O “xapralá” que nem os números conseguem desmontar
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- Roberto Pereira D'Araujo
- 27/07/2022
Dados estão disponíveis para qualquer interessado fazer uma análise do que ocorreu no nosso caro setor elétrico. Infelizmente, parece que, no Brasil, nem números oficiais conseguem esclarecer o que ocorreu nos últimos 30 anos. Aqui vai mais uma tentativa que, se for vista pelos responsáveis, provavelmente ficará sem resposta. É o “xapralá” brasileiro!
Vejam a evolução das porcentagens em POTÊNCIA das fontes de eletricidade no Brasil. Atenção! É a proporção da capacidade de gerar energia, medida em Megawatt (MW). Reparem que, atualmente, as hidráulicas têm aproximadamente 64% da potência. Não é a geração de energia!
Infelizmente os dados mensais do ONS só estão disponíveis a partir de 2006. Entretanto, dados do Balanço Energético mostram que de, 2001 até 2022, a dependência de POTÊNCIA térmica mais do que dobrou. De 1995 até hoje, sextuplicou.
Uma informação é a proporção da potência. Outra é participação percentual na energia gerada, medida em Megawatt/hora (MWh).
Reparem o que os números tentam nos mostrar.
De 2006 até 2013, as térmicas geraram apenas 5% da energia consumida apesar de representarem cerca de mais de 15% da potência. Esse simples fato mostra que, no sistema brasileiro, em função da significativa capacidade de reservar água, usinas térmicas não vendem a energia capazes de gerar. Quem cobre esse hiato são, majoritariamente, as hidráulicas. Por exemplo, atualmente, as hidráulicas cuidam de aproximadamente 80% da energia. Portanto, 64% da potência gera 80% da energia.
Uma maneira bastante óbvia de analisar este comportamento é mostrar o conhecido fator de capacidade das térmicas, que simplesmente compara o percentual de energia gerada em relação à capacidade média de gerar (energia x energia potencial).
Reparar que, de 2006 até 2013, apesar de variações, o fator de capacidade girou no entorno de 18%. A partir de 2013 há um salto para mais de 40%. Essa mudança dura até 2016.
De 2016 em diante, ocorre uma brusca alteração.
A partir do referido ano, as térmicas são bastante exigidas no período seco e muito reduzidas no período úmido (áreas com gradiente marrom claro), padrão que não ocorreu de 2013 a 2016. Traduzindo em termos simples, no verão, período úmido, independente da situação da reserva, as hidráulicas substituem as térmicas.
Consequentemente, é possível perceber que a reserva total, dos 4 subsistemas, se reduz em relação à carga.
Reparar que chega a atingir o equivalente a apenas 1 mês de consumo em agosto de 2014, outubro de 2017, dezembro de 2019, dezembro de 2020 e setembro de 2021. Pior do que a relação de 2001 no racionamento!
Será que estamos consumindo muita energia? Será que a culpa é do consumidor?
Abaixo está a evolução do consumo total de energia em MW médios. A linha azul é a média móvel de 12 meses.
Reparar que, desde janeiro de 2016, estamos com mais de 6 anos onde o aumento de consumo total foi de apenas 5.000 MW médios.
No histórico é possível perceber que, antes, para ocorrer esse aumento bastavam 2 anos. Mesmo assim, a reserva atinge apenas 1 mês de consumo em diversos meses. Portanto, devido à grave crise econômica, nós, os consumidores, não estamos causando problemas para a gestão do sistema.
Mas, o xapralá deixa empurrar as bandeiras tarifárias sobre o consumidor chegando a cobrar o equivalente a uma nova usina! Só mesmo no Brasil, adiciona-se um valor equivalente a uma nova usina... Mas sem a nova usina!
Nesse ponto, os dedos acusatórios apontam para São Pedro. Abaixo, a evolução da energia natural (afluências) dos 4 subsistemas em relação à média histórica.
Ótimo para os que acham que o sistema está muito bem. Ainda bem que o santo não tem advogado. Como se vê, de 2017 até 2021 as afluências ficaram no entorno de 85% da média histórica.
Pronto! São Pedro é o culpado. Desmatamento? Aquecimento global? Ora, xápralá!
Só que S. Pedro manda o histórico desde 1931. Energias naturais anuais em função da média.
Vejam só. No histórico de afluências há o registro do chamado “período crítico” que mostra situação crítica muito semelhante à tragédia da “escassez hídrica”. Portanto, a prova da culpa de S. Pedro está sob suspeita.
Bem, se está registrado no histórico que situações hídricas melhores do que a escassez resultaram em falta de energia, não seria prudente tentar recuperar a reserva para enfrentar um período difícil que já resultou num racionamento vergonhoso?
Pois é... Só que a decisão tomada, com base nos parâmetros que estão nos modelos, decidiu o contrário! Desde 2016, no período úmido, reduz-se geração térmica e gera-se com hidráulicas. Traduzindo: nada de térmicas ajudando a recuperar a reserva. Ao contrário! Hidráulicas substituem térmicas, que são caras, evidentemente.
Estaria o ONS (Operador Nacional do Sistema) errado?
• Em primeiro lugar é preciso informar que as decisões do ONS não são monocráticas. Muito ao contrário! Elas dependem de parâmetros e critérios definidos de forma colegiada e registrada em reuniões com os agentes do setor, que já é majoritariamente privado.
• Em segundo lugar, o que os números tentam nos dizer, apesar do “xapralá”, é que desde 2016, apesar do baixo crescimento do consumo, as fontes térmicas disponíveis para tentar recuperar o estoque são muito caras! Assim, sob os critérios e parâmetros embutidos no modelo de operação, infelizmente, a decisão adotada foi de usar a água nos períodos úmidos ao invés de guardá-la para o futuro.
• Em terceiro, o que os números tentam nos mostrar é que faltam investimentos! Não é preciso muito conhecimento técnico para perceber que com mais usinas, sejam hidráulicas, eólicas e solares, poderíamos ter a chance de melhorar nosso estoque. Mas, apesar da boa performance das eólicas do Nordeste, elas ainda não são suficientes para isso.
• Em quarto, apesar de ainda termos potenciais aproveitamentos hidráulicos nesse país continental, o desprezo pelo fato de que usinas hidráulicas não são meras fábricas de kWh parece ter trancado essa saída. Evidentemente, a ótica privada, que predomina mais do que nunca, não quer saber da inserção de usinas nas suas regiões, resolvendo problemas de transporte fluvial, abastecimento d’água, turismo, saneamento, controle de florestas e outros benefícios. Agora, sem a Eletrobrás, o Brasil fecha essa porta.
• Em quinto, o poder quer convencer os cidadãos de que baixando os impostos sobre fontes energéticas a energia fica mais barata. É verdade que os impostos no Brasil são altos, mas, mesmo reduzindo o ICMS de 30% para 18%, o que se conseguiu é que, agora, sem nenhuma dúvida, a energia (o kWh) é o item mais caro na conta de luz.
• Em último, o “xapralá” brasileiro está mais forte do que nunca.
Roberto D’Araujo é engenheiro, ex-assessor da Eletrobrás e diretor do Instituto Ilumina.
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