Correio da Cidadania

A falta que faz uma simples lei

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O artigo é de julho do ano passado, mas, por incrível que pareça, esses temas até hoje estão embaixo do tapete.

Todo esse caos político e jurídico que estamos passando no país poderia ser minimizado se tivéssemos uma lei que punisse o velho estelionato eleitoral. Algo que não damos importância mesmo com o duro termo “estelionato”.

A situação mais comum no Brasil é ter políticos candidatos com uma plataforma de princípios que, uma vez eleitos, praticam exatamente o oposto sem qualquer consequência.

A velha desculpa da “governabilidade” é típica do nosso subdesenvolvimento político, pois, se essa tese é aceita, então qualquer coisa serve como campanha, uma vez que a imprevisível “governabilidade” imporá seus desígnios, independentemente dos desejos dos eleitores.

Muitos políticos cometeram essa traição, mas, certamente, ninguém ultrapassou tantos limites quanto o ex-presidente Lula.

Não só o PT levantava a bandeira da moralidade e do combate à corrupção, como prometia mudanças políticas. Por um curto período, o governo foi composto por especialistas em ministérios e empresas estatais. Alguns meses depois, sem o mínimo disfarce ou cerimônia, a mesma velha base de apoio do governo anterior, totalmente ligada no arcaico PMDB, foi alçada ao poder. Nada de mudança política.

O que é grave é que esse apoio se fez mediante a entrega de ministérios e estatais “de porteira fechada”, o que revela um pacto de governabilidade que conduz a políticas públicas fragmentadas e total descompromisso com o que foi pregado na eleição.

Como exemplo máximo dessa traição de princípios que mistura partidos ditos ideologicamente opostos, basta lembrar que o senador Romero Jucá permaneceu na elite do poder desde 1995. Foi líder do governo FHC, ministro no governo Lula, outra vez líder no governo Dilma e Ministro no governo Temer. Quando esse “sintoma” não alerta a sociedade que princípios foram abandonados, e o eleito não é mais o mesmo, todo o debate está comprometido pela não compreensão do que ocorre.

Se o Brasil tivesse uma simples lei que exigisse compromissos por escrito dos candidatos, certamente governos estariam em maus lençóis. Os Estados Unidos têm o “recall” que já ocorreu em diversos estados. Por que não temos algo parecido?

A justiça só funciona a contento quando é temida. No Brasil, ao contrário, ela é desafiada por recursos jurídicos infindáveis. Se tivéssemos esse mecanismo para governadores e prefeitos, provavelmente a sensação de impunidade e o trajeto político seriam outros.

Aqui, desprezam-se compromissos e há uma sensação de que um governante só pode perder o cargo se roubar! Ora, se governar significa apenas não roubar, estamos totalmente sem rumo, pois políticas adotadas podem perfeitamente atender interesses privados e fazer um enorme estrago no interesse público sem que se possa chamar de roubo.

O caso do setor elétrico brasileiro é um excelente exemplo de como as “ideologias” partidárias são abandonadas em nome de uma repartição de poder que só pode ser justificada por interesses privados incrustados no Estado.

A ex-presidente Dilma Rousseff foi a Ministra de Minas e Energia do governo Lula. Existe um documento assinado por ela e pelo próprio presidente “Diretrizes e Linhas de Ação para o Setor Elétrico Brasileiro” (2002) onde está escrito o seguinte:

“Será criado um novo modelo de gestão, que contemple o desenvolvimento organizacional e administrativo das empresas federais e estaduais, explicitando suas responsabilidades sociais, fazendo-as respeitar os direitos do consumidor e subordinando-as ao controle pela sociedade. Haverá obrigatoriedade de estabelecer nessas empresas contratos de gestão que assegurem administração transparente, realizada por profissionais competentes, definindo papéis e fixando prazos e metas, especialmente no que concerne à implementação dos planos setoriais de investimento, ou em parceria com a iniciativa privada”.

Apesar disso tudo, como se sabe, o oposto foi adotado. Na maioria das vezes, a administração foi entregue a políticos e, mesmo quando especialistas ocupavam os cargos, a falta de transparência não garantia a preservação do interesse público.

O mesmo documento proclamava mudanças na modelagem que levou ao racionamento. Nenhuma alteração estrutural foi adotada. Poderíamos até usar a irônica analogia de nomear o modelo de Romero Jucá, pois, como ele, apesar dos defeitos, atravessou governos incólume.

A estatal Eletrobrás, em seus 56 anos de existência, teve 24 presidentes, sendo que apenas dois vieram de seus próprios quadros. Alguns sequer eram ligados à área elétrica. No período Lula – Dilma, seis presidentes ocuparam o cargo, o que mostra a dança de cadeiras ligadas à “governabilidade”.

Quando se leva em conta que, além do ministério e da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), hoje o setor é comandado por três organizações (EPE, ONS, e CCEE), a “dança” se estendeu para esses órgãos, que hoje, fazem o que a Eletrobrás fazia no passado.

A influência política e divisão de poder ligada à “governabilidade” ampliam a já nociva fragmentação de responsabilidades, com óbvios reflexos técnicos.

Nenhuma ideia que preserve a Eletrobrás como empresa estratégica poderá ter sucesso sem que se desmonte a impressão de que estatais são meros “puxadinhos” do Palácio do Planalto. Se tivéssemos contratos de gestão firmados e monitorados, que trajetória política teríamos assistido nos últimos 16 anos?

O sermão que defende a privatização é muito mais um discurso de abandono do Estado como representante da sociedade do que uma solução. Infelizmente, voltamos ao que foi escrito e abandonado em 2002. É preciso reler tudo.


Roberto D’Araujo é engenheiro, ex-assessor da Eletrobrás e diretor do Instituto Ilumina.

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