns, transporte multimodal e logística territorial etc.
Nesta dura realidade da economia do imperialismo a taxa de exploração (ou de produtividade) varia inversamente ao custo unitário do trabalho. Essa relação social é a mais profunda e determinante da acumulação global do capital e, portanto, da dinâmica das suas principais variáveis no decorrer do ciclo periódico. Tanto na expansão quanto nos seus limites.
Nota-se uma coisa muito importante: em todo o relatório da OIT são apresentados em abundância dados sobre a elevação maior ou menor da produtividade nas economias dominantes e nenhuma vírgula a respeito para as economias dominadas.
Isso é devido às considerações teóricas que fizemos acima sobre as transformações recentes do desenvolvimento desigual e combinado entre as dominantes e dominadas na economia do imperialismo. E sobre a perda de capacidade de crescimento do produto nas dominadas no atual período de expansão 2009/2018.
Além da superprodução global de capital existem seus limites. O atual congelamento relativo dos salários reais nas economias dominantes é comandado principalmente por uma regra geral das ondulações da acumulação do capital global. Que nada mais é do que a aplicação prática da já mencionada lei geral da acumulação do capital (Marx, livro 1 de “O Capital”).
Esta lei de exploração da força de trabalho global estabelece que a possível superação das crises periódicas de superprodução só pode ser efetivada com a interrupção da elevação do custo unitário do trabalho. Essa elevação ocorre organicamente à superprodução, como um fenômeno que tenciona e ameaça progressivamente os cálculos capitalistas no decorrer do período de expansão.
Isso também aparece na forma mais popular e superficial do processo – no território da Macroeconomia e do capital financeiro, mercado de capitais, etc. – com as inócuas tentativas de administração da variação dos preços de mercado (“inflação”) e das taxas de juros pelos bancos centrais, como se verifica quotidianamente, que já abordamos acima, com o Fed dos EUA.
Essa lei geral de funcionamento dos ciclos econômicos aparece de maneira muito clara no gráfico acima. É altamente relevante que o custo unitário do trabalho no 2º trimestre de 2018 na indústria de manufaturas dos EUA tenha sido rigorosamente igual ao apurado no 2º trimestre de 2009, que destacamos no gráfico. Este último era o exato trimestre que a economia capitalista mundial ainda lutava contra o mais pesado choque cíclico do pós-guerra (1945) e procurava superá-lo.
Como se pode observar, essa interrupção da elevação do salário por hora nas manufaturas estadunidenses para evitar a falência do sistema produtor de capital e retomar um novo período de expansão aparece efetivamente como um congelamento do valor da massa salarial contabilizada na formação do custo unitário das mercadorias-capital produzidas.
É justamente essa necessidade da acumulação capitalista que se manifesta nas superestruturas políticas, nas ações políticas dos governos nacionais com suas populares “reformas” fiscais, trabalhistas, da Previdência Social, achatando ou eliminando regulações sociais e outras fontes do salário indireto da classe trabalhadora, vitais para sua reprodução física.
Uma derradeira observação
Resumidamente, a globalização do exército industrial de reserva acima destacada permitiu a combinação global da miséria (pagamento do salário abaixo do seu valor), tanto no centro quanto na periferia, sem aliviar as chicotadas para o aumento da produtividade da classe operária mundial.
Combinação material de exploração e miséria na totalidade do sistema. O salário do medo domina todo o sistema. Mas nada é neutro e muito menos natural na economia política. A ação dos capitalistas detonou um processo de desfalecimento político no próprio coração do sistema.
A tensão social da luta de classes dentro das maiores economias do mundo (França, EUA, Alemanha...) se eleva a níveis inéditos no período pós-guerra (1945). A ingovernabilidade e o espectro da guerra civil empurram as diferentes burguesias nacionais para o Estado organizado. Democrático, mas organizado.
No centro do sistema, principalmente, a palavra de ordem da burguesia é se preparar para a crise e para evitar a consequente guerra civil no interior de seus territórios nacionais.
O que era impensável até recentemente, agora é nova e irreversível realidade para o grande público: protecionismo e nacionalismo econômico do governo estadunidense; veloz fragmentação das instituições de relações internacionais e de acordos multilaterais; dificuldades para a formatação da nova ordem (ou desordem) geopolítica do imperialismo, rearmamento europeu, japonês etc.
Os governos nacionalistas e armamentistas, mais preparados para a organização do Estado nacional, estão próximos do poder na Alemanha, Itália, França, Inglaterra, Japão... Esses novos governos serão os executores da nova guerra mundial.
Essa atualidade do Armagedom, da inevitabilidade de nova guerra imperialista, brota das profundezas da base material do regime, da forma como se organizou recentemente a produção de capital e que ameaça de morte a classe proletária internacional.
José Martins é economista e editor de Crítica da Economia, onde o texto foi originalmente publicado.