Correio da Cidadania

2008: o fim dos anos de "vacas gordas"

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O ano de 2008 marcou o fim de uma época de "vacas gordas" na economia mundial: o período de 2003 a 2007, marcado por crescimento forte, sem interrupções e sem pressões inflacionárias preocupantes. A "festa" foi animada, regada por doses cavalares de especulação financeira, além da continuidade da invasão chinesa nos mercados internacionais de manufaturas de baixa e média intensidade tecnológica. A ressaca, que já começou em 2008, promete ser colossal.

 

Até meados do ano, parecia que a inflação voltaria a mostrar as garras: os preços das matérias primas subiam com muita velocidade, chegando a níveis nunca vistos. O crescimento nos países ricos já fraquejava, sob o impacto da crise das hipotecas de alto risco ("subprime"), que desde que estourara, em meados de 2007, havia provocado grandes perdas financeiras e reduzido muito o dinamismo do crédito naqueles mercados. Mas na periferia do sistema – isto é, nos "emergentes" –, o ritmo de crescimento seguia quase imperturbado.

 

Nos meses finais do ano tudo mudou. A confiança no sistema financeiro ruiu – a ponto de levar o governo dos EUA a seguir os da Europa e proceder a uma maciça capitalização dos bancos com recursos públicos: uma estatização parcial, para estancar o risco de que os correntistas corressem para sacar seus recursos, implodindo o sistema.

 

Os preços das matérias primas caíram verticalmente. Em apenas três meses, toda a forte e progressiva alta dos cinco anos anteriores evaporou. E os "emergentes" acusaram o golpe, desacelerando com força.

 

As preocupações nos países ricos transitaram subitamente da inflação para a recessão e a deflação – processo muito perigoso, que pode levar a uma depressão ou a uma estagnação prolongada (como aquela em que o Japão se debate há duas décadas, desde que estourou a "sua" bolha de especulação imobiliária).

 

Regulação esquizofrênica

 

Para esclarecer as raízes da crise ora instalada é preciso falar um pouco do colapso do arcabouço de regulação e supervisão das finanças em nível global. Esse arcabouço se marca desde os anos 1990 pela esquizofrenia: para algumas atividades há regras estritas, para outras prepondera uma atitude de "liberou geral".

 

Os bancos comerciais (aqueles em que o cidadão comum faz depósitos à vista) estão sujeitos às normas minuciosas do Acordo da Basiléia, voltadas a impedi-los de malversar os recursos dos depositantes. Os créditos concedidos pelos bancos têm de ser classificados rigorosamente conforme o grau de risco de inadimplência que implicam e provisões de recursos, precaucionárias, têm de ser feitas. Essas normas pretendem garantir que o banco terá recursos para segurar as pontas em caso de sofrer um calote mais pronunciado. Se o banco não quebra, o dinheiro dos depositantes não desaparece junto.

 

Um dos elementos que estimulou a adoção dessas normas foi a crise da dívida externa dos países subdesenvolvidos na década de 1980. A despeito do enorme esforço feito para salvá-los (contando com a coordenação do FMI, que transferiu o ônus pelos empréstimos temerários totalmente aos tomadores – sobretudo governos, como o brasileiro), vários bancos importantes não suportaram as perdas nessas operações e quebraram.

 

O resultado foi uma mudança importante na distribuição de poder no sistema financeiro global. Cada vez mais os empréstimos dos bancos perderam espaço para a chamada dívida securitizada (também conhecida por finança direta): em lugar de pedir aos bancos, as empresas e governos em busca de financiamento passaram a ofertar títulos de dívida diretamente aos investidores internacionais.

 

Uma miríade de outros tipos de instituições financeiras (alguns pré-existentes, outros inéditos) ganhou peso. São instituições que não recebem depósitos à vista do público em geral: os bancos de investimentos, os fundos hedge, os "special investment vehicles" e que tais. Essas instituições – muitas das quais, aliás, de propriedade de bancos – ficaram praticamente à margem de qualquer supervisão e regulação. O argumento, ideológico, era de que esse mercado, todo composto por "profissionais" (ou seja, sem a participação de "amadores" – cidadãos comuns), seria capaz de se regular por si só.

 

Essas instituições foram as grandes protagonistas da globalização financeira que se acelerou a partir dos anos 1990. Semearam a euforia financeira, colheram lucros inimagináveis. Nos Estados Unidos, o setor financeiro (incluindo os bancos comerciais) aumentou a sua fatia na renda nacional de 5% para 8% em poucos anos.

 

Essa falta de regras e esses grandes potentados financeiros são os artífices da grave crise atual. A maneira pela qual as regras serão redesenhadas é uma das questões centrais colocadas na agenda internacional.

 

O Brasil na tormenta: inflexão repentina

 

Também no Brasil a preocupação com a inflação dominou as atenções da política econômica na parte inicial de 2008. A forte alta das matérias primas impulsionava os índices de preços desde o final de 2007. A demanda interna, estimulada pela expansão do crédito, continuava em alta, e era suprida em proporção crescente por importações. A alta forte das importações significava um importante "vazamento" de demanda para o exterior, não compensado pelo lado das exportações – cujo volume já se encontrava quase estagnado. Ainda assim, o desemprego recuava, e a valorização cada vez maior do real ajudava a limitar a inflação. Pra reforçar, o Banco Central aumentava a taxa básica de juros (já altíssima), em nome do cumprimento da meta de manter a inflação entre 2,5% e 6,5%.

 

Foi assim até o final do terceiro trimestre. Nos meses finais do ano, por causa do agravamento da crise internacional, também aqui tudo mudou. A confiança foi abalada, os bancos travaram o crédito, a atividade econômica teve uma freada brusca, o desemprego começou a aumentar, a inflação perdeu o embalo, o BC interrompeu o aumento de juros.

 

E surgiu uma sucessão de medidas voltadas a amenizar a freada: redução de Imposto de Renda e da tributação na compra de carros, anúncio de aumento dos investimentos públicos, grande esforço de aumento da concessão de crédito pelos bancos públicos (para compensar a retração das fontes privadas de financiamento). Em suma, um pacote de "bondades" – bem diferente dos pacotes de "maldades" (aumentos de impostos, cortes de gastos, restrições ao crédito) a que os brasileiros se acostumaram em crises anteriores.

 

A razão desse contraste, que condiciona as perspectivas para 2009, é tema da próxima coluna.

 

Jurandyr O. Negrão é economista.

 

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