Genocídio de classe
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- José Martins
- 14/04/2021
Na contramão do mundo capitalista e dos empresários endinheirados, os brasileiros que são obrigados a vender sua força de trabalho a estes patrões para viver terminaram a década 2011 a 2020 mais pobres. Muito mais pobres.
É o que se pode concluir de início com quase ilegíveis números e percentagens apresentadas em estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV) com base em números do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Nesta última década, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita do Brasil recuou 0,2% ao ano, em média. Isso é muita coisa em um período tão longo.
Nesse mesmo período, o mesmo PIB mundial per capita teve crescimento anual de 0,4%, enquanto o das economias dominadas da periferia do sistema avançou 2,5%. O PIB per capita brasileiro já está abaixo do chinês.
O PIB per capital é a soma de tudo o que país produz dividido pela população e funciona como um importante termômetro para avaliar a vitalidade econômica de uma nação. O nível da produtividade ou da pobreza de uma nação.
O fracasso em números
O PIB per capita sobe quando produtividade do trabalho e atividade econômica avançam em ritmo mais rápido do que o crescimento populacional. No Brasil aconteceu exatamente o contrário. E isso não acontece impunemente para os trabalhadores.
Em 2010, os brasileiros em geral tinham uma renda anual média de US$ 14.931,10. Em 2020, ela caiu para US$ 13.777,44. Variação de 8% para baixo. Já está mais baixo que o chinês. Logo estará mais baixo até que o indiano.
Esse valor é uma média nacional. Em seu cálculo é considerada toda a população brasileira. Portanto, estão contabilizados, além da população trabalhadora, aproximadamente 15% da população composta de empresários endinheirados e demais classes improdutivas do país. Essa parte altamente minoritária da população brasileira é a corporificação do capital no Brasil.
A burguesia brasileira (proprietária dos meios de produção da economia) soma aproximadamente 30 milhões de cidadãos – parte mínima de uma população de 210 milhões.
Assim, no cálculo do PIB per capita faz-se uma mistura estatística de capitalistas e trabalhadores assalariados. De improdutivos e produtivos.
Afinal, na democracia os cidadãos não têm o mesmo peso? Cada cidadão um voto?
O fato importante a ser destacado nesta mistificação do processo é que para os 85% de estropiados trabalhadores produtivos do exército industrial de reserva no Brasil, a queda de seu miserável rendimento anual médio foi muito mais catastrófica que aquela média nacional de 8%.
O desastre produtivo da queda do PIB per capita no Brasil nos últimos dez anos pode ser mais bem visualizado com dados que pesquisamos no IBGE sobre a evolução dos investimentos e da produção per capita nos setores produtivos da economia.
Observa-se, inicialmente, uma queda anual média de 0,3% da Formação Bruta de Capital Fixo – quer dizer, do investimento agregado da economia em máquinas, equipamentos e estruturas. As forças produtivas do trabalho concreto se enfraqueceram.
Essa queda mostra como os empresários e demais classes parasitas – que monopolizam a propriedade da totalidade dos meios de produção social da nação – reduzem significativamente, nos últimos dez anos, os meios de trabalho necessários à expansão da produção de utilidades e da produtividade da classe trabalhadora.
Na Indústria de Transformação, núcleo regulador da produção nacional, a queda de 0,9 % ao ano foi ainda muito mais profunda que a da Formação Bruta de Capital Fixo.
E, nos ramos industriais da Construção Civil a queda de 2,7% ao ano foi ainda maior que na indústria como um todo. Isso é muito mais catastrófico, pois os diversos ramos da Construção Civil concentram e ao mesmo tempo espalham para todas as cidades e regiões do país as grandes massas de trabalhadores produtivos da economia.
Debates fraudulentos
Portanto, o que querem dizer todos esses números? Todas estas abstrações matemáticas aparentemente neutras de um processo social? Para os economistas e mídia do capital esta derrocada produtiva não passa de um acidente provocado por sucessivos governos incapazes de sanear as contas públicas e promover a estabilidade macroeconômica.
“Os culpados são os políticos”. Para eles, a incapacidade dos governos em promover as “reformas necessárias” e eliminar a permanente “instabilidade das contas públicas” é o fato que impediu a retomada dos investimentos na economia, do crescimento e, consequentemente, é a culpada pela derrocada econômica dos últimos dez anos.
Se o problema se resume à má gestão dos governos, isso é muito conveniente para eles esconder sem remorso a responsabilidade dos empresários privados e demais classes proprietárias de capital. Estas não aparecem em nenhum momento das suas avaliações sobre a “década perdida”. A não ser como vítimas.
Para os economistas que avaliam os dados da FGV, os virtuosos e desprotegidos capitalistas são vítimas dos maus governos. Isso acontece porque eles estão sempre aguardando a prometida estabilidade das contas públicas para voltarem a investir na produção e, em um ato de extrema magnanimidade e bondade, gerar renda e emprego para a sociedade necessitada dos seus serviços.
