Correio da Cidadania

O papel do Estado na gestão da dívida pública do RS

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Leite discute Regime de Recuperação Fiscal com ministro Fernando Haddad -  Portal do Estado do Rio Grande do Sul
As funções do Estado sofreram mudanças estruturais ao longo do tempo. Desde o Estado absolutista até o Estado neoliberal, estas mudanças dependeram de características próprias da sociedade em seus respectivos tempos históricos.

Por exemplo, a crise de 1930 e os conflitos mundiais, resultaram no Estado de bem-estar social. No entanto, a partir dos anos 1970 e 1990, difundiu-se a concepção de Estado neoliberal de que vivemos numa sociedade de indivíduos onde cada um cuida de si, tendo o Estado como objeto central, a responsabilidade fiscal. Negligenciou, assim, neste período, as responsabilidades social e ambiental.

A tragédia que estamos vivendo no estado do Rio Grande do Sul, com centenas de vidas ceifadas, prejuízo econômico que deve atingir a cifra de trilhões de reais, exige que passemos a inserir na pauta, os itens de sobrevivência, ou seja, as responsabilidades social e ambiental. E esta mudança de pauta requer outras funções ao Estado, nas três esferas, União, Estados e Municípios.

A retomada da agenda ambiental, social e de reconstrução do RS, além da criação de fundos, com diversificadas fontes de financiamento de longo prazo, exige um olhar criterioso sobre o comportamento da dívida do Estado do Rio Grande do Sul.

Em 1998, o estado do RS refinanciou com a União, por 30 anos, uma dívida de R$ 9,42 bi, a juros de 6% ao ano e correção monetária pelo IGP-DI. Com prestação limitada a 13% da Receita Liquida Real, o que ultrapassasse esse percentual seria transferido para uma conta chamada “resíduo”, que teria mais 10 anos além dos 30 anos para ser quitada.

De 1998 a 2024, a dívida foi renegociada três vezes (Leis nº 148/2014, nº 156/2016 e nº 159/2017 e modificada pela Lei Complementar nº 178/2021), através do Regime de Recuperação Fiscal (RRF). E suspensa uma vez, em 2017, quando o Estado obteve liminar no STF que suspendeu o pagamento da dívida com a União, de julho de 2017 a fevereiro de 2022. Foi judicializada duas vezes, a primeira interposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 2012 (ACO nº 2059) e a segunda, propugnada pelo governo do estado do RS em 2015 (ACO nº 2755).

Após estas sucessivas renegociações da dívida, em março de 2024, 26 anos depois do contrato entre o Estado do RS e a União, que renegociou RS 9,42 bi, em 1998, pagou R$ 46,627 bi, ainda deve, em abril de 2024, R$ 104,46 bi. Ou seja, em 26 anos o estado do RS já pagou cinco vezes o valor original da dívida e ainda deve o correspondente a 11 vezes do valor refinanciado, em 1998.

São vários fatores que precisam ser analisados e no atual quadro, não parece razoável que se analise a dívida pública do estado do RS sem fazer referência ao processo de financeirização da economia, no qual a gestão da dívida do estado do RS e da União estão subordinadas.

A financeirização da economia, é quando os ganhos ocorrem pelos canais financeiros (juros) em contraposição aos canais produtivos (lucros), isto é, quando ocorre a migração do capital dos meios produtivos para os meios financeiros. Miguel Bruno (2022) mostra o índice de financeirização da economia que é uma medida da substituição dos ativos de capital fixo produtivo por ativos financeiros.

Em 1970 para cada um real aplicado em investimento produtivo havia somente vinte e cinco centavos (R$ 0,25) aplicados em ativos financeiros. Já, em 2020, para cada um real aplicado em investimento produtivo há seis reais e trinta e oito centavos (R$ 6,38) aplicados em ativos financeiros. Ou seja, neste período, houve um aumento de 2.500% do capital voltado para os ganhos na forma de juros, em detrimento de recursos direcionados ao capital produtivo.

E no caso do Brasil a financeirização da economia passa pela gestão da dívida pública, cujos pagamentos na forma de juros são despesas executadas através do orçamento público, que drena recursos das áreas sociais e ambientais para os gastos com juros, despesas estas sem nenhum limite de gasto pelas normativas do gasto público no Brasil, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, por exemplo. É nesta engrenagem que dívida pública do estado do RS com a União, está inserida.

Este fator, dentre outros, trouxe como consequência a deterioração da capacidade do estado do RS de investir e de ofertar serviços essenciais à população gaúcha.

Em relação aos investimentos o estado do RS apresentou relação investimento/PIB inferior à média nacional. Ávila et al (2022) mostra que, em 30 anos houve uma redução significativa na estrutura do estado do RS, com “queda relativa de 41,06% do número de servidores, sendo que mais de 90% atuam nas áreas de educação e segurança.

Esta queda ocorreu sobretudo entre 1994 e 1999 e entre 2014 e 2020. Mesmo com a adoção de novas tecnologias na oferta de serviços de educação, saúde e segurança, a mudança no perfil demográfico e outros fatores como o fato de os preços dos serviços, no mundo e no Brasil, crescerem mais do que os preços das mercadorias, e o poder público oferta serviços, logo, é necessário orçamentos maiores e não menores.

Diante da atual tragédia climática do estado do RS, muito vem sendo debatido sobre a dívida com a União. Forlin (2024) apresenta simulações, entre as quais, que a dívida gaúcha com a União, considerando uma taxa de juros de 4% ao ano e correção monetária pelo IPCA sobre a dívida pactuada através da Lei Federal nº 9.496/1997 e Proes, e abatendo o que já foi pago pelo estado desde 1998, a dívida do estado gaúcho, seria em abril de 2024, de R$ 59,588 bi e não R$ 104,46 bi.

Ou seja, um valor menor de R$ 44,872 bi, montante que teria grande valia na composição de um Fundo de Financiamento de reconstrução da infraestrutura do estado, destruída pelas enchentes de maio de 2024.

O histórico mostra que neste momento, é necessário alteração estrutural, e não apenas a mera suspensão da dívida, pois está não é mais alternativa viável à sociedade gaúcha.

No entanto, há outros desafios para o êxito desta renegociação da dívida do Estado do RS com a União, que é o entendimento por parte dos Poderes Executivo e Legislativo gaúchos de que o enfrentamento da atual crise exige a ampliação e o fortalecimento do papel do Estado.

Rosa Angela Chieza, Professora de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS.
Cristiano Castro Forlin, Mestrando em Economia na UFRGS e Auditor de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado do RS (TCE).

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