Correio da Cidadania

O setor elétrico brasileiro escolhe o seu jogo: Guardiola ou Waldemar

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Foto: Thanate Dokmai / Vecteezy – Creative Commons

Se pudéssemos por alguns instantes abstrair a pesada complexidade envolvida nas relações do setor elétrico e vê-las como o desenrolar de uma simples partida de futebol, poderíamos entrever alguns elementos fundamentais da estruturação desse jogo complexo, mas fascinante. Se você conseguir fazer isso, meu caro leitor, irá entender a grande encruzilhada e as escolhas decisivas que estão colocadas diante de nós.

Para atender o crescimento explosivo da demanda colocada pela industrialização e urbanização do país, o Brasil montou, a partir dos anos 1930s, um time excepcional para ampliar a oferta de energia elétrica que desse conta desse crescimento.

Para isso buscou-se a energia presente nos nossos rios e quedas d’água. Essa escolha garantiu uma fonte barata e abundante de energia. Porém, essa escolha carregava um problema. O que fazer quando o clima não fosse generoso e tivéssemos secas fortíssimas? Em suma, como lidar com a falta de chuva. Em termos técnicos, como reduzir a nossa exposição ao risco hidrológico.

A solução veio da antiguidade. Construir reservatórios para guardar a chuva excedente dos períodos de abundância para ser usada nos períodos de escassez. Ou seja, a velha e boa represa.

Mas nosso time estava sendo desenhado para voos bem maiores do que a construção de simples represas e decidimos centralizar a gestão desses reservatórios. O objetivo era ambicioso: explorar economias de escala, de escopo e de diversidade hidrológica na operação conjunta dos reservatórios em um rio, em uma bacia hidrográfica e, como último drible, em todo o país. Para isso partimos para a construção de grandes barragens e de um sistema de transmissão que interconectasse todas elas.

A fundação física sobre a qual iria ser construído todo o nosso setor elétrico estava dada (energia hidráulica-reservatórios-transmissão), assim como a fundação operacional (centralização-otimização-coordenação). O passo seguinte foi levar isso ao seu limite, construindo um setor elétrico único no mundo. Muito além do estado da arte do setor elétrico no mundo, em termos de interconectividade, complexidade e coordenação.

Em outras palavras, um time concebido desde o início baseado no conjunto, na cooperação, no jogo coletivo, no qual o meio de campo joga um papel fundamental na coordenação das jogadas, sem a qual o time simplesmente não joga e trava.

O nome desse meio campo: Estado

Essa concepção de jogo viabilizou a possibilidade de se ter um time composto basicamente de hidrelétricas, que jogavam o tempo todo; graças ao fôlego garantido pelos reservatórios (verdadeiro pulmão desse time) e ao jogo coletivo estruturado em torno de um forte meio de campo ocupado pelo Estado. Era essa combinação de reservatórios (pulmão) e coordenação (meio de campo) que permitia que a participação da energia hidráulica chegasse a mais de 95% da geração. Nesse caso, as térmicas tinham um papel discreto e modesto. Entravam muito pouco no jogo. Não tinham relevância. Entraram no jogo quando Itaipu tornou uma parte do parque térmico da região sul irrelevante para a garantia do abastecimento da região e se deu uma serventia a ela via a criação da Conta de Consumo de Combustíveis (CCC).

A remuneração dos jogadores traduzia essa concepção de jogo. As hidráulicas, que jogavam muito, ganhavam um fixo elevado, mas um variado por jogo pequeno. As térmicas, que jogavam pouco, recebiam um fixo baixo, mas um variado por jogo elevado. Na linguagem do futebol, as hidráulicas tinham salários altos, mas bichos pequenos. As térmicas, ao contrário, tinham salários baixos, mas bichos altos.

Os problemas começaram a aparecer quando, por um lado, os reservatórios foram perdendo a capacidade de regularizar o fluxo hidráulico e, por outro, o Estado foi perdendo a sua capacidade de coordenar o setor. Assim, perdeu-se o fôlego e o meio de campo. Sem isso, é impossível levar a termo a concepção de jogo tradicional do setor.

A aposta, a partir dos anos 1990s, na mercantilização da energia elétrica e na privatização foi esvaziando a cooperação, substituída pelo enfrentamento da competição, e o jogo coletivo, substituído pela valorização da autonomia dos agentes. Com isso, o meio de campo desapareceu, o time se fragmentou, e a atividade de coordenação se tornou cada vez mais difícil; com os interesses individuais e de curto prazo passando a prevalecer, dificultando a operação e a expansão adequada do sistema. Com isso, o time passa a viver uma sucessão de crises, principalmente, quando o quadro hidrológico favorável deixa de existir a partir de 2013 e o setor enfileira anos seguidos de déficit hídrico. O time, desde então, solenemente, capotou.

Em outras palavras, o jogo endureceu e ficou claro que nós não temos mais time para encarar contendas mais difíceis. Porém, o buraco é mais embaixo do que uma simples questão de arranjo institucional, tão ao gosto dos anos anos 1990s. Estado versus mercado; concorrência versus monopólio; coordenação versus competição; mercadoria versus serviço público. E por aí vai em um campeonato de clichês.

