Correio da Cidadania

Cronicamente inviável? A saúde suplementar em debate

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Ilustração: Sohnee Harshey/The Third Eye


O ano de 2023 se aproxima do final como um dos mais marcantes na produção de debates e políticas públicas em saúde. A junção entre uma crise estrutural do capitalismo, ajustes econômicos implacáveis ao bem-estar social, a maior crise sanitária dos últimos cem anos e um governo de criminosos negacionistas científicos gerou um cenário complexo que ainda está por ser inteiramente compreendido.

Se no âmbito do SUS houve uma vitória parcial da agenda que visa o incremento de seu financiamento e a retomada da capacidade do ministério em ser o orientador e coordenador de políticas que chegam até a ponta, na saúde suplementar há um forte debate a respeito de uma suposta crise financeira, marcada por reajustes considerados abusivos e uma relação cada dia mais conturbada entre empresas e usuários.

Para uma compreensão mais ampla do setor da saúde empresarial, o site de jornalismo jurídico Jota produziu a coletânea A saúde suplementar e o reajuste dos planos de saúde, em que ouviu diversos atores e especialistas. Em linhas gerais, os autores dos artigos e matérias reconhecem a crise. Os ângulos de visão e propostas de solução é que variam de acordo com a posição de cada participante de um intrincado jogo de interesses particulares e necessidades sociais.

Como explica Danielly Fernandes, repórter do site, na matéria de abertura, as regras de reajuste de preços seguem uma fórmula que observa diversas variantes. “Para definir a cifra, a ANS adota uma fórmula de cálculo, regulamentada na Resolução Normativa 441/2018, que leva em consideração a variação das despesas em saúde, ganhos de eficiência, a variação da receita por faixa etária, além do IPCA/IBGE”.
Ou seja, se admitimos o papel da saúde privada no setor, seus reajustes são, em si, aceitáveis. No entanto, o advogado Fernando Bianchi, que presta serviços neste campo, faz interessantes indagações no sentido de melhorar seus critérios. “O cálculo médio de reajuste imposto pela ANS realmente atende à necessidade de utilização que as operadoras sofreram naquele período? O reajuste, em termos regulatórios, tem base técnica, não tem influência política e nem tendência protecionista ao consumidor, mas ele precisa ser evoluído”, analisa.

Bianchi continua: “A ANS tem acesso aos dados de mercado, de cada região e os dados individuais da utilização de cada operadora, seu movimento, gastos, quanto recolheu e quanto faturou. Se ela tem todos esses dados, seria capaz de fazer um cálculo de acordo com a efetiva necessidade de cada operadora. O mercado esperava um reajuste maior do fixado, mas há operadoras que poderiam precisar talvez mais de 20%, ou menos do que os 9,63% fixados. Por que, então, não podemos chegar mais próximo da efetiva necessidade de cada operadora, se hoje o regulador tem esses dados para refinar, ainda mais, o cálculo?”

Órgãos como o Instituto de Defesa do Consumidor contestam as alegações das empresas em favor dos reajustes. Para este e outros atores, como a deputada Andrea Werner, oriunda da luta de mães pelo reconhecimento dos direitos de crianças autistas, tais argumentos são pouco aceitáveis. Além de sempre contar com fluxo de caixa, cujas aplicações financeiras permitem que se cubra os déficits operacionais, houve lucros recordes no período mais duro da pandemia.

O problema, como ela mesma explica, é a natureza do negócio. “No lugar de financiar tratamentos, financia processos e honorários de advogados para sustentar cancelamentos ilegais de planos. No lugar de financiar uma rede credenciada de qualidade, financia aquisições bilionárias e verticalização com o único objetivo de maximizar lucros”.

De todo modo, parece um erro naturalizar a ideia de que um determinado negócio seja deficitário operacionalmente e só pode ser salvo por meio de aplicações financeiras. O fenômeno recente do cancelamento unilateral de planos de saúde de usuários cujos tratamentos são mais onerosos é sintoma de que há, sim, um grave problema a ser desvendado, independentemente das considerações morais que se faça a este respeito.

Como mostra matéria de Vinicius Pereira, que fecha a coletânea, “A dívida total bruta das nove empresas listadas na B3 (Rede D’Or, Hapvida, Dasa, Oncoclínicas, Fleury, Kora Saúde, Qualicorp, Mater Dei, Alliar) cresceu no primeiro trimestre deste ano, na comparação com o mesmo período de 2022, passando de R$ 56 bilhões para R$ 71 bilhões no total”. Provavelmente, o número é fruto da verticalização do setor, com absorção de dívidas de empresas compradas por esses grandes oligopólios e compromissos assumidos nas aquisições. Mas é de se prever um movimento defensivo dos conglomerados, prejudicial aos usuários, a fim de viabilizar a pretendida otimização do modelo de negócios.

Limites estruturais

O último informe da ANS sobre a base de usuários da saúde suplementar traz dados interessantes. São cerca de 50,9 milhões de usuários de seguros de saúde no país, maior número da história. Mas a informação tem um aspecto enganoso. Trata-se de uma faixa que, grosso modo, mantém-se estável em 25% da população do país há pelo menos 20 anos, com finas variações para cima ou para baixo.

“O modelo travou. Literalmente, travou. Não consegue passar de 50 milhões de beneficiários. Para crescer mais dependeria de mais emprego e muito melhor distribuição de renda no Brasil. Além de empresas financeiramente robustas, capazes de investir fortemente em planos de saúde para seus colaboradores. E, ainda, que a economia, apontando hoje na direção do emprego informal e do empreendedor individual, se ajustasse a um sistema de saúde suplementar saudosista, que sonha com a volta da carteira assinada para que seus detentores sejam automaticamente beneficiários dos planos”, pontua Antonio Brito, diretor-executivo da Associação Nacional dos Hospitais Privados (Anahp).

