Além da recessão
- Detalhes
- Jorge Beinstein
- 26/02/2008
A recessão já se instalou no império; o debate agora gira em torno de sua profundidade, duração e alcance mundial. A corte de admiradores direitistas ou progressistas do capitalismo global, que nos massacrou nos últimos anos com suas reiterações a respeito da solidez do sistema, está agora em pleno replante tático: seus integrantes já não negam a crise, mas tentam tirar-lhe dramatismo, encurtar suas raízes e amplitude.
Alguns ensaiam explicações anedóticas, outros a qualificam como "crise cíclica", leia-se passageira. A maior parte se refugia na explicação simplista que reduz o fenômeno a uma grande perturbação financeira combinada com um broto pessimista dos consumidores norte-americanos, provocado pelos morosos devedores dos EUA (que não pagam seus créditos imobiliários) e por quem lhes concede empréstimos de maneira exageradamente generosa. De acordo com esta gente, os problemas logo serão superados, graças às intervenções da Reserva Federal, Casa Branca e autoridades políticas e monetárias das outras grandes potências. O mítico estandarte do poder invencível dos donos do sistema ainda tremula nas alturas, ainda que vá rapidamente desmanchando-se ao ritmo das trovoadas globais.
Crédito, consumo e dívidas
Estando circunscrita ao esvaziamento da bolha imobiliária norte-americana e seus impactos colaterais nos EUA e resto do mundo, a "solução" aparece clara: incentivar os consumidores e investidores, subir o gasto público e injetar liquidez no mercado.
É o que agora estão fazendo o governo Bush e a Reserva Federal. O primeiro acaba de impulsionar uma diminuição nos impostos e um gasto estatal recorde para 2009 de mais de 3 trilhões de dólares, e em conseqüência um déficit fiscal gigantesco com o qual a dívida pública superará logo em breve os 10 trilhões de dólares. Obviamente, Bush o faz pela direita. As reduções fiscais beneficiarão basicamente os ricos e a classe média alta; o aumento do gasto público privilegiará as Forças Armadas, que disporão do mais alto volume de fundos de toda a história estadunidense: o gasto militar total dos EUA chegou em 2008 a cerca de 1,2 trilhão de dólares (se somamos às onerações do Departamento de Defesa as dos demais setores do Estado), segundo o projeto de orçamento enviado por Bush ao Parlamento. Em 2009, tal cifra será muito mais alta. Por sua vez, a Reserva Federal baixa mais e mais as taxas de juros.
O que eles estão fazendo agora é uma sorte de repetição, em condições infinitamente mais graves, do que já fizeram em 2001, não possuem outro manualzinho. Porém, naquele momento, a dívida pública americana alcançava os 5,7 trilhões de dólares e agora ronda os 9,2 trilhões. E se a ela somamos as do resto dos setores públicos e privados, chega-se a 50 trilhões de dólares (equivalente ao PIB mundial). A isso é necessário agregar a acumulação de déficits fiscais e comerciais, além de um volume de gastos militares totais que poderia chegar a representar, em 2009, 10% do PIB norte-americano.
Em 2001 a situação era difícil, mas existiam margens econômicas e políticas que permitiram ao poder (mediante auto-atentado terrorista) sair da recessão acelerando as tendências dominantes do sistema: hipertrofia especulativa, concentração de receitas, consumismo (com forte queda da poupança pessoal), crescimento das dívidas públicas e privadas e keynesianismo militar. Todos esses aspectos se exacerbaram ao extremo nos últimos sete anos, as aventuras coloniais na Eurásia afundaram (o aparato militar aparece agora como uma pesada maquinaria tão sofisticada e cara quanto incompetente), enquanto que o Estado e a população estão atemorizados pelas dívidas.
A recessão estadunidense é mais uma crise de dívida que uma depressão causada pelo esfriamento do consumo; a primeira é fundamento do segundo. A superdívida estatal chegou a tal ponto que sua expansão ingressou em um círculo vicioso que enlaça de maneira perversa emissões de títulos públicos e de dólares cada vez mais desvalorizados. Caso contrário, o Estado deveria frear seus gastos e/ou incrementar a arrecadação fiscal, o que afundaria a economia em uma recessão ainda mais profunda.
Por sua vez, a população com rendimentos médios e baixos sofreu as conseqüências do estancamento (e do rebaixamento em um importante setor) de seus salários reais e a renda média familiar é atualmente inferior à do ano 2000. Quando se lançou a bolha imobiliária com uma avalanche de créditos baratos estava-se ao mesmo tempo restringindo a solvência a médio prazo de uma grande massa de devedores. A serpente neoliberal acabou mordendo a própria cauda: em meados de 2006 o mercado imobiliário estava saturado, os preços das moradias começaram a abaixar e em 2007 estourou a inadimplência. O que se seguiu é bem conhecido.
Em seus anos de auge, o assunto do esgotamento do crescimento da economia norte-americana sobrecarregada de dívidas havia sido abertamente ignorado ou negado por jornalistas, especialistas, grandes empresários e dirigentes políticos da superpotência.
Os negócios prosperavam, quem se atreveria nessa época a dizer que os grandes lucros de então eram a base do próximo desastre? Os poucos que se atreveram ficaram marginalizados ou ridicularizados, marcados como catastrofistas, pessoas amargadas ou amantes dos terremotos.