O problema não é de modelo institucional, da melhor maneira de se armar um conjunto dado de jogadores dentro de um campo dado. Um problema que, talvez, a simples troca de técnico resolvesse. Há, sem dúvida, esse problema, porém, esse não é o ponto. O ponto é que há mudanças maiores ocorrendo. Não na superfície, mas nas placas tectônicas do sistema brasileiro. No centro delas está a perda de capacidade de regularização dos reservatórios.

A recuperação dessa capacidade, de forma a esses reservatórios voltarem a sustentar um modelo exclusivamente hidráulico, é impossível em função de fatores geográficos, ambientais, sociais e políticos.

Em função disso, essa perda muda o campo de jogo e os jogadores e atinge em cheio a nossa tradicional concepção de jogo. Portanto, é necessário buscar um novo campo, novos jogadores e uma nova concepção de jogo.

Em termos de fundação física é preciso buscar uma nova base de recursos naturais para sustentar o edifício elétrico brasileiro. E aí entramos no cerne da questão.

As nossas tradicionais térmicas não têm condições de serem a base do novo time. Pouco robustas e caras, elas foram desenhadas para jogar pouco. Como custam muito caro, muitas vezes fazem com que as hidráulicas fiquem mais tempo em campo, piorando a sua condição pulmonar. São as famosas térmicas que esvaziam os reservatórios ao invés de poupá-los.

Em função disso, precisamos de térmicas que desempenhem um papel distinto das tradicionais; deixem de ser complementares e passem a ser protagonistas no mesmo patamar das hidráulicas. Enfim, outras térmicas; outros jogadores. Jogadores que deixarão de ser reservas para atuarem diretamente como titulares. Jogadores que mudarão sua maneira de jogar. Jogadores que mudarão seu esquema de remuneração, passando a ganhar, como as hidráulicas, salários altos, mas bichos baixos; como sói ocorrer com jogadores que jogam o tempo todo. Dessa forma, consegue-se poupar, de fato, o fôlego das hidráulicas e sair do impasse técnico e econômico das nossas térmicas tradicionais. Trocando em miúdos, são as famosas térmicas que operam na base.

Contudo, essa solução tem um problema. Se o setor elétrico no mundo não tivesse passando pela maior transformação da sua história, abandonando os combustíveis fósseis para fazer face ao aquecimento global e à mudança climática, a solução para o problema brasileiro seria simplesmente aumentar a participação das térmicas, concomitantemente com a natural redução das hidráulicas. Porém como aumentar de forma estruturante a participação de um jogador que está sendo interditado no médio e longo prazo no mundo inteiro a partir da política de descarbonização.

É como aquele jogador em fim de carreira que não tem mais mercado na Europa e a gente traz como salvação do nosso time. Enfim, não trazemos o jogador pelo que ele joga no presente, mas por aquilo que ele jogou no passado. O famoso me engana que eu gosto.

Portanto, é preciso buscar outras soluções, outros jogadores e outras concepções de jogo, que não seja o jogo térmico dos anos 1990s – uma versão elétrica do velho 4-4-2 do Arrigo Sacchi (momento varandão da saudade I)

Que outro jogador poderia entrar no jogo?

Me desculpem, mas a resposta é simples. É aquele jogador que está entrando em todos os times elétricos ao redor do mundo: as renováveis. É fácil? De maneira nenhuma. Por isso, a transição energética é o maior desafio do setor elétrico mundial em sua história. Contudo, é inevitável. Lamento. O problema é grande e, de um jeito ou de outro, vamos ter que enfrentá-lo mais cedo ou mais tarde. Provavelmente, mais cedo, porque o custo de enfrentá-lo mais tarde é gigantesco.

No entanto, há algo positivo nessa história toda. O desafio elétrico brasileiro pode ser menor do que o dos outros países porque nós temos uma gigantesca capacidade de estocagem representada pelos nossos reservatórios. Reservatório esses, todos eles interconectados entre si. Isso dá ao Brasil, uma capacidade de lidar com a intermitência das renováveis que nenhum país no mundo tem.

Os reservatórios não são capazes de mitigar o risco hidrológico de forma que a energia hidráulica volte a ser a viga principal que sustenta o nosso edifício elétrico, mas são capazes de sustentar a entrada forte de renováveis. Essas últimas, com a cobertura dos reservatórios, é que passarão a ser, de fato, as vigas principais do setor.

De fato, é um outro jogo, com novos jogadores e novos arranjos e soluções. Uma nova concepção de jogo que vai demandar coordenação/centralização/otimização do conjunto de reservatórios no desempenho da nova função. Isso vai permitir a apropriação coletiva e pública desses recursos fundamentais para a redução do custo da transição energética brasileira. Isso significa trazer um velho conhecido do setor elétrico brasileiro para ocupar o meio campo do novo time: o Estado.

