O capital em coma induzido
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- José Antônio Martins
- 21/05/2020
O capitalismo na UTI
Daqui pra frente os capitalistas de todo o mundo sentirão mais intensamente o gosto amargo da lei do valor. Desta lei da gravidade da teoria econômica que determina que só o tempo médio socialmente necessário de trabalho humano produz valor.
Ora, o que é o capital senão um valor em processo, um valor que procura se valorizar? Um valor que sai da esfera da circulação, entra na esfera da produção para se valorizar, se multiplicar, e, fechando o ciclo, volta para a circulação para se realizar e se perpetuar?
Portanto, sem trabalho humano, nada de capital. Sem o emprego de massas de força de trabalho industrial assalariado sendo ininterruptamente consumidas nas linhas de produção de mercadorias, nada de capital.
Sem classe operária internacional sendo explorada nas linhas de produção globais pelas diferentes classes burguesas nacionais, nada de capital.
É pensando nestes fragmentos teóricos elementares que não poderia passar despercebida a inimaginável explosão dos pedidos de seguro-desemprego nos EUA nos últimos trinta dias.
Que continuaram a aumentar absurdamente. É o que informava na quinta-feira, 9 de abril, o Departamento do Trabalho dos EUA: mais 6,6 milhões de estadunidenses entraram com pedidos de desemprego pela primeira vez na semana passada.
Isso eleva o total de pedidos nas últimas três semanas para mais de 16 milhões de desempregados. Comparando-se esses pedidos com as 151 milhões de pessoas em folha de pagamento (população economicamente ativa) no último relatório mensal de emprego, isso significa que os EUA perderam 10% da força de trabalho em três semanas. Isto é inédito na história econômica mundial.
Veja no gráfico abaixo a evolução no longo prazo (desde 1970) dos pedidos semanais de seguro-desemprego nos EUA.
Pedidos semanais de seguro-desemprego nos EUA.
Um quadro surreal. Outras comparações importantes a esta surrealidade. Em todo o período de crise de 2008/2009 houve uma perda de 8,7 milhões de empregos nos EUA. Só nas últimas três semanas de abril ocorreram 16,8 milhões de novos pedidos de seguro desemprego. Em menos de um mês, o dobro das perdas de emprego ocorridas em todo o último período de crise.
Durante todo o último período de expansão cíclica (de 2/1/2010 a 2/1/2020) ocorreu a criação de 24,8 milhões de empregos nos EUA. Apenas 8 milhões a mais que os pedidos de desemprego das últimas três semanas. O mês de maio ultrapassou a diferença.
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A curva do vírus capital continua crescente. Quando iniciará o achatamento da curva desta pandemia social?
Este inusitado pico de desemprego altamente concentrado de trabalho humano perturba a alma proprietária dos capitalistas. O processo de conservação e de valorização do capital não pode ser interrompido por muito tempo, senão é o próprio capital que perece.
É o próprio regime social baseado na propriedade privada capitalista que fica vulnerável a uma possível extinção revolucionária. O problema é saber o grau desta vulnerabilidade na presente crise geral que se abre.
É isto, apenas isto, que conta nas análises e em toda essa discussão sobre a situação atual e perspectivas de ser capital. É para isto que a Crítica da Economia existe.
É neste sentido que as breves considerações teóricas iniciais são importantes para a observação de uma crucial particularidade do atual período de crise geral do capital. Algo absolutamente novo na história econômica mundial.
Acontece que nunca qualquer governo burguês das principais potências econômicas mundiais ousou colocar suas respectivas economias nacionais em uma espécie de coma induzido. Quer dizer, bloquear e manter artificialmente seus órgãos vitais como indústria, comércio, serviços etc. E não se sabe quando exatamente despertá-los gradualmente.
Como foi aplicado este coma induzido? Através de um lockdown, uma situação de paralisação total ou parcial do deslocamento de pessoas e, consequentemente, da economia.
Portanto, a classe de trabalhadores produtivos – exatamente aquela que produz valor e capital – é colocada em quarentena em suas casas e paralisa-se, consequentemente, a maior parte das atividades produtivas da economia.
Assim, independentemente das razões sanitárias e outras considerações morais acerca do espetáculo criado em torno da corrosiva pandemia do COVID19, o que aparece na atual situação econômica mundial é um enigma real, sem fantasia, em torno do qual gravitam todos os economistas do mundo: como pausar a economia e evitar a ruína.
A esperança dos governos e seus economistas, segundo The Wall Street Journal, é pressionar o botão de pausa na economia, combater o alastramento da pandemia sanitária e pressionar o play novamente.
