China, onde a lei do valor passeia pelas prateleiras do Xinfadi
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- José Martins
- 23/12/2021
Existe alguma coisa mais difícil de encontrar no mercado mundial do que microchips semicondutores? Acertou quem respondeu: alimento. Sem dúvida. Está mais difícil encontrar comida para alimentar os trabalhadores do que microchips semicondutores para alimentar as linhas de montagem de automóveis, eletroeletrônicos, etc..
Isso é grave. Afinal, como já observamos inúmeras vezes, o desabastecimento de mercadorias e o derretimento da moeda nacional (com ou sem hiperinflação) são as principais e incontroláveis manifestações de uma verdadeira crise periódica de superprodução de capital.
É exatamente essa complexa dinâmica econômica global que está por trás do atual desabastecimento, estocagem e elevação dos preços em todos os quadrantes do mercado mundial. A lei do valor cobra a conta de contradições (e contravenções) acumuladas pelos capitalistas em todo o mundo.
Ao contrário das sandices proferidas pelos economistas do capital, o misterioso desabastecimento de microchips semicondutores e de alimentos que assola o mundo faz parte de um mesmo processo endógeno de superprodução de capital, explosão do comércio internacional e abrupta erupção de mais um período de turbulências circulatórias, comerciais, etc..
Nesta dinâmica perfeitamente provocada pela ação dos capitalistas e seus respectivos governos nacionais todas as principais mercadorias transacionadas mundialmente entram na dança do desabastecimento. E acontece em todas as principais economias do mundo. Sem exceção.
Começando pela China, pela economia da nação mais populosa do mundo, onde o governo dos capitalistas tem a obrigação de encher diariamente o bucho de mais de 1,4 bilhão de pessoas.
Se o desabastecimento acontece em todo lugar, ele aparece na China como um “caso clínico”. Um caso especial na nação mais populosa do mundo que, desde os anos 1980, foi gradativamente anexada pelas potências imperialistas ao mercado mundial como a peça central das cadeias de montagem e de suprimentos globais.
Qual era a vantagem comparativa oferecida pelo governo chinês e livremente usufruída pelos capitalistas e empresas de todo o mundo?
Simples: uma população de mais de 1 bilhão de trabalhadores assalariados low cost (baixo custo) bombeando massas assombrosas de mais-valia absoluta nas veias esclerosadas do sistema capitalista mundial.
Em vários ciclos periódicos, desde o final dos anos 1970, a paulatina anexação da China às cadeias globais de montagem industrial (plataformas de exportação) ajudou muito a salvar o sistema imperialista global de uma crise geral e catastrófica.
Entretanto, no decorrer do período mais recente de expansão global 2009/2019 o funcionamento deste sólido processo de desenvolvimento desigual e combinado já começava a apresentar cruciais limites e fadiga de material.
Agora, nesta virada de ano, as limitações sociais impostas pela crescente resistência e sublevação da classe operária nesta estratégica plataforma de montagem podem desacelerar e imobilizar todos os canais logísticos e de suprimentos do mercado mundial.
Em última instância é sempre a luta de classes internacional, junto com seus desdobramentos geopolíticos, que determina e estabelece o prazo de validade de um período histórico de desenvolvimento econômico.
A possibilidade real de imobilização das cadeias de suprimentos globais já se anunciava desde o final de 2018, quando a superprodução de capital e as batalhas no comércio internacional já erguiam limitações e barreiras políticas nas sobrecarregadas autopistas do comércio internacional.
Mas os fatos que ocorreram neste mês na China expõem à luz do dia que os problemas já conhecidos dos capitalistas no “chão de fábrica do mundo” começam a extrapolar aquelas precisas determinações econômicas. E pressionar pela realização do pior dos cenários possíveis.
Acontece que uma coisa é faltar microchips, outra coisa é faltar alimento. Comida para o povo. Por isso, quando a burocracia de Pequim informa aos cidadãos que as condições de suprimento dos alimentos de base no país estão seriamente ameaçadas o problema meramente econômico se metamorfoseia em questão social. Muda de patamar.
Foi exatamente isso que aconteceu em primeiro de novembro, quando a população chinesa foi surpreendida pela orientação dos inteligentíssimos “planejadores de Estado” de que a população deve estocar produtos de primeira necessidade em suas casas e que as autoridades locais fiquem de prontidão para garantir o abastecimento de alimentos em suas regiões.
