Correio da Cidadania

Privatização da Eletrobras: como chegamos a isso?

0
0
0
s2sdefault



Foto: Linhas de transmissão de energia do sistema elétrico nacional (Arquivo/Agência Brasil)

Não se trata de desprezar o enfoque de valoração da Eletrobras como centro da discussão sobre a privatização da empresa. Entretanto, imagine a França debatendo sobre o preço de venda da Torre Eiffel ou do Palácio de Versailles? Ou os Estados Unidos fazendo uma avaliação do preço da Estátua da Liberdade, da Tennesse Valley Authority ou da NASA?

Pode parecer exagero fazer essas comparações, mas estamos num tempo de grandes mudanças tecnológicas e climáticas onde a eletricidade vai exercer um papel ainda mais primordial do que já exerce. Temos um território privilegiado na terra que nos proporcionou um crescimento de consumo de eletricidade baseado em hidroelétricas por muitos anos. Não é pouca coisa.

Estamos cientes que muitos aprovam a venda dessa estatal dada a perda de confiança na política e suas intervenções em empresas. Contudo, há detalhes que essas pessoas precisam considerar:

1 – Toda a arquitetura integrada do setor elétrico brasileiro foi levada a efeito pela Eletrobras que exercia o papel de várias instituições hoje existentes. Não reconhecer esse ponto é estar desinformado sobre a história do setor.

2 – Empresas públicas não podem ser confundidas com o estado. Elas dispõem de estatutos que limitam o seu uso para exercer estratégias que possam lhes causar prejuízo. O problema é que essas regras nunca foram obedecidas por nenhum governo nos últimos 27 anos. Na maioria das vezes o estatuto foi desobedecido para socorrer os problemas apresentados pelo modelo de mercado vigente.

Ao focar apenas no preço da venda de uma empresa que construiu o sistema que temos e, se esse é o único obstáculo à privatização, o atual governo, que quer vender o mais rápido possível, pode interpretar que as outras fortes razões foram abandonadas.

Na minha opinião, esses aspectos financeiros podem ser classificados como conjunturais. Infelizmente o aspecto estrutural do setor, com todos seus defeitos, continua intocado e continuará a influenciar os aumentos tarifários.

A desinformação está no centro desse dilema. Ao contrário do que diz a grande mídia, desde 1995, marco zero da privatização e mercantilização, alguns fatos são sempre camuflados:

1 – O preço da energia elétrica, independente de impostos, subiu mais do que o dobro da inflação do período.

2 – Anúncios de venda de empresas e usinas prontas desincentivou o capital privado a investir na expansão da oferta. Veja os dados no Instituto Ilumina.

3 – A Eletrobras foi usada para corrigir os vários problemas que se originaram da modelagem adotada no Brasil.

4 – O modelo de mercado sempre apresentou características de uma tentativa de mimetismo (imitação) de sistemas de base térmica que apresentaram bizarros comportamentos que sempre foram óbvios.

Nesse último aspecto, desconhecido do grande público, logo após o racionamento de 2001, que ao contrário da crença generalizada, não foi causado apenas por uma tragédia hidrológica.

A Eletrobras, sob o comando de Luiz Pinguelli Rosa, elaborou um estudo que deixou isso claro.

Trata-se do Relatório do Grupo de Estudo da Nova Estruturação do Setor Elétrico – GENESE datado de 8/04/2003.

Por razões políticas e de interpretação das forças de mercado da época, esse relatório não foi divulgado. Não cabe aqui uma avaliação das razões dessa atitude, mas é essencial mostrar trechos desse estudo que soam como uma profecia.

Nada mais são do que análises de características concretas do nosso singular sistema. Vejam:

“As reformas do setor elétrico implantadas na década de 90 podem ser entendidas como integrantes de mudanças ocorridas no centro do capitalismo mundial e seus desdobramentos para o conjunto dos países em desenvolvimento.”

“Entretanto, a privatização não foi o único processo em curso. A ideologia de que o mercado é o melhor regulador, mesmo para serviços essenciais, foi a mais importante transformação implantada na última década. O grande debate no atual cenário é o dilema entre o conceito de serviço público e seu controle e fiscalização pelo setor público e o de produção independente e seu controle pelas forças de mercado.”

“A natureza moldou nosso Setor com base nos recursos naturais renováveis do país. Esse fato tem implicações importantes na escolha da forma de exploração desse serviço, pois há apropriações de rendas associadas a essa renovabilidade.”

“Além disso, o processo de implantação do modelo atual foi feito de forma açodada, deixando diversos problemas não resolvidos que vão desde políticas de desenvolvimento inadaptáveis, marcos regulatórios complexos, incompletos e erros de ordem técnica.”

Ou seja, em 2003 já se sabia que o preço de mercado de curto prazo no sistema brasileiro, conhecido internacionalmente como “spot price”, tinha as características mostradas abaixo:


O gráfico, em R$/MWh e datado de 08/04/2003, mostra que, de 64 amostras de preços de curto prazo, cerca de 48 (73%) ocorrem abaixo da média.

Mais de 10 anos depois, analisando os dados de 2.000 anos do plano 2016 da EPE, que foi usado para definir um planejamento indicativo, veja o que encontramos para o comportamento do PLD (nome do “spot price” no sistema brasileiro) que, como já mostramos diversas vezes, emula o custo marginal de operação (CMO):



Analisando de outra forma essa distribuição, vejam abaixo a conhecida característica de uma série com mediana (*) muito menor do que a média.


(*) mediana é o dado que fica no centro de um conjunto de dados.

Aqui está concentrada a principal característica que faz os preços de mercado de energia no Brasil ter comportamentos completamente inobserváveis em outros mercados de energia. Em poucas palavras, o endeusado e tão citado mercado, por características físicas do sistema brasileiro, não apresenta nenhuma confiabilidade, pois, como já mostramos desde o relatório GENESE, há capturas de vantagens que não são isonômicas e sequer explícitas. Isso provocou a destruição da relação demanda x oferta causando aumento de riscos e a adoção de uma expansão baseada em térmicas que está na base de aumentos tarifários.

Mas, o que tem isso a ver com a privatização da Eletrobrás??

Muitas pessoas acham que esse assunto, “muito técnico”, teria pouca ligação com a eminente privatização da Eletrobras. Sugiro uma calma leitura dos argumentos de Pinguelli e o modelo do setor elétrico, e também o documento que enviei à audiência realizada pelo BNDES em janeiro e até hoje não respondido.

Muitos outros detalhes estiveram ausentes da análise do TCU. Se isso se deve a uma limitação da atuação desse tribunal, fica evidente que precisamos rever o papel do poder judiciário.

É a minha opinião, baseada em grande parte nos problemas estruturais apontados no Relatório GENESE. É o que pude fazer.


Roberto D’Araujo é engenheiro e ex-assessor da Eletrobrás. Também é diretor do Instituto Ilumina, de onde o artigo foi retirado.

 

*Gostou do texto? Sim? Então entre na nossa Rede de Apoio e ajude a manter o Correio da Cidadania. Ou faça um PIX em qualquer valor para a Sociedade para o Progresso da Comunicação Democrática; a chave é o CNPJ: 01435529000109. Sua contribuição é fundamental para a existência e independência do Correio.

*Siga o Correio nas redes sociais e inscreva-se nas newsletters dos aplicativos de mensagens: Facebook / Twitter / Youtube / Instagram / WhatsApp / Telegram

0
0
0
s2sdefault