E tudo (leia-se capital) voltaria ao normal. Grâce au bon Dieu! É assim, claro, que também imagina o senso comum, como imaginam os bovinos e vegetativos cidadãos espectadores da propaganda capitalista.
Se este mecanicismo vulgar funcionasse, como eles imaginam que vai funcionar, seria uma prova e tanto de flexibilidade política e inteligência do moderno regime capitalista.
A aposta é elevada. Essa "prova de inteligência" dos capitalistas seria então confirmada com o sucesso desta inusitada aplicação do lockdown e do incrível coma induzido em que eles mergulharam a economia.
E evitariam a ruina de que fala o jornal. Enfim, seria uma definitiva vitória teórica e prática da classe capitalista e da sua economia política vulgar.
Esta é, portanto, a aposta da maioria massacrante dos dirigentes e economistas à direita e à esquerda do sistema. Alguns mais entusiasmados afirmam com a maior convicção do mundo que depois do lockdown a economia acordará mais forte ainda do que era quando foi internada e entubada na UTI [Unidade de Tratamento Intensivo].
Explicações
Como opinou recentemente sobre este enigma o senhor Steven Mnuchin, secretário do Tesouro dos Estados Unidos, principal autoridade econômica no governo da maior economia do planeta: "Esta é uma questão de curto prazo. Pode demorar alguns meses, mas vamos superar isso, e a economia estará mais forte do que nunca".
Também opinaram outros economistas mais respeitados pelo mercado que o obtuso Mnuchin. Como Larry Summers, que entrevistado no dia 7 de abril por Sara Silverstein (da Business Insider), declarou o seguinte:
"Eu tenho um palpite otimista – mas é apenas um palpite otimista – de que a recuperação pode ser mais rápida do que muitas pessoas esperam, porque tem o caráter de recuperação da depressão total que atinge uma economia [da estação balnear] de Cape Cod todo inverno ou a recuperação do PIB norte-americano que ocorre toda segunda-feira de manhã".
Alguém poderia contestar este exagerado naturalismo econômico do ilustrado ex-reitor da Universidade de Harvard informando-lhe que aqui não se trata de nada natural, mas da interrupção de um processo de valorização do capital, com o aparecimento, desde o ano passado, de incontroláveis distúrbios circulatórios.
Seria também aconselhável informar-lhe que aqui não se trata apenas da reabertura de uma ingênua interrupção da oferta e da demanda de quaisquer valores de uso; da oferta e da demanda de um produto; ou, como ele mesmo diz, como a recuperação do PIB dos EUA que ocorre toda segunda-feira de manhã, depois de um aprazível fim de semana prolongado nas calientes praias de Cape Cod.
Esta contestação tem fundamento, pois, prolongando um pouco mais nas observações iniciais sobre a lei do valor, não se pode confundir e embaralhar ao vento o duplo caráter do trabalho contido na mercadoria. O trabalho concreto que produz valor de uso e o trabalho abstrato que produz valor.
No processo de trabalho, o trabalho concreto produz valor de uso ou riqueza em geral. Em qualquer sociedade que seja, não é só o trabalho que produz a riqueza. Ele a produz na relação orgânica natural com os demais meios materiais de trabalho – terra, máquinas, equipamentos, instalações, matérias-primas, insumos e recursos naturais em geral. "O trabalho é o pai, a terra é a mãe" (William Petty, 1623).
Portanto, tomado isoladamente, o processo de trabalho é um processo natural, quer dizer, a-histórico. Confundir processo de trabalho com processo de valorização é uma trapaça da economia vulgar para tornar a propriedade privada, o valor, o mercado e, finalmente, o capital, também seres a-históricos, naturais, antediluvianos.
Já no processo de valorização, só o trabalho produz valor. O valor de uma mercadoria particular é determinado pela quantidade despendida de trabalho humano abstrato socialmente médio necessário à produção da totalidade das mercadorias.
Ao contrário do que acontece na produção de riqueza, só o trabalho humano produz valor. A natureza fica fora. Ou melhor, os demais meios materiais do processo de trabalho apenas incorporam o valor produzido pelo trabalho abstrato.
Nesta encruzilhada dialética os economistas chamam mitificadamente o capital de riqueza. Principalmente os keynesianos (e alguns marxistas bastardos) que adoram substituir a palavra capitalista por "detentores de riqueza". São os mesmos que abolem impunemente o processo de valorização de Marx e colocam no lugar o "processo de financeirização" e outras bobagens.
