Notas sobre o capital e a atual crise bancária mundial
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- José Martins
- 02/08/2023
Marx dizia em algum lugar do livro 4 de O Capital, também conhecido como “Teorias sobre a Mais-Valia”, que as crises econômicas especificamente capitalistas sempre são precedidas por crises de crédito. E que Smith confundia as coisas, ao considerar estas últimas como a crise capitalista par excellence.
Mas, pontuava Marx, essa confusão do grande economista era perfeitamente justificável pelo fato de que na época em que ele viveu as modernas crises periódicas de superprodução do capital ainda não haviam realizado plenamente sua aparição na cena histórica. Isso só vai acontecer na primeira metade do século 19, o que pode ser observado por Ricardo e lhe permitiu escrever sua obra seminal da Economia Política.
De passagem: estas modernas crises capitalistas com falências de grandes empresas e volumosa queima de capitais se manifestam primeiro na esfera do capital fictício (financeiro) antes de se estender para a esfera da produção real. As crises bancárias se devem fundamentalmente a movimentos endógenos deste do processo de circulação e de produção como um todo. A crise se origina e se desenvolve na totalidade deste processo. E torna-se ainda mais mistificada e incompreensível para o senso comum quando aquela propagação da queima de capitais na esfera do capital fictício para a esfera da produção não tem a tração suficiente para tornar a crise parcial em crise geral.
É este abafamento da crise geral no período pós-guerra (1945) que os capitalistas administraram vitoriosamente com a conjugação de políticas econômicas anticíclicas, aumento da exploração da classe operária mundial e aprofundamento da exploração imperialista das economias dominantes sobre as economias dominadas do Sul global. A Economia sempre foi e será política. E a luta de classes é a que sempre determina, em última instância, a capacidade ou não dos capitalistas abafarem a passagem da crise parcial para a crise geral.
Talvez, por isso, em pleno século 21, os epígonos contemporâneos de um imaginário e desnaturado “Smith liberal” podem continuar distorcendo impunemente a dinâmica das crises cíclicas de superprodução de capital como a de episódicas (e perfeitamente suportáveis pelo sistema) ondas de expansão, especulação e, no final, incômodas “crises financeiras”. Monótonas repetições de passageiras crises parciais, de simples crises financeiras.
É este tipo de ilusão que se presenciou mais uma vez no segundo trimestre de 2023. Sem uma teoria econômica séria que lhes permita observar e discernir a irrecuperável estagnação atual da produção de valor e de mais-valia no mercado mundial, os capitalistas não se preocupam senão com mais uma iminente crise do sistema bancário. E talvez, claro, uma possível recessão neste ano. Apenas uma pequena recessão.
Em Washington, em 1 maio, as autoridades oficiais reguladoras do sistema bancário assumiram a massa falida do First Republic Bank e a venderam na bacia das almas para o JPMorgan Chase, o maior banco dos EUA. Uma clara medida de intervenção do Estado destinada a conter ou minimizar uma crise bancária de dois meses que abalou o sistema financeiro mundial. E salvar os capitalistas.
O presidente dos EUA, Joe Biden saudou a operação durante um discurso sobre pequenas empresas na tarde desta segunda-feira (1). “Essas ações vão garantir que o sistema bancário esteja são e salvo”, disse Biden. E acrescentou: “Enquanto os depositantes estão sendo protegidos, os acionistas estão perdendo seus investimentos. E, criticamente, os contribuintes não são os que estão no gancho”.
Os acionistas e detentores de dívidas do First Republic serão eliminados neste negócio, uma ocorrência típica quando um banco é colocado em liquidação judicial. O nome First Republic e seu logotipo – uma águia mergulhando com suas asas em forma de V – serão eliminados gradualmente, e as agências do banco se tornarão lojas do JPMorgan Chase.
O First Republic era até poucas semanas atrás o segundo maior banco dos EUA em ativos a entrar em colapso depois do Washington Mutual, que faliu durante a crise financeira de 2008 e também foi adquirido pelo JPMorgan. Fundado em 1985 e o 14º maior banco dos EUA no início deste ano, os ativos financeiros do First Republic foram atropelados pela irresponsável política de aumento das taxas de juros do Fed e correspondente queda do valor destes ativos financeiros. Perdas fatais.
Os dirigentes lutaram para manter o banco vivo depois que dois outros grandes bancos quebraram em março, assustando depositantes e capitalistas detentores de ações (títulos de propriedade) da empresa. Não conseguiram.
