O que cola com a crise financeira e o que descola dela
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- Luis Fernando Novoa Garzon
- 26/02/2008
Se deres por falta
Do teu riso esperto
Dos teus sortilégios
Entende e perdoa
Eu ando nas ruas
Com o sol descolado
Da tua pessoa.
Chico Buarque
As redes de segurança financeira reforçam seus nós e reclamam para si a cobertura do que interessa. E quem pode segurar os povos? E os milhões de novos desempregados em todo o mundo que vão se somar aos outros milhões de desempregados já de carteirinha? Não funcionaram os sistemas de supervisão do sistema financeiro sempre tão cioso de sua auto-regulação? Ou os alarmes só funcionam dentro das cúpulas? Hora de começar mais um ciclo de canibalismo econômico, de fusões, aquisições e privatizações. Pequenos investidores e mercados emergentes são inapelavelmente predados. Como o escorpião, o capital financeiro monopolista não evita o que se é.
"Diluição artificial dos riscos" é como chamam o estelionato de bancos e grandes corporações. Na falta de dinamismo econômico real, a insana mobilidade, malabarismo contábil, qualquer forma de mis-en-scene é válida se traz rentabilidade. Instabilidade se vence com mais instabilidade ao redor. Acumulação financeira obtida às custas do que pode render já e daqui a pouco. A riqueza é fictícia, acredite se puder cirandar. Senão morra de sede em frente ao mar de liquidez dos conglomerados financeiros. Mais uma vez a poupança de todos está sendo tragada para servir às próximas investidas monopolistas e rentistas sobre mercados, países e recursos naturais ainda não capturados.
A conflituosidade é tanto menor quanto mais se sobe na estrutura de poder global. Quanto maior o bolo maior o monopólio. Infernal condição em que muitos subtraem pouco. Paradisíaca aquela em que poucos apropriam tudo. Nada supera o tráfico e a falsificação de informação. Crime financeiro-contábil se for sistêmico compensa. A Corte Suprema e o Federal Reserve, ao reciclarem os sucessivos escândalos financeiros nos EUA, institucionalizaram práticas criminosas no seu "mercado doméstico", na prática, o global.
Quem não tiver suficientes reservas em moeda forte que pendure a nação como garantia e estabeleça taxas de câmbio ultraflexíveis e plena conversibilidade. Depois da fuga combinada dos capitais, vêm os requerimentos redobrados na reentrada. O capital financeiro cobra ágio, seguro, indenização antecipada, mimos e afagos para manter presença aqui. E só entra porque pode sair quando e com quanto quiser. A entrada é no fundo uma grande porta de saída. De que vale captar um maior fluxo de investimentos se o tecido econômico a ser adicionalmente irrigado já foi previamente privatizado, financeirizado e transnacionalizado?
Convidam-nos a afrouxar ainda mais nossos direitos e regulamentações para atualizar a confiança dos mercados. Querem nos convencer que, fortalecendo os fundamentos neoliberais, que nos colaram aos circuitos mundiais de circulação de mercadorias e de capitais, é que iremos nos "descolar" dos efeitos da crise nesses mesmos circuitos. Qual a receita do ponto ótimo do mais do mesmo? Overdose de neoliberalismo para resolver as liberalizações inconclusas mundo afora, as resiliências do capitalismo regulado.
O ajuste que estão propondo na forma de vacina é na verdade uma transfusão de mais "ganância infecciosa" que pretende diluir por dentro os últimos mecanismos soberanos e autônomos que possam limitar a lucratividade dos grandes negócios. Está reaberta a temporada de caça e proscrição a controles de capitais, a fundos sociais e regionais de desenvolvimento, a mecanismos de regulação pública de tarifas e preços estratégicos nas cadeias de valor, a políticas industriais ativas, a políticas comerciais e de integração regional que se neguem a sacrificar preciosas margens de autonomia operacional e tecnológica.
No grau de quem?