Na presente análise que se faz do atual lockdown da economia e seu consequente coma induzido, o processo de trabalho e seus elementos materiais geradores do Produto da macroeconomia dos capitalistas poderiam até ficar ociosos por um longo prazo, anos até, e não sofrerem nenhum dano, para depois serem reaproveitados, ceteris paribus, tal qual foram desativados no início do lockdown.
Já com o processo de valorização, que historicamente submete aquele processo de trabalho às necessidades do capital, é diferente. E aqui a dialética entra na cabeça dos capitalistas da forma mais brutal.
Os capitalistas e seus economistas não podem aceitar teoricamente a diferença entre processo de trabalho e processo de valorização, nem a prevalência do último na vida do capital, mas, na prática quotidiana das suas empresas, quando sentem na pele (e no bolso, principalmente) cortantes ventos gelados de mais um tornado periódico de superprodução, os proprietários privados dos meios sociais de produção são obrigados a se confrontar da maneira mais didática possível com aquela fundamental e histórica contradição na unidade de dois diferentes processos, um que produz riqueza, outro que produz capital.
Cenários
Veremos mais abaixo, com a pesquisa realizada pelo Federal Bank of Dallas, um exemplo prático de como se realiza esta didática entrada da dialética na cabeça de um capitalista individual e como este coma induzido não pode se prolongar além deste segundo trimestre deste ano. Caso contrário, não serão as máquinas, mas o capital que será sucateado com enorme rapidez.
Cenário colocado na mesa: se a triste criatura não for retirada do coma induzido até o outono do hemisfério norte e com sinais vitais reagindo razoavelmente bem, o processo de valorização do capital reaparecerá com cara e comportamento altamente agressivos de uma verdadeira depressão econômica.
São grandes, portanto, as possibilidades de se materializar uma pandemia social especificamente capitalista com cara e comportamento mil vezes mais ameaçadores de destruição da espécie humana do que a soma de todas as pandemias sanitárias ocorridas em todos os tempos, incluindo-se a atual COVID19.
Nestas condições atuais de grandes incertezas um fato histórico sobejamente conhecido se repete. Aquele déficit cognitivo da economia vulgar, acima abordado, tem um custo prático muito elevado para os capitalistas e seus economistas.
O fato histórico é que ao ignorar a lei do valor-trabalho como elemento predominante e determinante dos movimentos econômicos em geral os capitalistas e seus economistas se tornam historicamente incapazes de esclarecer a origem da moeda, dos preços, do lucro, do capital e, finalmente, das pesadas crises periódicas de superprodução e pletora do capital que ameaçam sua própria existência de classes proprietárias dos meios de produção.
É com esta platitude teórica e irresponsabilidade prática que nesta semana os capitalistas e seus economistas discutiam, ingenuamente, como baratas tontas, o prazo que durará a pandemia do COVID19.
Seu pensamento econômico agora é guiado unicamente pelas imprecisas peripécias do um vírus. Antes era o vírus capital. Havia até uma certa coerência. Mas agora é o COVID19. Este último tornou-se a única referência que eles encontram para dizer alguma coisa sobre o rumo que a economia pode tomar neste e nos próximos trimestres.
Os caprichos de um vírus determinando os rumos da economia mundial! Nisto se resume toda sapiência da economia vulgar. Os capitalistas e seus economistas tornam-se assim reféns do próprio espetáculo que eles criaram em torno da hipercapitalista pandemia sanitária que ora assola o mundo.
É por isso, e por outras coisas muito mais importantes, que aquela possibilidade de apertar o play da economia e tudo voltar aos trilhos, de evitar a ruína, é cada vez mais contestada no mercado por pessoas mais inteligentes do que as que viemos até agora mencionando.
É o caso do próprio The Wall Street Journal, que adverte corretamente que muita coisa vai dar errado. Ou como diz também com seriedade Simon Tilford, economista do Forum New Economy, conhecida think tank (empresa de cenários estratégicos) de Berlim. "Estamos em território desconhecido. Inevitavelmente, há muita adivinhação... Estamos vendo um apoio sem precedentes à liquidez em muitos países, mas o colapso do consumo privado é tão grande que muitas empresas começam a entrar em falência", disse Tilford.
O fato é que depois do choque dos números sobre os pedidos de seguro desemprego, o fantasma de uma nova grande depressão entrou definitivamente no radar dos principais lideres políticos e dos grandes bancos dos EUA.
Não mais alguma coisa parecida com o convescote da "grande recessão 2008/2009", mas uma coisa que pode ser até dez vezes mais pesada que a grande e clássica grande depressão dos anos 1930. Isto não pode ser considerado nenhum exagero quando se utiliza seriamente, sem banalização, o conceito de depressão econômica.
