Correio da Cidadania

Breves anotações acerca dos preços agrícolas mundiais

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Para os capitalistas nada é mais catastrófico do que o desabastecimento do mercado. De alimentos, principalmente. O colapso na produção de alimentos sempre foi politicamente fatal para qualquer regime histórico de produção. Para o capitalista mais ainda.

Isso acontece porque os capitalistas, como todas as demais classes dominantes de antigos regimes, para continuar monopolizando a propriedade privada das terras e demais meios de produção da sociedade têm de encher o bucho da população. Minimamente. Garantir a reprodução da força de trabalho dos produtivos e de suas famílias. Senão caem do cavalo. Ingovernabilidade e guerra civil.

É no estômago vazio e nos famélicos da terra – em Addis Abeba ou em Nova York – que o capital encontra seu limite absoluto de existência. É a única situação necessária para que o regime atual de exploração possa ser desmascarado e derrubado. Quando só a eliminação radical e imediata do mercado e do Estado pode garantir a reprodução física e a vida da população trabalhadora.

É por isso que o desabastecimento em geral, e do alimento em particular, é a manifestação mais característica e mais importante de uma crise geral do capital. Aqui a cara do capital não pode ser escondida. Revela-se à luz do dia a negação que deve ser revolucionariamente negada.

O capital não existe com a missão de abastecer o mundo com bens ou utilidades, mas produzir mercadorias e vendê-las por seu preço, por uma forma de valor originado endogenamente ao seu processo de produção.

A classe capitalista – que monopoliza e compartilha com a classe dos proprietários territoriais a propriedade dos meios de reprodução dos trabalhadores – só “oferta” alimentos no mercado mundial quando estes últimos lhe derem um retorno monetário na dupla forma de lucro e de renda territorial.

O desabastecimento moderno de alimentos não acontece com uma grama sequer de causas naturais. Esse tipo de catástrofe alimentar é marca registrada do regime capitalista. Ele só acontece com uma falência geral dos preços, uma hiperinflação. Resulta diretamente da acumulação do capital em sua totalidade e na esfera agrícola em particular.

Por isso, quando se trata do desabastecimento da comida do trabalhador é muito importante considerar, antes de tudo, que se trata de um problema de variação de preços e da consequente repartição do lucro dos capitalistas e da renda fundiária dos proprietários territoriais embutidos nestes preços de mercado.

Isso pode ser verificado concretamente no desenrolar dos ciclos econômicos globais das últimas décadas e quando se observa na mídia econômica ou outros canais de informação a variação diária dos preços dos principais produtos agrícolas.

São cotados como preços mundiais. E regulam todos os preços nacionais dos principais alimento de base. Concretamente, todos os preços de mercado do milho, do trigo e do arroz são negociados no meio oeste dos EUA, pelos pregões diárias na Bolsa de Mercadoria de Chicago, a poderosa Chicago
Mercantile Exchange (CME), no coração do corn-belt estadunidense.

Não culpem guerra ou pandemia

As negociações de grãos do mundo são centralizadas em Chicago porque esta é a maior cidade da região conhecida como “cinturão do milho” – onde são produzidas anualmente 500 milhões de toneladas de milho. Disparadamente a maior produção e produtividade do mundo.

Uma esclarecedora comparação: no parasitário agronegócio brasileiro é produzida anualmente a merreca de 115 milhões de toneladas de milho! Aproximadamente 20% do produzido no corn-belt do meio oeste norte-americano. Esta diferença nunca é explicada pelos economistas da não menos parasitária agro pop burguesia brasileira.

A CME está fervendo desde o ano passado. Os preços dos alimentos não param de subir. Mas neste primeiro trimestre do ano a fervura atingiu níveis verdadeiramente ameaçadores para o funcionamento de todos os países e todos os lares do mundo.

O que acontece antes na CME aparece contabilizado depois pelas agências de estatísticas agrícolas mundiais. Como a Organização para Agricultura e Alimentação (FAO, sigla em inglês), que em 8 de abril divulgou seu relatório mensal sobre a evolução dos preços agrícolas mundiais.

O Índice de Preços de Alimentos da FAO, uma medida de preços globais dos alimentos mais negociadas, subiu 12,7%, para 159,3 pontos, frente ao recorde anterior de 141,4 em fevereiro. É a leitura mais alta desde que o índice foi desenvolvido, em 1990.

Grande parte deste aumento foi impulsionado pelos preços mais altos dos grãos, ou cereais. O índice de cereais da FAO saltou mais de 17% mês a mês. Não é apenas a preocupação com as safras da Ucrânia e da Rússia que está inflando os preços, esclarecem no relatório os economistas da FAO. Os temores sobre a oferta norte-americana e as condições gerais das safras ajudaram a aumentar os preços do trigo em cerca de 20% mês a mês, diz a agência.

Os preços atuais dos cereais são os mais elevados do pós-guerra (1945). Vejam na curva abaixo a evolução em mais de meio século.

