Correio da Cidadania

Menos Trigo E Mais Canhão

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A crise econômica global dá a dimensão e o ritmo da guerra mundial. A deflação (ou desvalorização) do capital determina a dinâmica da guerra. Deflação do capital travestida de corrosiva inflação global dos preços, desabastecimento de bens de primeira necessidade e de fome para a população mundial.

O desabastecimento e a fome global se alastram tanto na periferia quanto no centro do sistema. A guerra imperialista segue a reboque. Tão irreversível quanto a derrocada econômica e social que a impulsiona.

Este sinistro quadro atual da realidade capitalista ainda poderia ser revertido nos próximos trimestres? Para os capitalistas e seus acólitos economistas, só se o Federal Reserve Bank de Nova York (Fed) fosse capaz de manobrar uma aterrissagem suave da maior queima de capitais da história que se anuncia nos EUA.

Quer dizer, só se o banco central do planeta fosse capaz de – elevando agressivamente a sua taxa básica de juros e enxugando seu balanço de quase 10 trilhões de dólares – debelar o incêndio da extravagante inflação atual e evitar, ao mesmo tempo, uma crise geral, uma catastrófica derrocada global da produção, do comércio e do emprego, coisa que os economistas liberais, keynesianos e marxistas de Estado chamam desdenhosamente de “estagflação”.

É exatamente isso que se discute nestes dias em Wall Street e nas principais praças financeiras do mundo. Toda a teoria econômica e toda a história econômica são exigidas nesta discussão prática. E os trabalhadores devem fazer seu próprio juízo a respeito. Pelo menos para não serem arrastados pelo ponto de vista e armadilhas dos capitalistas e outros parasitas do sistema.

Esta discussão enquadra o desdobramento não só da economia mundial, mas também da geopolítica e da guerra. O tempo urge. O rastilho de pólvora já queimou a metade do fio.

No centro do sistema pouca gente ainda acredita que aqueles bons tempos da pandemia possam voltar. Enquanto o capital se pulveriza nas bolsas de valores de todo o mundo, nas últimas semanas, desfaz-se com a mesma rapidez a ilusão de que a maior farra do boi fiscal e monetária da história, praticada durante os dois anos da pandemia, teria sido um eficiente remédio para contrarrestar duravelmente a grande crise geral que ora se reapresenta com toda a força e trágica realidade de fome e de guerra mundial imperialista.

Para se entender as particularidades desta situação que se desenrola sob nossos olhos é muito importante observar que os efeitos espetaculares daquela vigorosa política anticíclica dos últimos dois anos não apareceram apenas na esfera do capital fictício – bolsas, ativos financeiros em geral – mas também no coração da produção, na contabilidade do preço de produção da indústria e dos lucros dos capitalistas.

Portanto, este gráfico abaixo – que registra uma evolução histórica do preço de produção da indústria manufatureira dos EUA nos mais recentes ciclos periódicos de superprodução de capital – ilustra melhor as particularidades e a natureza do problema da disruptiva elevação dos preços de mercado em todo o mundo.

A inimaginável transfusão de moeda e de crédito ocorrida entre 2020 e 2022 salvou momentaneamente os capitalistas de uma profunda deflação de preços de produção e de lucros que já se manifestava perigosamente no último trimestre de 2019.

Importante considerar que a atual inflação global dos preços de mercado e simultâneo desabastecimento de alimentos e demais mercadorias básicas para a reprodução dos trabalhadores mundiais é resultado de uma política fiscal e monetária anticíclica dos governos dos capitalistas e proprietários da terra, quer dizer, de uma política de socorro ao capital mundial acometido de um agudo processo de desvalorização e queda da taxa geral de lucro.

Esta observação rigorosa de uma evolução particular dos preços de produção em ampla série histórica serve também para não se imaginar que a atual explosão inflacionária em todas as esferas econômicas da economia global deva-se simplesmente à expansão “exagerada” da moeda e do crédito – como desejam os economistas liberais da teoria quantitativa da moeda e demais partidários das ideias de bolhas especulativas e outras bobagens.

Para desmentir estas visões desqualificadas da realidade econômica, basta verificar no gráfico acima que entre julho de 2009 e dezembro de 2019, quer dizer, durante os dez anos da fase de expansão do último ciclo periódico da economia, os preços de produção não cresceram mais do que míseros 5%.

Uma situação quase deflacionária na nova era do easy Money [dinheiro fácil] em que Ben Bernanke, presidente do Fed, na época, e seus famosos “helicópteros do Bernanke”, despejavam diariamente e sem cerimônia uma desbragada quantidade da moeda e de crédito na economia. E nada de bolha. Ao contrário, expansão do capital e inflação dos preços de mercado próxima de zero.

Mas, comparativamente, entre dezembro de 2019 e abril deste ano (2022), durante apenas os generosos dois anos de bonança da pandemia, o índice dos preços de produção da indústria reguladora do mercado mundial subiu inacreditáveis 27%! Cinco vezes mais que em dez anos de expansão.

Isso é normal? Nem um pouco. Não se tem notícia na história do regime capitalista que tenha ocorrido alguma coisa parecida com este atual rally dos preços de produção. Uma anomalia global.

Na sua origem, a aparição de uma rara situação de estado estacionário da economia mundial. Agora os economistas do mercado o denominam vagamente de “estagflação”. É assim que, doravante, também chamaremos o estado estacionário. Pelo seu apelido popular.

Mas não é por causa do apelido popular do estado estacionário que se deva esquecer, como faz a economia dos capitalistas, que a inacreditável elevação dos preços de produção indicada no gráfico é apenas um claro sinal do tamanho do estrago da crise geral de superprodução de capital que se manifestou de maneira mais clara em 2019 e se encontra atualmente em estado avançado de ebulição e queima de massas assombrosas de capital.

A assim chamada teoria econômica se manifesta ruidosamente, como é de sua natureza, como economia política. Para salvar os seus declinantes lucros (e evitar a correspondente queda da taxa geral de lucro) os capitalistas de todo o mundo colocaram no lugar da renitente deflação uma inflação dos preços diretamente proporcional ao tamanho do estrago da crise. Não uma exagerada, mas uma adequada dose de easy Money à gravidade da doença do paciente.

O capital produtivo de lucro e seus parasitários acionistas e investidores de todas as plumagens secretaram uma disruptiva inflação nas maiores economias do planeta. Uma estagflação! Agora vem o momento da volta. Depois da ida triunfante da Ilíada, a crise da Odisseia. A volta sempre é um momento de crise.
Paira em todas as cabeças dos capitalistas mais bem informados aquele crescente temor de que a nova política monetária de Jerome Powell e seu estressado banco central não possa evitar, de um lado, o maior crash da história da bolsa de Nova York e, de outro, não possa sobrar para Washington senão a única alternativa de pisar mais fundo no acelerador da 3ª Guerra Mundial.

Os capitalistas e seus economistas se desesperam com o fato de que a política econômica dos bancos centrais e dos Tesouros nacionais das grandes economias não tem mais munição para enfrentar a derrocada econômica.

Trata-se agora de produzir menos trigo e mais canhão. Troca-se a munição econômica que poderia salvar e não salva mais a acumulação do capital – quer dizer, a propriedade privada especificamente capitalista – pela munição mais contundente que pode salvar pelo menos a propriedade privada em geral. Trocam-se então as linhas de produção de capital pelas linhas de destruição das guerras imperialistas.

José Martins é economista e editor de Crítica da Economia, onde o artigo foi originalmente publicado.

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