A observação a respeito do mundo do trabalho é valiosa. Como mostram os dados da ANS, são 888 mil novos usuários de saúde suplementar entre setembro de 2022 e o mesmo mês de 2023. No entanto, houve queda na adesão de planos individuais/familiares no mesmo período. O número deve-se exclusivamente à recuperação de melhores taxas de emprego, o que propiciou mais de 1 milhão de novos usuários. Taxas de emprego que, por sua vez, devem-se à agenda política e econômica aplicada pelo governo Lula, que ampliou as despesas sociais (em especial justamente na saúde), retomou políticas mínimas de redistribuição de renda e investimentos produtivos. Mas num país sequestrado por uma ditadura de mercados financeiros parasitários, taxas de juros que inibem fortemente o investimento produtivo e pressões por objetivos vazios de sentido social como o “déficit zero”, ainda é pouco para mudar o panorama histórico. O teto é este, como reconhece Antonio Brito.

Caberia ainda questionar a qualidade destes planos ofertados por empresas, sob bases precarizadas, conforme as recentes reconfigurações das relações trabalhistas, outro aspecto admitido pelo diretor da Anahp. Isso porque é de se questionar até que ponto vale a pena, tanto para empregadores como empregados, financiar seguros de saúde de qualidade medíocre ao invés de se avançar de forma contundente na ampliação do SUS, o que poderia desonerar tanto um como outro lado desta relação.

De toda forma, os números da ANS revelam que famílias têm diminuído sua aquisição de planos. De quebra, há outro problema colocado pela precarização do trabalho: jovens aderem cada vez menos a planos de saúde. Isso significa que a proporção de idosos, que usam de tais serviços com maior frequência, fica cada vez maior, o que torna o sistema suplementar realmente mais caro para seus proprietários.

“No modelo atual, de cofinanciamento, paga tanto o usuário que faz uso da apólice quanto o que paga, mas não a aciona. O modelo que as operadoras têm implicitamente proposto é bastante oneroso ao Estado, que arcaria com o ônus de pacientes de tratamentos de longo prazo, enquanto elas ficariam apenas com os casos de baixa complexidade. Isso só existe no Brasil”, acrescenta Andrea Werner.

Assim, mais uma vez a sinceridade de Antonio Brito merece destaque: “na ANS, cabe centralizar a discussão com seus diretores em um ponto estratégico: estamos diante de uma crise conjuntural causada por fatores temporários? Se a resposta, como pensam alguns, for ‘sim’, bastaria um pouco de paciência e a liberação de algumas reservas técnicas para que a saúde suplementar saia das dificuldades presentes. Mas este seria um engano terrível: a crise atual fornece todas as evidências de ser estrutural, um esgotamento do modelo que veio até aqui”.

Como parece cada vez mais evidente, a reação natural dos grandes conglomerados é transferir a conta para a sociedade e se refugiar em mecanismos de autopreservação. “Os aumentos abusivos e os cancelamentos unilaterais de contratos de usuários em tratamento se somam ao descredenciamento massivo de clínicas e hospitais, promovidos por planos de saúde em sua estratégia de verticalização — em uma tentativa de maximizar lucros e ter uma maior eficiência operacional”, explica Werner.

Esgotamento

Para Antonio Brito, o assunto precisa sair da limitada alçada da ANS e se tornar assunto de Estado, sob a liderança do Ministério da Saúde. “Em seus sempre simpáticos discursos, a ministra Nísia Trindade não tem feito referências nem ao setor nem à sua crise. Portanto, aí está um primeiro objetivo para quem quiser enfrentar a questão: envolver o Ministério da Saúde em suas discussões, o que exige afastar um crônico mal-entendido. Quem regula o setor de operadoras de planos é a Agência Nacional de Saúde (ANS) e o dia a dia dessa crise tem que ser discutido com a diretoria da Agência, que tem se mostrado aberta ao diálogo. Mas a crise da saúde suplementar vai além e tem que passar pelo governo como um todo”, afirma.

Como analisaram diversos especialistas ao longo do ano em Outra Saúde, e tem sido reconhecido por atores importantes do setor privado, há um crônico defeito na saúde suplementar, que estimula o uso de serviços de saúde em excesso, retrato de uma relação meramente consumista entre prestadores e usuários. Aqui, faz falta a relação médico-paciente de acompanhamento e prevenção, eixo da Atenção Primária em Saúde que constitui a coluna vertebral do SUS, dentro do conceito de longitudinalidade. Trata-se de tornar constante a presença de toda uma equipe de saúde, não só o médico, na vida da pessoa. Isso reduz brutalmente seus custos per capita. No entanto, parte poderosa do setor privado em saúde depende da doença para se reproduzir. Quanto mais exames, remédios e tratamentos, melhor. Mas, para quem intermedia esta relação com os usuários, não está fácil fechar a conta, o que explica, por exemplo, questões como a incapacidade de pagar o piso da enfermagem, aprovado há meses.

Parece, portanto, que estamos diante de uma quadratura do círculo. Aos defensores do SUS, que num quadro de gastos públicos em saúde inferiores aos privados consegue, apesar de todas as limitações, atender diretamente 75% da população – e indiretamente também atende aos demais 25% – acumulam-se argumentos em favor de seu reforço. Quanto à saúde suplementar, parece difícil escapar da sugestão de Rosana Onocko, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva: “que ela seja, de fato, suplementar”.

Leia também:

O contra-ataque dos planos de saúde
Concentração de capital e os limites da saúde privada

Gabriel Brito é jornalista, editor do Correio da Cidadania e repórter do Outra Saúde, onde esta matéria foi originalmente publicada.

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