Furtivos ciclos do valor e da mais-valia
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- José Martins
- 10/11/2021
Depois da pandemia – e entrando no decisivo 4º trimestre do ano – já dá para se observar coisas muito interessantes pelas frestas do laboratório secreto da produção mundial de valor e de mais-valia.
Dá para ver como se movimentam neste exato momento, as volúveis e imprevisíveis ondas de Valor Agregado (MVA) na indústria mundial de manufaturas. É nessas mexidas e imprevisíveis ondas que surfa o capital. Surfemos juntos, pois.
Os mais recentes relatórios World Manufacturing Production, publicados trimestralmente pela Unido – sigla em inglês para Organização para o Desenvolvimento Industrial das Nações Unidas – oferecem números e fatos importantes a respeito.
Duas importantíssimas conclusões iniciais. A primeira é que, no encerramento do 2º trimestre de 2021, a produção manufatureira mundial ainda se encontrava bem abaixo do seu nível registrado no 4º trimestre de 2019, antes do início da pandemia do Covid.
A partida ainda não está decidida. O meio de campo do capital continua tão embolado quanto antes de 2020. O ease money é tóxico. O ciclo afoga na liquidez. A armadilha aperta o cerco. Cobra a fatura de oceanos de estimulantes e antidepressivos.
A deflação real do valor pode ser abafada pela ficção inflacionária dos preços? Só iludidos como Paul Krugman acreditam nisso. Jerome Powell pagou para ver. A punição será pesada. E se agora resolver elevar a taxa básica de juros a punição virá em dobro.
Abriram a implacável caixa de Pandora. E o que ela secretou? Preços em alta descontrolada e abastecimento em queda livre nos circuitos globais de suprimento e insumos.
Venha para o maravilhoso mundo das criptomoedas! Bitcoin é nosso rei, nada nos faltará! Demência planetária. Tá voando moeda para todo lado! E faltando comida, gasolina, chips de memória, papel higiênico e inúmeras outras utilidades básicas.
Fenômenos misteriosos que nos últimos 75 anos só se manifestaram no ciclo atual. E que anunciam cenários sombrios para a economia do capital.
Por que sombrios? Porque aparece no radar teórico e histórico do velho navegante que derretimento da moeda (hiperinflação) e desabastecimento do mercado são duas manifestações características da crise geral (catastrófica).
O que vai decidir é o desenlace do ciclo. Hiperinflação e desabastecimento só poderão ser abortados se a produção manufatureira de capital recuperar nos próximos trimestres sua capacidade de reprodução ampliada do valor e da mais-valia.
O problema é o seguinte: onde estão as manufaturas? Só elas podem salvar o capital em concordata. Sempre foi assim. E nada mudou para que agora também não seja.
As políticas fiscais e monetárias expansionistas dos governos e bancos centrais têm prazo de validade. Não são elas que determinam a superação da crise e retomada da economia. Apenas as mantêm em stand by por certo tempo.
Qualquer cidadão sabe ou já ouviu pelo menos uma vez na vida aquele mantra: em economia não há almoço grátis. Alguém tem que pagar a conta.
Os capitalistas sabem perfeitamente quem deve pagar. Nem é difícil de saber. A regra é clara: sem volumes crescentes e formas mais intensas de extorsão do valor e da mais-valia do proletariado mundial o capital não rola. Nem o real nem o fictício. Nem o liberal nem o socialista.
O resto é conversa mole da economia vulgar e dos burocratas de todas as plumagens. Para distrair as ovelhas.
Por isso, a segunda e certamente a mais importante informação para quem lê os mais recentes relatórios World Manufacturing Production da Unido é que as economias dominantes do centro do sistema imperialista – EUA, Europa e Japão – são as que apresentam neste ciclo as maiores quedas na produção mundial de manufaturas.
Isto é inédito no pós-guerra. A desvalorização cíclica global atinge em cheio o coração do sistema. Ora, são essas economias dominantes – nomeadas no gráfico abaixo da Unido como industrialized economies – que concentram em suas áreas geoeconômicas e territórios nacionais cerca de dois terços da produção mundial de manufaturas.
São elas também que detêm todas as moedas conversíveis do sistema, centralizam 90% do mercado de capitais do mundo, as mais importantes bolsas de valores, o núcleo mais dinâmico das pesquisas básicas de desenvolvimento científico, e tantos outros monopólios de dominação imperialista do regime vigente de acumulação global.
