Correio da Cidadania

A fraude conceitual chamada déficit fiscal

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Dizem que jabuticaba é uma fruta que só existe no Brasil. Pois o mesmo acontece com um indicador econômico amplamente usado por aqui, e quase inexistente em outros países. Estamos falando do déficit primário nas contas fiscais. Pretendo mostrar por que somos diferentes nessa questão, já que, enquanto quase todos os países adotam o chamado déficit nominal para avaliar suas contas, por aqui insistimos em usar o déficit primário.

Aliás, no Brasil, em geral passamos o ano inteiro discutindo se o governo vai ou não conseguir zerar o déficit primário. O ministro Haddad, por exemplo, tem dito que continua achando viável fechar o ano com um déficit primário inferior a 1% do PIB, e que o mesmo não mais será zero. O déficit primário é a diferença entre tudo o que o governo arrecada e tudo que ele gasta. O detalhe esdrúxulo nesse conceito: gastos com juros são excluídos do cálculo apesar de serem enormes.

Justamente a ausência dos juros é o ponto mais inusitado deste conceito. Se formos procurar nas revistas internacionais de economia e buscar como os outros países se saem neste quesito, não encontraremos nada. O mundo inteiro mede um outro tipo de déficit que é o chamado déficit nominal, também chamado de superávit nominal, quando o valor se apresenta positivo. Neste conceito, publicado semanalmente pela revista britânica Economist, para os 45 países mais importantes do mundo, a grande diferença é que os gastos governamentais com juros aparecem. Avaliar se há déficit ou superávit sem computar os juros é um despropósito.

O tema é importante porque, se acompanharmos o que acontece hoje na Europa, veremos que a maioria dos países se esforça para atingir um déficit entre 4% e 4,5% dos respectivos PIBs. No Brasil, a preocupação é para que o déficit fique entre 1% e 2%. Alguém poderia até achar que o Brasil é mais eficaz que os países europeus, já que buscamos um déficit mais baixo. Infelizmente não é nada disso. Justamente a diferença ocorre porque os conceitos de déficit não batem.

Por que então só no Brasil se perde tanto tempo discutindo e analisando um conceito que aos outros países pouco interessa? Provavelmente, porque o conceito europeu é muito mais completo, e, se nos basearmos nele, estamos muito mal. Sem contar que, pelo conceito europeu, fica escancarado o absurdo que o governo brasileiro paga de juros pela sua dívida.

Percorrendo a lista dos 45 países da revista britânica, verificamos que nosso déficit nominal é de 7,5% do PIB, e apenas o Paquistão está pior que nós. Afinal, só de juros, no ano passado o governo federal pagou R$ 660 bilhões, ou seja 6% do PIB. O pagamento com juros é o maior item de despesas do governo federal. Apenas para se ter uma ideia, os outros gastos enormes são com aposentadorias e salários dos servidores públicos. Aliás, tanto um como outro entram, sim, no cômputo das despesas primárias. Apenas os juros não entram.

A explicação para o Brasil discutir o índice que é o menos importante se deve ao fato de não se querer chamar atenção para o pagamento de juros. Como, ainda por cima, temos a maior taxa de juros real do mundo (a famosa Selic), nosso governo acaba pagando todo ano uma verdadeira calamidade a título de juros. Claro que a culpa não é deste governo, por que essa é uma prática com mais de 30 anos; mas seria muito mais saudável e didático para o país se esquecêssemos o déficit primário e concentrássemos de uma vez por todas nossas discussões apenas no déficit nominal.

O fato é que não dá para jogar embaixo do tapete a bagatela de R$ 660 bilhões, mas é o que fazemos quando enfatizamos a importância do déficit fiscal primário.

Paulo Feldmann é professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP.
Fonte: Jornal da USP.

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