O anúncio da nova condição "credora" do Brasil é parte da campanha deliberada do governo para alcançar o "grau de investimento" (investment grade). Grau máximo de flexibilidade econômica e institucional que atesta a confiabilidade dos mercados internacionais. As antecipações de pagamento ao FMI e ao Clube de Paris deixam claro que continuamos sendo os mais promissores exportadores de capitais do mundo. Sacrificamos diuturnamente nossa soberania para assegurar as certezas de rentabilidade dos oligopólios financeiros e operacionais. Como o Brasil é um país de riqueza infinita, dignamo-nos a viver das sobras de sua pilhagem.
Foi tão profunda a financeirização do Estado brasileiro que nossas políticas e decisões replicam automaticamente os interesses dos verdadeiros credores. Como devedores fazemos exatamente o que os credores querem. Se são os grandes bancos e fundos de investimento que financiam nossa conta corrente e nosso crescimento bastardo e condicionado, então os credores somos nós ou nós somos os credores? Com ou sem o FMI seguimos à risca seu receituário, com ou sem dívida externa há sempre o que pagar, esvair e desviar. Possuídos os "representantes" e seus eficazes corpos burocráticos, despossuídos nós outros todos. A geração instantânea de valor da qual o capital global depende só ocorre em um cenário fixo feito de flexibilidades assimétricas. Os mais fracos afrouxam o máximo para que os mais fortes os "ajustem" à sua dinâmica. Engolidos assim estão salvos das crises "externas". A economia nacional ajusta-se à volatilidade como último recurso de estabilidade.
Acumular reservas internacionais a partir de superávits comerciais e ganhos de produtividade é uma coisa, outra é montar reservas artificiosas através da multiplicação criminosa de títulos de dívida pública. A dívida pública federal já bateu a casa do 1,3 trilhão de reais no final de 2007. Com a isenção de impostos para investidores estrangeiros, com taxas de juro pagando no mínimo três vezes mais que as taxas médias do mercado internacional, com o Tesouro nacional como poço sem fundo para a especulação e as costumeiras facilidades de entrada e saída de capitais, a dívida brasileira continua sendo por enquanto um dos melhores negócios do mundo.
Mas a crise financeira internacional pode deixar os investidores "nervosos" e sequiosos por proteções adicionais. Mais de 5 bilhões de reais foram evadidos do país somente nesses dois primeiros meses do ano. O Banco Central já congelou a queda gota a gota da taxa de juros e promete fazê-la subir "se necessário". Tudo pelo grau de investimento. Chantagem antecipada é mais transparente. Juras de não redução do superávit primário. Esconjuras quanto a taxas de crescimento acima dos 5%. O câmbio fica no ponto morto ao sabor das entradas e saídas, como convém a uma cloaca. A herança maldita dos tempos de FHC é o pacto pela redução dos custos
dos investimentos que fez do país praça estável, bom estacionamento dos capitais, crescendo quando possível, sob condição e por derivação. Agora querem aprofundar e renovar esse pacto de forma a garantir outra sucessão bem precificada. O temor de predadores, especuladores e seus amigos associados é que a atual crise oportunize a criação de uma esfera pública que ponha na roda o Banco Central e suas diretorias, o Comitê de Política Monetária (COPOM), o Ministério da Fazenda e o BNDES, para que submetam ao debate democrático os rumos possíveis da economia brasileira.
O pacto que interessa à maioria é um que seja fundante ou refundante da nação. Um pacto pela ruptura com a matriz neoliberal que comanda nosso Estado e que automatiza nossa política econômica. Um pacto pela exigência de se discutir a economia e a vida das pessoas em uma arena verdadeiramente política, cidadã. A "reforma estrutural" que importa, em um sistema político assim aparelhado pelo capital financeiro, é a que resgate o poder de governar, sob ótica nacional e popular. O que pressupõe inverter a lei de responsabilidade para com o sistema financeiro e somente pagar dívidas legais e legítimas, de acordo com a conveniência dos programas de dinamização do mercado interno. O que significa definir câmbio, juros e orçamento de acordo com prioridades coletivas. Definir o que é essencial e estratégico, o que se prioriza e se financia, o que não se privatiza nem se abandona.
Que venham à baila os intocáveis centros decisórios da política econômica brasileira. Que seus operadores e avalizadores prestem contas, justifiquem suas decisões, demonstrem sua "eficiência" e em função de quem.
Luis Fernando Novoa Garzon é membro da ATTAC, da REBRIP e da Rede Brasil – E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
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