Mas se a direita pretende fazer mais do mesmo, o progressismo imperial não vai muito mais longe. Joseph Stiglitz, expressão desse setor, acaba de propor uma variante "popular" do remédio, orientada também a reabilitar o consumo, incrementando o gasto público e consequentemente o déficit fiscal e a dívida. De acordo com essa proposta, não seriam beneficiados os militares e os ricos, mas sim os desempregados, os programas de desenvolvimento de infra-estrutura, do setor educativo, de saúde, de economia de energia e de redução da contaminação ambiental. A aspirina progressista (incompatível com o atual sistema de poder estadunidense) e a repetição conservadora não são outra coisa senão pequenos remendos impotentes, ante uma realidade que os supera.
Recessão e inflação
Agora que a recessão chegou ao centro da economia mundial, suas autoridades entram em pânico, percebem que suas ações são ineficazes ou até contraproducentes. As medidas anti-recessivas como cortes fiscais em curso, as drásticas baixas da taxa de juros ou o incremento do gasto público trarão mais déficits e dívidas, e, se chegarem a ter algum êxito, ainda que medíocre, incentivarão a inflação. Em ambos os casos impulsionarão a desvalorização internacional do dólar. A recessão e a inflação chegam juntas porque a crise financeira converge com a crise energética que faz subir o preço do petróleo, puxando para cima um amplo leque de matérias primas. Os custos de produção aumentam não somente quando cresce a economia mundial e em conseqüência a demanda desses produtos, mas também quando a mesma se estanca e, inclusive, decai. É assim porque a extração petroleira global está chegando ao seu máximo nível e, por trás dela, a de outros recursos energéticos não renováveis, como o carvão e o urânio, que se encaminham rumo à mesma situação a maior prazo, mas bem antes de meados do século 21. E como sabemos, a substituição do petróleo pelos biocombustíveis leva ao rápido encarecimento generalizado dos preços da produção agrícola, em especial a de alimentos.
Em síntese, as autoridades norte-americanas sabem que, se tratarem de reverter a recessão reanimando o mercado, incentivarão a inflação e a queda do dólar, o que acabará por trazer mais recessão; se buscam frear a inflação esfriando a economia, aprofundarão a recessão: um beco sem saída.
Alguns especialistas, agora discretos, começam a iludir-se com a possibilidade de um estancamento prolongado, porém ordenado, sem impactos sociais nem crises institucionais graves. O modelo seria o Japão dos anos 90. Apesar de esquecerem de que se tratava de uma potência de segunda ordem que dispôs nesse momento de duas tábuas de salvação externas que suavizaram sua aterrissagem. Em primeiro lugar, as bolhas de prosperidade do leste asiático, que lhe deram ar até a crise de 97 e, sobretudo, os EUA, seu principal cliente comercial, cujo mercado absorveu exportações e investimentos japoneses. Porém, os EUA são muito grandes, não existe uma tábua de salvação externa à sua medida, o resto do mundo vinha amortecendo seus desajustes fiscais e comerciais, acumulando montanhas de papéis dolarizados que cada dia valem menos. No entanto, essa capacidade está praticamente esgotada.
A ilusão do descolamento
Na última reunião de Davos se discutiu muito acerca do possível ‘descolamento’ entre os EUA e as outras potências industriais, que desse modo tomariam distância do naufrágio de seu irmão maior.
Até hoje a globalização era apresentada pela propaganda neoliberal como uma trama da qual ninguém podia escapar. Agora, sem mais explicações, se afirma o contrário, a rede global permitiria, ao parecer sair do desastre, a uma ampla variedade de países, dirigentes e comunicadores de algumas economias desenvolvidas, sua inclusão na lista de sobreviventes. Inclusive, em numerosos países periféricos, meios de comunicação locais tratam de tranqüilizar suas populações, explicando-lhes que, graças ao nível de suas reservas (dolarizadas), à natureza das exportações, sua localização geográfica ou outra bênção do destino, essa nação não será afetada pela recessão estadunidense (ou será muito pouco).
Porém, resulta que, para desgraça dos neoliberais, os neoliberais tinham razão: as interdependências econômicas mundiais são tão densas que, como estamos comprovando diariamente, não há maneira de desconectar as turbulências estadunidenses (bancárias, bolsistas etc.) do funcionamento financeiro internacional. A bolha imobiliária norte-americana foi a vanguarda de uma variada série de bolhas similares em diferentes lugares do planeta. Países como Espanha, Inglaterra, Holanda, Austrália, Irlanda e Nova Zelândia foram parte ativa da festa. Na Espanha, já começou o esvaziamento. Recentemente, Carlos March, cabeça de um dos grupos financeiros decisivos desse país, declarou que "a crise imobiliária (espanhola) vai durar muito tempo, ao menos três anos". Além disso, numerosos bancos europeus e asiáticos são golpeados pela desvalorização de títulos americanos apoiados em dívidas hipotecárias de alto risco, que compraram de mãos cheias em pleno auge especulativo.
A recessão estadunidense já afeta o Japão, estreitamente associado à superpotência em níveis comercial, financeiro, político-militar etc. Japão e EUA compram o grosso das exportações industriais da China, coluna vertebral de sua prosperidade econômica, que por outro lado acumula mais de 1,4 trilhão de dólares e papéis dolarizados em suas reservas e é atravessada por várias bolhas (bolsista, imobiliária etc.).
Muito mais fortes ainda são as interconexões entre a União Européia e os EUA, o que não impediu o presidente do Eurogrupo, Jean-Claude Juncker, declarar (no começo de fevereiro de 2008 e sem mover um só músculo da cara) que "na Europa não há risco de recessão, ao contrário dos Estados Unidos".
Jorge Beinstein é professor de Economia da Universidade de Buenos Aires.
Originalmente publicado em http://alainet.org/- Texto completo em: http://alainet.org/active/22090&lang=es
Traduzido por Gabriel Brito
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