De acordo com a agência de notícias alemã Deutsche Welle, o Ministério do Comércio da China, em um comunicado publicado na noite daquele primeiro de novembro, os burocratas de Pequim convocaram os chineses a “armazenar certa quantidade de produtos de necessidades básicas para atender às necessidades diárias e emergências”.
O comunicado oficial não explica, porém, o motivo da indicação e nem se o país corre risco de passar por um longo período de restrição alimentar. Uma pista foi dada pelo Ministério do Comércio “que pediu a preservação dos suprimentos de vegetais neste inverno e na próxima primavera”. Qualquer pessoa antenada nos fatos consideraria isso como muito tempo.
O mesmo comunicado pede que os “funcionários do partido” locais facilitem a produção agrícola e deem atenção às cadeias de abastecimento, por meio do monitoramento de estoques de carne e vegetais, mantendo os preços estáveis.
A lei do valor atropela os dirigentes do socialismo de mercado. Afinal, como o todo poderoso “planejamento estatal” dos amantes de Stalin (e do primo Keynes, nas horas vagas) vai conseguir a proeza de manter estáveis os preços dos alimentos de base que conformam o custo de reprodução da força de trabalho no chão de fábrica do mundo? Mistério.
O que se sabe de verdade, dados da Bloomberg News, é que os preços dos vegetais dispararam na China nas últimas semanas. Os alimentos vegetais estão custando mais do que a carne em muitos casos. Achatamento da curva de rendimento dos diversos terrenos de Ricardo? Um pouco de uma boa especulação acadêmica não atrapalha.
O fato social é que a explosão dos preços aumenta ainda mais as preocupações dos trabalhadores. Afinal, seus salários e sua reprodução física e de seus filhos dependem imediatamente destas relações econômicas fundamentais do atual regime de exploração entre o lucro dos capitalistas e a renda dos proprietários fundiários. Vimos no último boletim como estes últimos são majoritariamente encarnados na China pelos “funcionários locais” do assim chamado “Partido Comunista Chinês”. Muita podridão a ser devidamente considerada na arma da crítica e pela crítica das armas.
Só nas quatro últimas semanas, até 22 de outubro, os preços de vegetais no atacado aumentaram 28%. Estão no nível mais alto desde fevereiro deste ano, mostram os dados mais recentes do Ministério do Comércio.
Couve-flor e brócolis custam cerca de 50% a mais, enquanto o espinafre aumentou 157% no período de quatro semanas.
Passeando pelo Xinfadi, um planetário supermercado atacadista de alimentos na zona sul de Pequim, que fornece 90% das frutas e vegetais consumidos na capital, além de frutos do mar e carnes, pode-se presenciar que um saco de meio quilo de alface ou espinafre custou até 8 yuans (US $ 1,25) na última quarta-feira. A mesma quantidade de carne de porco custava cerca de 8 a 10,5 yuans, e a de frango, de 7 a 10 yuans.
De acordo com a mesma matéria Deutsche Welle, a orientação do governo para estocar alimentos provocou medo na população de que a medida poderia ter sido desencadeada não só pelo mercado, mas também pelas tensões elevadas com Taiwan nas últimas semanas.
Eis uma preocupação bem mais inteligente e, portanto, muito mais plausível, do que a versão oficial de novas variantes do Covid-19 e outras bobagens vendidas à opinião pública.
Quando a economia e o social se interpenetram com a geopolítica estão dadas as condições necessárias para uma tempestade perfeita. A forma e intensidade desta tempestade devem estar povoando a imaginação da opinião pública chinesa.
Cenas de alarme na paisagem das cidades chinesas. Em postagens nas redes sociais, relatos que as pessoas correram para estocar arroz, óleo de cozinha e sal, enquanto a imprensa local chegou a publicar listas de bens recomendados para estocar em casa, incluindo biscoitos, macarrão instantâneo, vitaminas e lanternas.
O governo sentiu o golpe. A resposta aos sinais de pânico da população veio já em 2 de novembro, no dia seguinte, por meio de uma publicação no jornal Economic Daily, ligado ao onipresente Partido Comunista Chinês, em cuja publicação seus indefectíveis “planejadores estatais” comunicam à opinião pública com todas as letras que o objetivo era garantir que os cidadãos não fossem pegos de surpresa se houvesse um lockdown de Covid-19 em sua região. Bobagem.
Enquanto isso, nas prateleiras do Xinfadi os preços continuam subindo e os estoques caindo.
José Martins é economista.
Artigo originalmente publicado no site Crítica da Economia.