O problema reaparece de maneira mais prática: se as manufaturas das economias dominantes e reguladoras do sistema não reativarem imediatamente o movimento ascendente da reprodução ampliada de suas linhas de produção de valor e de mais-valia, levando junto o resto do mundo dominado da periferia, quem vai pagar aquela conta do almoço grátis mais caro da história econômica mundial?
Fora da narrativa furada da Covid-19 determinando o destino da economia mundial, o que se observa na realidade dos fatos, retratados no gráfico acima, é que o mais recente período de expansão da economia mundial começou a desacelerar nitidamente em 2018 e 2019. Muito antes da epidemia. E se aprofundou em 2020.
Globalmente, a produção manufatureira de valor e de mais-valia caiu 4,1% em 2020, iniciando formalmente mais um período de crise cíclica. E até agora não se recuperou. Veremos mais à frente dados mais recentes de 2021.
Entretanto, o que deve ser destacado com tintas bem fortes, mais importantes nesta dinâmica, é que a produção manufatureira de valor e de mais-valia nas economias dominantes caiu 6,5% em 2020. Muito acima da média mundial.
Nos Estados Unidos – núcleo duro do sistema, economia reguladora do preço de produção de mercado global – a produção de valor e de mais-valia caiu 6,7% em 2020, depois de já ter beijado a lona em 2019 (crescimento zero).
O desastre foi ainda maior nas grandes e dominantes economias da Europa (Alemanha, França, Inglaterra, Itália...), onde a produção anual de manufaturas caiu 7,1% em 2020, ampliando a queda de 0,3% ocorrida em 2019.
As economias do leste asiático (Japão, Coreia do Sul, Taiwan e Singapura), incluídas pela Unido no seleto clube das industrialized economies, caíram 4,7% em 2020, depois de uma queda de 1,6% em 2019.
Na China, chão de fábrica do mundo, porém corretamente excluída das industrialized economies da Unido, a produção manufatureira cresceu 1,3% em 2020, uma taxa significativamente menor que o 6,2% registrado em 2019.
Esta queda na China foi um sinal anunciador do que já começou a aparecer em 2021 naquela economia (Evergrande etc.) e de que o “planejamento estatal” da burocracia de Pequim não é tão infalível como tem sido propagandeado pelo evangelho keynesiano-marxista dos tolos.
E o resto? A produção manufatureira das estropiadas developing and emerging industrial economies da tabela acima (excluindo também aqui a China) caiu 7,1% em 2020, na sequência de um leve crescimento de 0,2% em 2019.
Na América Latina, a queda que já se observava em 2019 foi exacerbada em 2020, com o declínio da produção manufatureira de 7,3%. Em outras economias dominadas da Ásia e Pacífico a produção manufatureira caiu 8,8%.
Este resto de economias de triste figura da periferia participa com 16,2% da produção manufatureira global. A América Latina entra aqui com 5% da produção manufatureira global.
Somando-se à participação da China (27,6%), encontramos então o fato que em dezembro de 2020 as economias dominadas da periferia como um todo participavam com 43,8% da produção global de valor e de mais-valia. O restante, 56,2%, é produzido nas economias dominantes.
Imprescindível observação antes de interromper momentaneamente este já longo boletim: na totalidade do mercado mundial predomina a mais-valia relativa como forma de produção de capital.
Entretanto, no quadro do desenvolvimento desigual e combinado entre áreas geoeconômicas e respectivas nações do mercado mundial, a forma de mais-valia relativa predomina nas economias dominantes e a forma de mais-valia absoluta predomina nas economias dominadas.
É o que Marx chama de maneira sucinta de “unidade da mais-valia” no chamado “O Capital Livro I Capítulo 6 (inédito)”. Este importante texto foi escrito por Marx para ser incluído em O Capital Livro I, mas que não o fez. Acabou sendo encontrado como manuscrito já no século 20 e então publicado.
Tem que ser lido junto com a leitura do livro I. Ajuda muito a acompanhar o desenvolvimento dos demais e vários capítulos publicados por Marx em vida.
Além deste tema que trata da periodização do modo de produção capitalista – fase de submissão do trabalho ao capital, em que predomina a mais-valia absoluta - e fase de submissão real do trabalho ao capital - predominância da mais-valia relativa – pode-se também encontrar neste indispensável “capítulo 6 inédito” um esclarecedor desenvolvimento teórico sobre trabalho produtivo e trabalho improdutivo. Só este último já vale o ingresso.