Regra importante a ser observada: o start da depressão econômica global só poderá ser acionado pelos EUA, país que centraliza a economia reguladora de todos os principais fundamentos do mercado mundial – preços, produtividade, taxa de lucro geral, moedas etc.
É exatamente esta possibilidade real de uma depressão na economia da ponta do sistema que preocupa Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos EUA: "Podemos ter uma depressão porque muitas pessoas estão desempregadas, e é por isso que precisamos deixar a economia realmente energizada e funcionando. Vamos tratar do desemprego. Vamos fazer os pagamentos diretos dos salários. Vamos liberar esses empréstimos".
Os pagamentos diretos de até US$1.200 para alguns trabalhadores a que senhora Pelosi se refere fazem parte do histórico pacote de socorro econômico de US$2,2 trilhões que Donald Trump assinou há quase duas semanas.
Pelo andar da carruagem, só para pagar os novos pedidos de seguro-desemprego desta e das próximas semanas, seria bom que senhor Trump mandasse o nerd Steven Mnuchin separar rapidamente pelo menos mais uma tranche de US$2,2 trilhões.
Os economistas e as autoridades do governo não discutem as consequências desta farra do boi com o dinheiro do orçamento federal sobre as finanças públicas do país e, consequentemente, sobre a confiança nos títulos do Tesouro e na sua moeda nacional, que, não por acaso, cumpre simultaneamente a nobre função de moeda padrão de reserva internacional, de moeda universal.
Aliás, este desvairado relaxamento quantitativo ocorre em quase todas as grandes economias mundiais. Banalização geral das finanças e do crédito público. Novo normal, "gastar o que for preciso". Aparentemente, pela silenciosa unanimidade dentre os economistas, sem nenhuma consequência. É compreensível.
Afinal, para a pastoral de Keynes – e de Jerome Powel, presidente do banco central do universo, quer dizer do Federal Reserve (Fed) – o dinheiro não cai do céu?
Dane-se a lei do valor. E, junto com ela, danem-se todas as suas formas. Dane-se a forma dinheiro e a forma moeda do valor, dane-se o sistema monetário internacional.
Trataremos proximamente das perspectivas para a moeda e o crédito público nos EUA. Mas, a despeito destas inconsequências práticas, a realidade segue seu curso. E o estado do paciente entubado na UTI se agrava. Com novas estimativas para a economia de ponta do sistema, os economistas do JP Morgan, maior banco de investimentos dos EUA, compartilham o sombrio e depressivo sentimento de Pelosi.
Divulgaram suas últimas previsões para a economia, logo após aquele renovado salto de novos pedidos semanais de desemprego e de outros dados mostrando um declínio acentuado nas horas trabalhadas na economia.
Cortaram ainda mais profundamente a previsão do crescimento da economia. E bota profundamente nisso. Duas semanas atrás, a sua previsão era de queda do PIB de 25% para este segundo trimestre. Nesta quinta-feira, revisaram para queda de 40%. Como diria Guimarães Rosa: "é o diabo na rua, no meio do redemoinho".
Outra previsão também bastante contundente que eles fazem para o mercado de trabalho. "Com esses dados em mãos, acreditamos que o relatório de empregos de abril possa indicar cerca de 25 milhões de empregos perdidos desde a semana da pesquisa de março e uma taxa de desemprego em torno de 20%".
Lembrando que em fevereiro passado esta taxa de desemprego da força de trabalho na economia estadunidense estava alguns décimos abaixo de 3%. Quase pleno emprego.
Enquanto isso, no chão de fábrica dos EUA, há muitas almas penadas lamentando tremulamente que pode acontecer de fato uma catastrófica interrupção do processo de valorização do capital, quer dizer, em termos mais populares, uma verdadeira depressão econômica. Para daqui a poucos meses.
Veja o que respondeu um pequeno capitalista sobre as perspectivas econômicas atuais a uma pesquisa realizada em 30 de março pelo Federal Reserve Bank of Dallas:
"É muito cedo para saber o impacto da disponibilidade de material, mas estamos vendo uma diminuição instantânea de pedidos e consultas, o que significa que, quando o atual trabalho interno for concluído, em meados do final de abril, não haverá mais trabalho para ser feito. Obviamente, essa não é uma boa perspectiva. Se o lockdown autoimposto continuar nesse ritmo, é minha opinião que o país entrará em depressão no outono. Minha preocupação é, claro, com meus homens, nossas famílias e nossa fábrica. Para ser absolutamente sincero, tenho medo de perder minha renda [rendimento, NR], minha empresa e minha casa. Não podemos sobreviver a uma dramática perda de produção".