Os sócios capitalistas abandonaram definitivamente as ações do First Republic depois que seus dirigentes publicaram um assustador conjunto de resultados em 24 de abril, expondo-se ao mercado como um banco morto ambulante. Neste balanço ficaram evidentes as “perdas não realizadas”. No final de tudo, o valor de mercado do banco havia sido pulverizado. Suas ações não valiam mais nada. A propriedade privada representada pelo valor de mercado de suas ações cotadas nas bolsas de valores virou pó.
Os três grandes bancos estadunidenses que faliram neste ano, informa o The Wall Street Journal, eram maiores que os vinte e cinco maiores bancos que faliram em 2008, na última crise periódica (e parcial) de superprodução do capital. Isso extrapola a esfera dos bancos e do capital fictício em geral. Em primeiro lugar, é um sinalizador muito importante da magnitude da crise industrial (esfera da produção) que se aprofunda e se avoluma neste momento. Mostra as condições particulares e características de uma crise geral, catastrófica, coisa bem diferente das sucessivas crises parciais e suas superações nos últimos 70 anos.
Em segundo lugar, representa um inaudito processo de centralização do capital bancário dos EUA. Esse movimento tectônico é uma condição necessária para enfrentar os desdobramentos geopolíticos dos próximos anos. Um sistema financeiro nacional enxuto e poderoso é condição necessária para o financiamento da guerra. Nenhuma grande potência ganhou uma grande guerra sem um fortíssimo sistema bancário nacional. Voltaremos a detalhar esses movimentos estratégicos dos EUA rumo à economia militar-industrial e preparativos para a 3ª grande guerra.
Os acontecimentos econômicos e geopolíticos se aceleram velozmente neste momento. Em 3 de maio, o Federal Reserve Bank, banco central do planeta elevou as taxas de juros em um quarto de ponto percentual e seu presidente Jerome Powell deu a entender que pode ser o fim do aperto monetário mais agressivo desde a década de 1980. O aumento elevou a taxa de referência do Fed para uma meta de 5% a 5,25% – o nível mais alto desde 2007.
Se essa taxa será alta o suficiente para trazer a inflação de volta à meta de 2% do Fed ninguém sabe. Mas se a política suicida de aperto do Fed não for capaz, e não será, outras forças mais determinantes do processo já estão fazendo esta tarefa de reinstalar a deflação nos preços das mercadorias-piloto (mais comercializadas) da economia.
Mas quais são essas forças? Perguntem a Elon Musk, dono da Tesla, a maior fabricante de carros elétricos do mundo, por que ele já abaixou os preços de venda dos seus carros em mais de 30% desde o início deste ano.
Nota:
Garantir que o sistema bancário esteja são e salvo, como declara o presidente dos EUA, Joe Biden. Aliás, é bom relembrar que Smith dizia exatamente isso, que o Estado existe para salvar os proprietários das riquezas sociais e controlar as rebeliões dos trabalhadores contra sua miséria neste regime de dominação. O cinismo cientifico, necessariamente oposto à ideologia de classe, não é um defeito, mas uma grande qualidade dos melhores economistas. É este cinismo da observação desinteressada que desvela as entranhas materiais do sistema. Ricardo, um pouco mais à frente, em seu clássico “Princípios da Economia Política e do Imposto” incorpora logo no primeiro parágrafo do livro seu conhecido “modelo ternário de Ricardo”, quer dizer, as três principais classes sociais do regime capitalista e seus diferentes rendimentos: os proprietários da terra (renda fundiária); os capitalistas detentores dos meios de produção (lucro); e os trabalhadores (salário). E, complementaria, cinicamente, no penúltimo capítulo, “Sobre As Máquinas”, que a classe trabalhadora era a única neste modelo cuja situação só poderia piorar com a expansão da acumulação do capital, das rendas e dos lucros. A classe trabalhadora seria permanentemente expulsa da produção com a introdução das máquinas. Como obra da natureza. Este princípio ficou conhecido como “efeito Ricardo”. Não por acaso, um dos principais capítulos do livro 1 de O Capital, de Marx, leva o título “Maquinismo e Grande Indústria”. Puro Ricardo. A “lei geral da acumulação”, de Marx, nada mais é do que um monumental aprofundamento e sofisticação científica do “efeito Ricardo”. Ricardo despido de sua naturalização do processo. De todo modo, tanto Smith quanto Ricardo foram extremamente importantes e decisivos para Marx e Engels produzirem Das Kapital, a principal arma teórica da classe proletária internacional.
José Martins é economista.
Retirado de Crítica da Economia.
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