Neste longo período, o único ponto fora da curva ocorreu na primeira década dos anos 1970. Vale como exceção à regra. No restante do período, os preços se mantiveram comportadamente abaixo da linha de tendência. Isto ocorre ininterruptamente até 2005/2007, quando se anuncia o até então mais potente choque cíclico desde 1945.

O último ciclo

O período de recuperação mais recente (2009/2019), entretanto, já mostra oscilações importantes naquela normalidade de mais de quarenta anos e vários ciclos periódicos de superprodução depois, cujas crises parciais foram sendo abafadas por dois movimentos simultâneos.

De um lado, abafadas por um movimento sanguinário de aprofundamento da exploração da força de trabalho global – nas metrópoles e na periferia. De outro lado, um movimento de controle imperialista não menos sanguinário sobre os canais de escoamento e os preços das matérias primas das áreas dominadas – América Latina, Oriente Médio, Ásia, Leste Europeu e África.

Os choques periódicos de superprodução global mais potentes e a consequente pressão da luta de classes em todas as nações do mundo levantaram um freio de mão neste processo de globalização do capital aparentemente invencível até pouco tempo atrás.

Na ausência de crises periódicas gerais, a tendência é que os preços mundiais dos alimentos de base não encaminhem para o desabastecimento catastrófico no mercado mundial. Mas, como se pode observar na curva acima, o peso do choque 2008/2009 e sua difícil recuperação posterior já mostravam que este “bom comportamento” dos baixos preços das commodities agrícolas era coisa do passado.

Vejamos esta possível ruptura da ordem globalizada de maneira mais desagregada, utilizando os números apresentados no mesmo relatório da FAO.

Do ponto de vista teórico da dinâmica econômica capitalista os índices da coluna 4 Cereais (ou alimentos de base) são os mais importantes. Observa-se, então, ao contrário do ocorrido com os no período de crise anterior (2008/2009), que no atual período de crise (2019 em diante) há uma fulminante elevação dos preços dos cereais.

Esta explosão ocorreu na virada do ano, quando estava se decidindo se a crise parcial, ainda controlada pela ação dos governos, seria revertida ou desembocaria em uma crise geral. A alta dos preços dos alimentos já deveria ter sido revertida no 1º trimestre/2022. Ou achatada, pelo menos.

Ocorreu exatamente o contrário. Observa-se uma inoportuna elevação de 38% nos preços dos cereais entre março de 2021 (123.9 pontos) e março 2022 (170.1 pontos). Inoportuna e inédita no pós-guerra (1945).

Isso é causado, em primeiro lugar por uma anêmica acumulação de capital global, quer dizer, uma diminuição também inédita da produtividade do trabalho e de elevação do custo unitário do trabalho em todo o mundo nos últimos 13 anos – exatamente o último ciclo econômico de expansão e crise atual.

Ora, sem uma elevação da taxa de mais-valia extorquida da classe trabalhadora mundial para níveis muito superiores ao que existia até 2019, nada de recuperação econômica, nada de superação da crise parcial e abafamento da crise geral. Isso não ocorreu, até agora.

Portanto, o que determina a atual impotência dos capitalistas em reverter a fase de crise atual é o recrudescimento da luta de classes. Eles e seus parceiros proprietários fundiários, com os burocratas e classes médias assalariadas a tiracolo, não estão sendo capazes politicamente de impor à classe dos trabalhadores produtivos de capital uma nova e adequada taxa de exploração para um novo ciclo de expansão.

Impasses

Esta impotência cria também um encarniçado conflito distributivo de rendimentos decrescentes entre aquelas três principais classes sociais que constituem o modo de produção capitalista – capitalistas (lucro), proprietários fundiários (renda) e trabalhadores (salários). Este é o conhecido modelo ternário de Ricardo.

Se os conflitos redistributivos da massa de mais-valia social entre os liberais capitalistas da globalização (Wall Street) e classes médias assalariadas, de um lado, e os patrióticos proprietários fundiários do corn belt, de outro, levam à ingovernabilidade política, guerra civil etc., a sua inabalável santa aliança contra os trabalhadores produtivos leva ao desabastecimento, fome e adequada redução da massa salarial na produção.

Portanto, a inédita explosão neste 1º trimestre dos preços dos cereais é organicamente determinada pelas condições da reprodução ampliada (acumulação) do capital e dos correspondentes ciclos periódicos de superprodução e crise. Trata-se, assim, de mais um importante indicador de que o capital global afunda efetivamente na areia movediça da crise geral e catastrófica.

Portanto, quem quiser saber o que provoca o atual sumiço dos alimentos em todo o mundo pode observar na tabela acima aquele índice de preços dos cereais absolutamente inalcançável pelo cidadão comum. Ele nada mais é do que a identidade do capital, quer dizer, da forma econômica par excellence do desabastecimento e da fome mundial.

José Martins é economista e editor do Crítica da Economia, de onde este artigo foi retirado.

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