É assim que, na forma mais didática possível, como citado acima, que a dialética do capital entra na cabeça dos capitalistas.
O problema que resta, portanto, é saber como reaparecerá a triste figura histórica quando for retirada do coma induzido. A maioria dos economistas ainda argumenta que haverá uma forte recuperação, em mais ou menos tempo, acreditam que a ruína será evitada.
Otimismo inventado
Os próprios economistas do JP Morgan continuam a ver recuperação no segundo semestre, com base no pressuposto altamente duvidoso de que os efeitos do lockdown desaparecerão até junho. Pode até acontecer, mas esta afirmação é dificilmente justificada. Os dados e variáveis estão muito embaralhados.
Eles têm consciência disso. Como pessoas sérias, apesar de capitalistas, ressalvam com salutar realismo: "Nas últimas semanas, os meteorologistas estão operando no nevoeiro. Os modelos econômicos que foram treinados nos dados do pós-guerra enfrentam limitações óbvias. Em seu lugar, voltamos a diferentes maneiras de abordar as perspectivas", declararam.
O que eles pressentem corretamente é que esta pausa não é neutra, com saída controlável. Ao contrário, trata-se exatamente de inédita e mais do que temerária interrupção daquela produção e de valorização do capital tratada acima com paciência de monge. Trata-se da interrupção e queda livre que poderá ocorrer na próxima esquina dos lucros, das ações, dos títulos, das principais moedas etc.
O problema real, como visto acima, é que desde o ano passado a economia mundial já apresentava grave quadro de pletora do capital. Em setembro de 2019, já se podiam fazer outras observações acerca de um pavoroso estado estacionário da economia mundial como o mais provável cenário para os trimestres adiante. O coma induzido do capital que se passa agora é a primeira reação dos capitalistas de todo o mundo àquele inaceitável cenário.
O tratamento de choque prescrito e ministrado neste momento pelos capitalistas à economia mundial se assemelha a uma operação de sangria controlada de uma pletora de capital. Uma terapia medieval de sangrar o paciente acometido de uma superabundância de sangue.
Esta superabundância de sangue no sistema circulatório capitalista deriva do fato de que a sociedade atual tem muita civilização, muitos alimentos, muita indústria, muito comércio. As forças produtivas que a sociedade atual dispõe, materializadas na força de trabalho in actu na produção industrial, já não agem mais a favor da propriedade privada burguesa.
Esta terapia do lockdown se realiza, portanto, sacrificando primeiramente a principal força produtiva incorporada em dezenas de milhões de trabalhadores assalariados que agora são jogados semanalmente no olho da rua em todo o mundo. O vírus do capital mata mil vezes mais a classe produtiva mundial do que o COVID-19.
O que se assiste neste começo do 2º trimestre de 2020, portanto, não é ainda aquela explosão da crise periódica de superprodução já precificada desde o ano passado, mas como esta explosão acabou sendo induzida, organizada, conscientemente ou não, pouco importa, pelos próprios capitalistas.
É como estar neste momento em uma curva descendente da serra e o motorista pisar fundo no freio de um carro marcando impávidos 200 km/hora no velocímetro.
Antecipando-se ao estado estacionário da economia, os capitalistas realizaram uma manobra aleatória, desprovida de qualquer indício de racionalidade, de elevado risco. A forma e dimensão do desenlace desta manobra ainda são totalmente imprevisíveis.
A única coisa que se pode afirmar com certeza é que outros acontecimentos emocionantes continuarão sendo produzidos nas próximas semanas. A luta de classes se acelera e a história é produzida em novas circunstâncias.
Depois de quase cem anos de expansão do regime capitalista e de uma longa noite de contrarrevolução planetária, finalmente se apresenta a possibilidade real de uma verdadeira crise econômica catastrófica desabrochar nos próximos trimestres.
Este acontecimento há tanto tempo ansiosamente aguardado deixa o ambiente da redação da Crítica da Economia mais alegre, otimista, a equipe entusiasmada e mais bem humorada do que de costume.
É por isso que, doravante, todas as expectativas voltam-se para o estado geral que a triste figura apresentará quando for gradativamente acordada da brusca hibernação a que ela foi acometida. É nesta evolução detalhada, semanal, que toda nossa atenção estará focada e concentrada.
Marx seja louvado!
José Martins é economista e editor do Crítica da Economia, onde este artigo foi originalmente publicado.