A grande vantagem que temos nesse novo futebol elétrico que está sendo jogado no mundo é que pra nós ele não é novo. Temos jogadores que “ressignificados” – termo tão em moda hoje – se tornam mais do que modernos, se tornam contemporâneos. Não há nada mais contemporâneo do que reservatórios, transmissão e coordenação.

Em suma, a nova fundação física sobre a qual será construído o novo setor elétrico brasileiro será dada pelo trinômio energias renováveis-reservatórios-transmissão, assim como a fundação operacional, baseada em novos arranjos institucionais/organizacionais, será sustentada na centralização-otimização-coordenação do uso dessa base física.

Em outras palavras, um time concebido para valorizar o conjunto, a cooperação, o jogo coletivo, no qual o meio de campo joga um papel fundamental na coordenação das jogadas e no desenrolar do jogo.

Uma concepção de jogo que valoriza os jogadores que temos e a experiência que temos. Uma visão de jogo que valoriza a nossa forma de jogar coletivamente, o passe, o meio de campo, a coordenação das jogadas.

Em síntese, temos time, temos jogadores, temos capacidade de jogar esse novo futebol elétrico que está surgindo no mundo. Somos bons nisso. Na verdade, podemos ser os melhores.

Porém, os dirigentes do nosso time não estão interessados em nada disso. Estão preocupados em vender nossos melhores jogadores e implementar uma concepção de jogo de trinta anos atrás (varandão da saudade II). Correm atrás de uma pauta fora de tempo e de lugar cujo único objetivo é permitir a apropriação privada, por parte de alguns, de recursos que poderiam ser usados para tornar a energia elétrica mais acessível para todos (economia e sociedade). A privatização da Eletrobrás, que detém praticamente a metade do conjunto reservatórios/transmissão, e a liberalização dos mercados elétricos (escondida pelo falacioso termo modernização) representam simplesmente jogar fora o futuro de muitos em benefícios do ganho de poucos.

Enfim, entre jogar um futebol contemporâneo, de acordo com o que rola no mundo hoje, tirando o melhor dos nossos jogadores e da nossa experiência histórica, nossos dirigentes escolheram um futebol retrógrado, ultrapassado, voltado para poucos. Uma verdadeira “gourmetização” do setor elétrico brasileiro: fino, sofisticado e, principalmente, caro, muito caro.

Podendo escolher um Guardiola, a elite brasileira do setor elétrico escolheu o Waldemar. Escolheu aquele tipo de técnico que defende que tem que sofrer (com as tarifas elevadíssimas), que tem que defender a casinha (os interesses deles) e o que importa são os três pontos (os dividendos que eles levam pra casa). Sem esquecer o feitiche da precificação, o nosso “externos desequilibrantes”, o exemplo mais acabado de um setor metido a sofisticado e pedante que mediante um discurso falsamente moderno abandonou a luta histórica, desde Tesla, contra a escassez de energia elétrica e optou por precificar e ganhar com essa escassez. Um setor que ao invés de se preocupar em garantir o acesso à eletricidade passou a se preocupar com as diversas formas de ganhos associados ao não acesso. Afinal se é a escassez que dá o valor, vamos apostar na escassez. A festa das comercializadoras, dos bancos, das corretoras, das consultorias e dos especialistas de plantão. Todos em busca do nosso subprime. Aquele que vai transformar uma crise hídrica em uma crise bancária (apud Íkaro Chaves).

Provavelmente se escreverá um dia que o desembarque do setor financeiro com malas e bagagens no setor elétrico brasileiro gerou um desastre de proporções, como diriam os antigos, ferroviárias. Mas quem se importa se, como dizia o velho inglês, no futuro estaremos todos mortos.

E todo esse furdunço financiado pelo consumidor brasileiro que já paga a tarifa mais cara do mundo e, pelo andar da carruagem, vai continuar pagando.

Porém, não estamos condenados a essa mixórdia. A esse desmanche de um time que tem ótimos jogadores e pode perfeitamente jogar de uma forma distinta daquela que está sendo proposta pela elite (burocrática e empresarial) mais medíocre que o setor elétrico brasileiro já teve. Acredito que o Brasil tem futuro e que o setor elétrico vai desempenhar um papel crucial na construção desse futuro. No passado, no presente e no futuro muitos pensaram, pensam e pensarão assim. E assim como fomos capazes de construir um setor elétrico único no mundo, acredito que uma nova geração será capaz de repetir a dose e construir um novo setor elétrico brasileiro que também será único no mundo. Temos recursos, gente e criatividade para isso.

E o resto. Bem, o resto vai pro lixo da história. Ou os senhores acham que essas figurinhas repetidas que aí estão irão se sentar ao lado de um Cotrim, de um Mário Bhering, de um Lucas Lopes, de um Dias Leite e de tantos outros que construíram uma obra gigantesca e sofisticada como o setor elétrico brasileiro. Esquece. Tudo jogador ruim. Esses caras não jogam nem em um casados e solteiros em Bangu em uma tarde “amena” de um verão carioca.


Ronaldo Bicalho é Doutor pelo Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do Grupo de Economia da Energia do Instituto de Economia da UFRJ.

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