Insustentável regime fiscal sustentável
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- Élida Graziane Pinto
- 15/01/2024
Há cerca de 40 anos, Milan Kundera nos oferecia sua preciosa obra A Insustentável Leveza do Ser. Como o próprio título antecipa, a tensão entre peso existencial e leveza das opções de vida é mais complexa que qualquer contraposição maniqueísta. Kundera explora magistralmente essa contradição permeada de fortes ambiguidades e ironias.
As intrincadas trajetórias de Tomás, Tereza, Sabina e Franz em meio à Tchecoslováquia dominada pelo regime soviético evidenciam conflitos, encontros e desencontros desafiadores. Paradoxalmente, os personagens repetem padrões do passado e tendem a sobrecarregá-los na mesma intensidade em que buscam se libertar de tais pesos.
Algo semelhante se sucede com o “regime fiscal sustentável”, com suas idas e vindas supostamente direcionadas à construção da credibilidade das contas públicas brasileiras. Quão mais rigoroso o governo federal tenta parecer em busca da meta de déficit primário zero para 2024, menos consistente tende a ser sua execução orçamentária do próximo exercício financeiro.
Ironicamente a promessa de algo rígido e denso já tem se revelado, desde agora, como fugaz e impreciso. É sintomático, nesse contexto, o agravamento do déficit projetado para o exercício financeiro em curso, na casa de R$ 177,4 bilhões, ou seja, cerca de 1,7% do PIB. Tamanho resultado negativo, por óbvio, compromete a viabilidade da promessa da sua completa e rápida eliminação no exercício subsequente. A retração da ação governamental projetada para 2024 já tem sido antecipada pelos agentes econômicos e faz minguar também as expectativas de crescimento do PIB para este ano e para o próximo.
Na contramão do que se propagandeava, a estratégia de acelerar a redução do déficit primário — a bem da verdade — tem inviabilizado a consecução de tal objetivo. A ansiedade da agenda fiscalista colhe precisamente o oposto do que almejava...
O Brasil vive, nos presentes dias, a tensão entre a leveza do otimismo excessivo do Ministério da Fazenda em ampliar as fontes de arrecadação federal, de um lado, e o peso de metas fiscais pragmaticamente impossíveis de serem alcançadas, sem um severo comprometimento do custeio de direitos fundamentais, de outro.
A esse respeito, são paradigmáticas as fugas hermenêuticas defendidas — direta ou indiretamente — pelo governo federal para a aplicação dos pisos em saúde e educação em 2023, perante o Tribunal de Contas da União (Acórdão TCU 2338/2023-Plenário ); bem como para o pagamento dos precatórios parcelados a partir das Emendas 113 e 114/2022, perante o Supremo Tribunal Federal (ADI 7.064).
O saldo final que emerge dos primeiros meses de incidência da Lei Complementar 200/2023 é o de uma extrema rigidez sustentada para divulgação externa, enquanto são costuradas soluções opacas e contingentes para acomodar a leveza das exceções efêmeras. Adriana Fernandes, experiente analista do Estadão, percebe o quão instável parece ser o cenário em curso na implantação das novas regras fiscais brasileiras, na medida em que as considera erigidas tão somente sobre “areia movediça de interpretações”.
Afinal o peso das aparências recai primordialmente sobre o contingenciamento de despesas sociais, sobre a ameaça de acionamento dos gatilhos do art. 167-A da CF 1988 e sobre a agenda reducionista de revisão dos pisos em saúde e educação. Enquanto isso seguem fluidas (e controversas) as teses que excetuam vinculações orçamentárias e despesas obrigatórias dos respectivos regimes jurídicos.
As tensões e ironias se multiplicam ao ponto de alguns analistas econômicos defenderem abertamente que “o” problema do ajuste fiscal brasileiro residiria nas repartições federativas e nas vinculações orçamentárias protetivas dos direitos fundamentais https://valor.globo.com/brasil/coluna/pacto-e-vinculos-agravam-quadro-fiscal.ghtml Tal tipo de argumentação pressupõe que a arrecadação federal não deveria ser repartida federativamente, nem deveria ter qualquer compromisso de alocação proporcional em saúde e educação.
Fiscalistas ortodoxos chamam de “pedágio”, que supostamente estaria a frustrar uma promessa descompensada de ajuste fiscal rápido, tanto os pisos em saúde e educação, quanto a repartição federativa de receitas tributárias. Advogam a retirada de ambos os pilares constitucionais, enquanto negligenciam o peso opaco e ilimitado das despesas financeiras impostas pelas opções do Banco Central no âmbito das políticas monetária, cambial e creditícia.
Caso fosse permitido deliberar sobre a vigência do pacto civilizatório de 1988, provavelmente os que defendem a insustentável e fugaz rigidez da LC 200/2023 (supostamente responsável por instituir um “regime fiscal sustentável”) negariam cumprimento à Constituição. São os mesmos analistas que apenas priorizariam a formação de superávit primário para uma suposta estabilização da dívida pública (sob a veste leve das promessas inalcançáveis), cuja maior expansão decorreu nas últimas décadas das políticas monetária e cambial.
Esquecem-se eles de que, ainda que o país fizesse um ajuste fiscal cavalar e reduzisse o gasto social ao padrão da África subsaariana, não haveria garantia de redução da relação entre dívida bruta do governo geral e produto interno bruto (DBGG/PIB). Isso ocorre por dois motivos: o PIB pode crescer pouco ou não crescer e a taxa básica de juros pode continuar alta ou ser ampliada. Nesse sentido, a persistência de uma taxa de juros superior à taxa de crescimento é dimensão estrutural da nossa estagnação econômica e da extrema desigualdade alocativa instalada no orçamento público brasileiro.
Os dilemas da leveza e do peso existencial que Kundera explorou em sua obra-prima são atemporais e merecem ser transportados metaforicamente para a presente realidade brasileira. Em última instância, a grande contradição responsável pela insustentabilidade do regime fiscal sustentável reside no fato de que a riqueza subtributada segue sendo seguramente muito bem remunerada na dívida pública, sem que a maioria da população faça a mínima ideia dessa regressiva engrenagem.
Não há fluidez hermenêutica que supere a rigidez de tantas iniquidades superpostas. Diante de tal panorama, a LC 200/2023 é apenas o mais recente biombo que oculta tal estado de coisas, operando de forma demasiado leve (leviana?) na reflexão sobre a gestão da receita e das despesas financeiras, enquanto opera de forma excessivamente rígida, como usualmente sói ocorrer, em relação às despesas primárias.
Élida Graziane Pinto é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).
Fonte: Instituto de Direito Sanitário Aplicado.
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