Correio da Cidadania

À procura do lucro perdido

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Pouco mais de três meses atrás, podia ser observado que a economia mundial começava a ser retirada do coma induzido imposto pelos capitalistas a partir do mês de abril.

Qual seria a cara do paciente depois do perigoso lockdown (fechamento) da economia decidido pelos seus proprietários como forma de enfrentamento da epidemia sanitária da COVID 19?

A resposta quase unânime podia ser encontrada na ilusória e fortíssima opinião dos economistas e dos governos de um retorno ao crescimento econômico, do emprego e dos providenciais lucros a partir do terceiro trimestre do ano (julho/setembro).

A quase totalidade dos capitalistas e seus economistas acreditavam piamente no impreciso retorno em V da economia: bate no chão e volta triunfante para novo ciclo de lucros e crescimento. E tudo volta ao normal.

A hora da verdade havia chegado. A segunda metade do ano seria, então, o momento de ‘mostre-me’ para os que apostaram pesado na expectativa de uma recuperação em forma de V da economia real após o “desligamento do coronavírus”. Afinal, a economia mundial começava a sair do coma induzido...

E agora, já encerrado o terceiro trimestre do ano e se acelerando rapidamente para o encerramento do segundo semestre? Como é que a coisa se passou? Como está a cara do paciente neste momento do “mostre-me”, depois do “desligamento do coronavírus”? A resposta é: nem um pouco animadora; e muito menos com sorriso em V.

Na realidade, o que se revela com a divulgação de novos números deste processo é uma coisa muito importante: ao contrário do que imagina a vã opinião popular, esta crise econômica não é provocada pela COVID 19 – como os capitalistas e seus economistas ainda vendem (e continuarão vendendo) para a opinião pública – e nem mesmo pelo efetivo lockdown da economia que durou de maneira mais intensa entre março e junho deste ano.

Sem essa importante separação da realidade e das fantasias da economia vulgar acerca da natureza da atual crise econômica fica impossível acompanhar seus desdobramentos. A melhor maneira de evitar esta armadilha é analisar criteriosamente esses dados sobre o estado do paciente. Vamos a eles.

Se existe alguma semelhança da atual crise periódica de superprodução de capital com a COVID 19 é que as duas começaram a se manifestar ainda discretamente em 2019. Exatamente no 4º trimestre de 2019.

Mas a semelhança para por aí. Sem a mínima presença de qualquer lockdown na economia, a indústria de bens de consumo duráveis dos EUA caiu 1,5% no último trimestre de 2019.

E continuou caindo pesadamente (– 9,8%) no 1º trimestre de 2020, segundo relatório mensal da Produção Industrial e Utilização da Capacidade, publicado nesta sexta-feira (16) pelo Federal Reserve Bank (Fed, banco central dos EUA).

Note-se que neste 1º trimestre do ano (janeiro a março), a indústria dos EUA não havia ainda sofrido efeito de qualquer lockdown. Isso pode ser comprovado pelos números da utilização da capacidade instalada, publicados pelo relatório do Fed.

Assim, no 4º trimestre de 2019, os ramos de produção de bens duráveis registavam 74,9% de utilização da capacidade instalada. No 1º trimestre de 2020 (quando, repetindo, a produção caiu 9,8%) a utilização da capacidade instalada ainda estava bastante elevada: 72,9%. E ainda com pleno emprego da força de trabalho.

Estes dados são muito importantes para esclarecer a natureza do atual período de crise do ciclo econômico. Observa-se então, em primeiro lugar, que antes de qualquer lockdown a produção industrial dos EUA – que regula a dinâmica real do mercado mundial – já estava em queda significativa por dois trimestres seguidos.

E a pequena variação da utilização da capacidade instalada no 1º trimestre de 2020 é a comprovação indiscutível que os elementos endógenos da produção industrial (valor agregado, mais-valia, lucro e preço de produção) foram os elementos determinantes da queda do processo de valorização do capital.

