Depois do 15 de maio
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- Fernando Grossman e José Martins
- 28/05/2019
Em uma semana plena de coisas boas – o povo de novo lotando e protestando contra o governo capitalista nas ruas e avenidas de mais de 220 grandes cidades brasileiras – muito longe dali uma cena inacreditável mostrava bem a atual situação de apodrecimento da política no maior país da América do Sul.
No exato momento em que milhões de pessoas protestavam contra o obscurantismo de uma burguesia que pretende destruir sumariamente, dentre tantas outras coisas importantes, as Universidades públicas e o que ainda resta de pesquisa científica no país, na cidade estadunidense de Dallas, Texas, Jair Messias Bolsonaro, digníssimo presidente da Republica do Brasil, prestava solene continência à bandeira dos Estados Unidos.
Pouco antes ele já tinha declarado que “desde criancinha eu amo este país”. Não se tem notícia de que algum outro presidente estrangeiro tenha feito isso em suas visitas aos EUA, que se tenha mostrado tão lambe-botas do imperialismo.
O pior é que nada disso é fruto do acaso, de uma trapalhada a mais de um presidente pequeno-burguês que se diferencia dos anteriores apenas pela sua indisfarçável boçalidade. A política, sem dúvida, é a mesma de sempre. Liberalismo e populismo em diversas combinações. Só muda a embalagem.
Há de fato muito mais causalidade do que casualidade na continência de Bolsonaro à bandeira estadunidense.
Primo, mostra que as classes dominantes brasileiras nunca caíram tão baixo como agora em sua longa história de submissão ao imperialismo estadunidense.
Secondo, e não menos importante, essas manifestações texanas da índole submissa das classes dominantes brasileiras têm tudo a ver com o agravamento da sua ingovernabilidade política interna, neste início de 2019. A descarada prostituição geopolítica externa é mera consequência da podridão política interna.
A economia desce e a ingovernabilidade sobe. O chão que sustenta os capitalistas, a propriedade privada e a política, no Brasil, começa a desaparecer subitamente.
Da euforia à frustração
Em artigo publicado na sexta-feira (17) o editor de economia do jornal O Estado de S. Paulo escreve em tom de anúncio fúnebre: “Tudo que se esperava da economia brasileira para este ano parece estar indo por água abaixo. A deterioração das expectativas foi rápida demais. Em janeiro, os analistas ouvidos pelo Banco Central na pesquisa Focus imaginavam que o país cresceria 2,5% este ano. Agora, essa mesma pesquisa aponta para 1,45%. Mas mesmo esse número já é considerado otimista. Há gente falando em crescimento da economia abaixo de 1%. Ou seja, mais um ano de estagnação”.
Correto. Mais um ano de estagnação. Não de depressão, como alguns economistas do mercado mais apressados estão prevendo. A depressão da economia brasileira depende da economia mundial e esta continua crescendo.
A depressão só ocorrerá, portanto, quando explodir a China e, instantaneamente, a bolsa de valores de Nova York etc.
A depressão econômica – PIB caindo entre 5% e 10%, desemprego subindo a 25% ou 30%, e outras coisas socialmente inaceitáveis – só ocorrerá no Brasil quando se manifestar concretamente o próximo período de crise periódica de superprodução do capital global.
A crise de Marx e Engels. Não a dos marxistas bastardos da crise permanente, estrutural, longa depressão e outras asneiras. No momento em que eclode a crise de superprodução de capital o tempo da política desaparece e a ingovernabilidade metamorfoseia-se em complexo processo de guerra civil.
Entretanto, esse roteiro nem sempre se realiza com tanta exatidão de tempo e velocidade em todos os lugares. No Brasil, por exemplo, a crise política nacional, que vem desde o segundo mandato de Dilma Rousseff, pelo menos, agravou-se tão profundamente, nesta última semana, como se a própria depressão econômica já estivesse chegando.
Uma consequência importante que se viu na última semana. Antes o único discurso que eles tinham frente à estagnação e ao desemprego era culpar a herança maldita de governos anteriores e o atraso na aprovação da reforma da Previdência como tábua milagrosa e salvadora para escapar da crise e voltar a crescer.
Agora, com o pavor de um PIB negativo neste ano, desemprego crescente e aumento descontrolado do déficit público – mesmo que ocorra a cada vez mais improvável aprovação da reforma da Previdência – esses álibis da herança maldita e outras bobagens já não convencem mais. Desaparecem de cena.
Tudo agora é uma sucessão de apavorantes impossibilidades. Além das inócuas reformas da Previdência de Paulo Guedes e da Tributária de Marcos “imposto único” Cintra, mais nada. Só o vazio, o dilúvio.
Todas as frações das classes dominantes pressionam o ministro da Economia para que ele pare de repetir o nauseabundo velho discurso e faça imediatamente uma política econômica e monetária capaz de estancar a sangria.
Acontece que apenas a perspectiva de continuidade da estagnação da economia já foi suficiente para que a política entrasse em quadro de irreversível instabilidade.
O 15M
Um fato importante apressou essa instabilidade. Os milhões de estudantes, professores e cientistas que ocuparam as ruas e avenidas dia 15 de maio foram a espoleta para a explosão desta instabilidade institucional.