Mesmo que estes sucessivos governos não sejam nada mais, no mundo real, do que serviçais burocratas das classes dominantes, governos que são instalados por estas últimas para administrar seus interesses econômicos.
Ao contrário da narrativa dos economistas do capital, todos os governos (sem exceção até para confirmar a regra) são simplesmente comitês políticos armados do Estado de defesa da propriedade capitalista e de administração da luta de classes decorrente deste processo histórico.
Uma burguesia inútil
Entretanto, a despeito da leviandade dos economistas do sistema e outros ideólogos das classes dominantes, a derrocada econômica brasileira dos últimos dez anos não foi apenas mais uma “década perdida”.
Ela teve enormes consequências sociais e políticas. Em primeiro lugar, na origem desta década a classe empresarial e demais classes proprietárias são responsáveis pelo desligamento da economia nacional do resto do mundo.
Não como empresários nacionalistas ou protecionistas, mas como incompetentes liberais. Fanáticos e incompetentes liberais. Não foram capazes de realizar seu projeto de liberalização e integração da produção às cadeias globais produtivas de valor.
A indústria brasileira meia-boca é totalmente incapaz de produzir e exportar competitivamente sua produção. Nem como maquiladoras. Mesmo em grandes zonas especiais de indústrias montadoras (maquiladoras), como a Zona Franca de Manaus, todas as mercadorias ali montadas são destinadas ao mercado interno.
Na China e no México, por exemplo – do mesmo modo que nas demais economias dominadas da periferia plenamente integradas às cadeias produtivas globais de valor – todas as mercadorias montadas nas zonas especiais são imediatamente exportadas para as economias centrais.
Os capitalistas chineses e mexicanos são mais espertos que os brasileiros. Os dois únicos setores produtores de capital da economia brasileira que ainda se relacionam ativamente com o mercado mundial são dois enclaves primário- exportadores: a agropecuária e a indústria mineradora.
O setor agropecuário (ou agronegócio), que produz a merreca de 6% do PIB apresentou crescimento médio anual de 2,7% ao ano. As mineradoras (Vale do Rio Doce etc.) alcançaram 1,2% ao ano.
São os dois únicos setores industriais que cresceram nos últimos dez anos. Só aqui os empresários brasileiros foram “eficientes e inovadores”. Mas sem nenhuma consequência positiva para a expansão da totalidade da economia.
O problema é que, além do agronegócio e as mineradoras produzirem uma parcela muito pequena do PIB, também não proporcionam, enquanto enclaves primário-exportadores, nenhum “efeito multiplicador da renda” na produção interna. Ou seja, são estéreis para gerar desenvolvimento econômico.
É por isso que, enquanto a economia nacional afunda estes dois enclaves crescem. E os ideólogos do parasitismo capitalista nacional festejam esse fenômeno patológico do crescimento econômico na periferia.
O fato é que o desligamento dos setores industriais mais dinâmicos da economia nacional da globalização do capital – integrados às cadeias produtivas globais de valor apenas para a livre importação de máquinas, insumos e componentes do processo de produção – foi um fracasso histórico em que os empresários privados nacionais foram os principais responsáveis.
Nem para reproduzir o subdesenvolvimento econômico os empresários brasileiros servem mais. Tornaram-se apenas agentes irresponsáveis (e conscientes, como veremos a seguir) de uma criminosa arquitetura da destruição. O governo atual Boçalnaro/Guedes é a expressão política mais bem acabada deste genocídio de classe.
Não há futuro possível
O fracasso dos empresários e demais classes improdutivas que dirigiram a economia para o travamento e à queda observada nos últimos dez anos provocou um brutal desemprego, queda dos rendimentos e, finalmente, uma explosão de pauperização e miséria jamais observada na história econômica brasileira.
Ao contrário do que os economistas do capital procuram esconder, aqueles números acima observados não são neutros e muito menos desprovidos de efeitos devastadores sobre a reprodução física da população brasileira.
E não se trata de um mero desiquilíbrio de rendimentos entre ricos e pobres, uma mera desigualdade. Uma injustiça na “distribuição da renda” que pode ser resolvida com políticas públicas, governos populistas e outros amigos do povo.
Quando o sistema econômico não se move, afunda continuamente – como temos observado nestes últimos dez anos – desaparece também a função básica de qualquer modo de produção: garantir a reprodução física da população.
A incapacidade econômica dos empresários de garantir a reprodução física dos trabalhadores desprovidos de qualquer reserva ou propriedade – junto com a sua insistência em manter indefinidamente essa engenharia da destruição como política de governo – transforma-se em um inaceitável genocídio econômico.
Em nosso próximo boletim continuaremos com a análise deste processo. Como este genocídio econômico perpetrado pelos empresários brasileiros se reproduz agora como genocídio pandêmico e fatal ingovernabilidade política.
José Martins é economista e editor do Crítica da Economia, de onde este artigo foi retirado.