Esta prevalência dos elementos endógenos do processo de acumulação do capital na crise atual pode ser também comprovada pelo mais recente Relatório Financeiro Trimestral das Manufaturas dos EUA, publicado em 8/9/2020 pelo do Bureau of Census dos EUA.

Revela-se, então, que no 2º trimestre de 2020 (abril/junho), quando já se poderia considerar algum efeito exógeno do lockdown sobre a produção, o valor do faturamento das manufaturas estadunidenses (bens duráveis e não duráveis) caiu apenas 24% frente ao 2º trimestre do ano anterior. Na mesma comparação, no 1º trimestre/2020 o faturamento havia caído só 10%.

No imaginário popular, o COVID 19 fez com que a produção e as vendas da indústria tenham sido tão paralisadas quanto às ocorridas com inúmeros setores improdutivos da economia – pequeno comércio, escolas, cinemas, bares, restaurantes, cabeleireiros, academias, futebol, teatro, livrarias, viagens aéreas etc. Contudo, os dados reais revelam exatamente o contrário.

Outro movimento importante: embora o faturamento da indústria tenha caído pouco mais de 30% nos primeiros seis meses deste ano, a massa de lucro operacional das manufaturas caiu 30% no primeiro trimestre e 50% no 2º trimestre (sempre comparando com o 2º trimestre/2019).

Lembremos que lucro operacional é o que retrata melhor as condições de valorização do capital e da empresa. Trata-se do lucro com a atividade principal e produtiva (operacional) da empresa – quer dizer, lucro antes dos impostos, das receitas ou despesas não operacionais como juros, rendas etc., assim como das despesas improdutivas ocorridas dentro da empresa, como administração, vendas, publicidade etc.

O saldo final destas relações foi o seguinte: a taxa de lucro operacional média de 8,43% do período de expansão do ciclo anterior (registrada no 2º trimestre/2019) havia caído fulminantemente para 6,63% no 1º trimestre de 2020 e para 5,73% no 2º trimestre de 2020.

Importante consideração a ser levada em conta: a superação do atual período de crise, a saída bem sucedida do coma induzido, só será possível quando este desabamento da taxa de lucro operacional nas manufaturas for revertido para as proximidades do patamar de 8,43%, que correspondia, grosso modo, à taxa de lucro geral nas manufaturas estadunidenses no período de expansão cíclica dos últimos dez anos.

Mas esta recuperação da taxa de lucro geral da economia de ponta do sistema, absolutamente necessária para a superação da crise atual, depende unicamente e antes de tudo de duas coisas:

primo, do aumento da taxa de mais-valia, quer dizer, da produtividade ou de exploração da classe operária em toda crosta terrestre;

secondo, mas não menos importante: a retomada da taxa geral de lucro na economia reguladora do sistema global depende do aumento da disputa e expansão imperialista por novos mercados (mais globalização), redução dos preços de matérias primas no comércio internacional e, como resultado final, aumento da exploração das economias dominantes sobre as economias dominadas da periferia do sistema.

Mais importante que tudo. Estas providências para a “estabilização da economia” não podem demorar eternamente. Ao contrário do período de expansão (com uma taxa geral de lucro adequada) que é bastante elástico e pode variar de quatro a dez anos, aproximadamente, o período de crise, no qual a economia se encontra atualmente, não pode durar mais do que sete ou oito trimestres.

Se o paciente não sair do coma induzido em bom estado (exalando níveis adequados de taxa de lucro) neste curto período de tempo, a crise, por enquanto parcial, pode desabar abruptamente para uma crise geral, quando o tempo desaparece.

Portanto, resta observar agora (outubro de 2020) como está se mostrando a cara do paciente depois do pleno resgate do coma induzido e do “desligamento do coronavirus”.

Quais são os remédios que os capitalistas, os economistas e suas instituições burocráticas internacionais estão receitando para retomar seus lucros e evitar a ameaça de revoluções e extinção do mundo da propriedade privada, do Estado, do mercado e do capital?

Quais as perspectivas (ou cenários) para os decisivos próximos trimestres da economia mundial?

José Martins é economista e editor do Crítica da Economia, de onde este texto foi retirado.

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