A política nacional foi encaminhada nesta semana para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do sistema. E um novo quadro de poder institucional e conspirações que não acabam mais tomam conta do Planalto Central.
Terra em transe. A barra está pesada para os capitalistas. O maravilhoso protesto das camadas e categorias inteligentes da nação, em 15 de maio, abafou qualquer ilusão de que Bolsonaro possa continuar governando por muito mais tempo.
A improvável capacidade de Paulo Guedes fazer a necessária política econômica para desviar o país da catástrofe cai junto com a incapacidade de Bolsonaro continuar governando.
O que eles tentam agora? Para estancar a ingovernabilidade repentinamente aprofundada tentam deslocar funções fundamentais do executivo (Bolsonaro) para o Parlamento (Rodrigo Maia) e para o Supremo Tribunal Federal (Roberto Barroso).
Neste acordão neoliberal de combate ao incêndio da ingovernabilidade, o general Mourão seria o presidente de honra. E chefe da ordem política e social. Simples. Resta saber, como diria Garrincha, se o outro time foi avisado deste acordão.
De todo modo, o que se presencia nesta semana é que a velocidade do protagonismo de Maia é impressionante. A burguesia não perde tempo. Em matéria intitulada “Maia defende ações contra pobreza enquanto reforma não vem”, o jornal Valor Econômico relata discurso de Maia para capitalistas no Rio de Janeiro, no dia 17 (sexta).
“O país precisa de políticas públicas de curto prazo para enfrentar o desemprego, a pobreza e a fome, enquanto os efeitos da reforma da Previdência não vêm, disse hoje o presidente da Câmara de Deputados, Rodrigo Maia (DEM, RJ), ao participar do Encontro Nacional da Indústria de Construção, em um hotel no Rio de Janeiro”.
Para alcançar seus objetivos o autoproclamado primeiro-ministro do Brasil, Rodrigo Maia, defende a privatização dos serviços públicos. Acabar com o sistema público da Saúde, por exemplo.
No curto prazo, políticas de combate à pobreza e ao desemprego. Quais seriam? Não disse uma palavra.
Balbúrdia sistêmica
Na última semana o autoproclamado primeiro ministro chamou para si também todas as funções de formulação da política econômica. Das reformas também. Com Maia, todas estas funções do executivo serão ainda mais neoliberais que com Paulo Guedes. É o plano dos capitalistas para brecar a ingovernabilidade.
Mas está apenas começando a guerra aberta entre as diversas frações e fragmentos da ordem democrática das classes dominantes – extrema direita, direita, centro-direita, centro, centro esquerda e esquerda.
Tão diferenciados no discurso e tão iguais na ação, os programas que separam estes blocos do regime democrático, com variações de cor e radicalidade, serão, inevitavelmente, os seguintes: de um lado, variações em torno do acordão neoliberal e imperialista padrão tipo Maia/Barroso/Mourão atualmente em ativa gestação; de outro lado, mais à frente na conjuntura, mais próximo do choque global, algum tipo de nacionalismo e Keynes/marxismo, também com inúmeras variações e cores de seus respectivos blocos.
Por enquanto, na espreita do fortíssimo protagonismo atual de Maia e seu programa de aprofundamento neoliberal e imperialista, a explosão social pede passagem.
Desemprego, fome, destruição da classe média assalariada, burocracia sindical etc. fazem parte da aposta e do programa desta fração dominante de capitalistas nativos e internacionais.
Não apenas de capitalistas financeiros, como amam demonizar a esquerda democrática, mas principalmente industriais, comércio, rurais, etc. A burguesia industrial é a que puxa a fila desta arquitetura da destruição.
O capital produtivo de lucro e respectivas classes proprietárias predominam sobre o capital produtivo de juros, de renda etc. e respectivas classes igualmente proprietárias da terra e do capital.
Mas no meio do caminho tem uma pedra. Tem uma pedra no meio do caminho.
Acontece que mudar as condições sociais de exploração da classe operária e de valorização do capital em economias dominadas (mais valia absoluta) para uma integração rigorosa às cadeias produtivas globais de capital é mais perigoso politicamente que em países dominantes (mais-valia relativa).
Existem limites muito rígidos para o ajuste de competitividade no Brasil via destruição de massas de salários. Este é o limite do crescimento econômico nacional.
A contradição entre trabalho necessário e sobretrabalho não pago é muito rígida em economias dominadas. Para arrochar um pouquinho mais a miséria dos trabalhadores, o regime político balança. Toda a superestrutura de dominação entra em convulsão.
Por isso o sistema jurídico é tão frágil nestes países onde predomina a mais-valia absoluta como forma preponderante da produção de capital.
“Onde não se paga o salário justo não pode existir justiça” (Smith). É por isso que é muito difícil que esse programa do acordão de Maia e consortes alcance qualquer resultado de destravamento da acumulação do capital no Brasil.
E a perspectiva da luta de classes neste cenário pré-histórico e civilizatório tende a ser cada vez mais favorável à emergência da classe proletária absolutamente independente e blindada teoricamente dos viciados protocolos democráticos que comandam a política das diversas classes e frações das classes dominantes acima enumeradas.
Retirado de Crítica da Economia.