Correio da Cidadania

O “Eldorado” hidrelétrico na Amazônia: desfiguração e desapossamento

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Cartas

 

Ilusão

Ilusão

Veja as coisas como elas são

O curinga

A noiva

O noivo

O sim

O não

O prateado

O cavaleiro

No seu espelho

Desfigurado

O cavaleiro, o prateado

Do outro lado do seu espelho

Desfigurado

Chico Buarque.

 

A forma rebaixada como se produziram os estudos de viabilidade e os estudos ambientais das UHEs de Jirau e Santo Antônio no rio Madeira(RO), e depois a entronização deles ao custo do achincalhe da legislação ambiental - gerando licenças prévias e de instalação a la carte, com formato e temporalidade pré-definidos em função do máximo retorno financeiro - representam uma senha para o acesso irrestrito dos grandes investidores ao enorme potencial hidrelétrico da Bacia Amazônica.

 

A concessão do rio Madeira, seu sacrifício no altar dos investidores, ao contrário de aplacar a sanha privatizante e incorporadora de água e energia, redobra-lhes o apetite. É concessão primeira para concessões últimas. Um salvo-conduto institucional que tem custado o desmanche da legislação ambiental nacional e o remodelamento do marco regulatório do setor elétrico segundo as conveniências dos grupos privados. A instalação praticamente incondicionada dessas usinas desautoriza completamente uma regulamentação que admitia, ao menos em hipótese, a rejeição ou readequação de grandes projetos com base em critérios sócio-ambientais previamente estabelecidos.

 

A partir do Madeira não se admite mais vetos técnicos ou sociais ou a readequação profunda de projetos "prioritários", assunto exclusivo das empresas concessionárias e dos entes públicos feitos seus reféns. No mais caudaloso afluente do rio Amazonas cria-se o piso regulamentar das próximas feiras livres de concessões/privatizações. O calvário do Madeira é o início da via crucis dos demais grandes rios amazônicos, assim como todas as territorialidades comunitárias indígenas, ribeirinhas, quilombolas e camponesas nutridas por eles. O Xingu e o Tapajós - e seus povos - os próximos já marcados para morrer.

 

O Complexo hidrelétrico do rio Madeira instalado representa uma eficaz fórmula mercadorizante, concentrada no tempo e no espaço. Seu arranjo político-financeiro expressa um deslocamento estratégico do grande capital e das forças políticas por ele imantadas. A ofensiva se dá em nome da incondicionalidade dos investimentos em infra-estrutura. As frouxas licenças emitidas para essas UHEs, e toda sorte de subsídios financeiros e operacionais oferecidos aos Consórcios Santo Antônio Energia (SAESA), controlado pela Odebrecht, e Energia Sustentável do Brasil (ENERSUS), controlado pela SUEZ, equivalem à ratificação de um draconiano acordo de proteção de investimentos.

 

A liberalização preferencial dos serviços infra-estruturais (energia, telecomunicações, transportes e serviços financeiros), em sua condição de amplificadores e coadjuvantes da expansão econômica transnacional, atrai investidores sedentos por controle de mercados. Em nome de um crescimento setorial desbalanceado e da competitividade de enclaves econômicos, vão sendo abolidas as possibilidades de um outro padrão de desenvolvimento.

 

Para além das formalidades, as regras do jogo (capitalista, global, neoliberal) instituem-se no decorrer do processo expansivo das cadeias transnacionais de valorização do capital. O flexível regime de concessões do setor elétrico e o compartilhamento público-privado de recortes territoriais, nada desprezíveis, em se tratando da Amazônia, dizem tudo e um pouco mais. Mais ainda quando o Estado cumpre exemplarmente sua missão legitimadora, apresentando o repasse de serviços essenciais, bens e territórios à jurisdição totalizadora do capital como fator indispensável para a potencialização do desenvolvimento "nacional", a serviço de "todos os brasileiros".

 

A maldição dos recursos naturais e a guerra contra os povos tradicionais

 

O país vai se entregando em regozijo à maldição dos recursos naturais: a riqueza que vem rápida e fácil, do mesmo modo se concentra e se esvai. Basta ver a disforme anatomia do país depois do último surto de crescimento baseado na exploração intensiva dos recursos naturais. No Brasil, ao invés de extrairmos previdentemente as vantagens do atraso, em busca de dobras na história, saltamos do capitalismo juvenil para o senil. Não há criação significativa de riqueza nova sem a desnaturação e a predação de recursos naturais, bens públicos e valores coletivos.

 

A crise financeira global que eclodiu no final de 2008, ao contrário de proporcionar espaço para revisão de rota, nos aferrou ainda mais a esse modelo. Somos agora tangidos a compensar os efeitos da crise de sobreacumulação, oferecendo adicionais margens de exploração. Novos "cercamentos" a liberar excedentes de capital e de mão-de-obra a baixo custo, em uma acumulação primitiva sem fim. E o Estado brasileiro a postos, chamando para si a função de interligação da lógica territorial e capitalista do poder.

 

Com relação à Amazônia, a interligação é pensada e implementada em escopo regional/transnacional, como se pode observar a partir dos marcos orientadores da expansão do capital no subcontinente: o PAC e a IIRSA. Ambos projetos concentrados na ampliação e articulação de projetos de infra-estrutura em escala continental com vistas a potencializar a subsidiaridade da economia regional frente aos mercados internacionais, com o aumento de escala e produtividade das atividades hegemônicas no continente controladas e/ou voltadas para estes.

 

Em síntese, o PAC e a IIRSA atuam em forma de pinça (re)territorializante. Numa ponta, projetos de eixos inter-oceânicos para dissolver os chamados "gargalos físicos", dezenas de megacorredores de exportação sulcados por centenas de projetos de infra-estrutura considerados matriciais e ordenadores dos demais. Na outra ponta, iniciativas de convergência regulatória para destravar os "gargalos institucionais", novas reformas privatizantes e flexibilizadoras para franquear recursos naturais, setores de energia, transportes e comunicações. No centro, sob duplo tensionamento, físico e político-ideológico, vão sendo varridos os povos, repostos depois como novos assalariados ou sub-assalariados, com ampla serventia nos mercados precarizados. Os fragmentos do poder social ali antes existentes, vestígios arqueológicos "vivos", serão considerados relevantes somente na condição de figurantes para a publicização da "responsabilidade social" dos empreendedores privados. Procurar retomar ou manter o controle social e comunitário sobre a terra e as águas é crime de lesa-capital. E os massacres em massa e/ou seletivos, especialmente na região amazônica, surgem como resposta da pinça programada para não parar.

 

Bem ao nosso lado, o Peru também se destaca em sua "voluntária" desconstrução, seguindo a pior versão dos novos tigres asiáticos, a de países-plataformas de exportação orientados por oligopólios e oligopsônios; processo intensificado sob a condução de Alan Garcia, provindo do APRA, histórico movimento anti-imperialista. O presidente, olvidado das idéias e achando-se no meio das propinas e do prestígio de seguir o grande chefe do Norte, faz o que pode para estabilizar o ambiente político para que os mercados possam recolher do Peru, e montar nele, o que interessa e o que serve para as redes de suprimento do cinturão industrial situado na Bacia do Pacífico.

 

O presidente Garcia tratou, então, de inaugurar em alto estilo a temporada de caça aos povos indígenas-campesinos peruanos em seu manifesto "El síndrome del perro del hortelano". Nele dirigiu ao país um olhar recolonizador extremado, perscrutador. O Peru da costa, das elites despatriadas, quer mais do mesmo e se vale do neopopulismo de direita de Alan Garcia como aríete contra os povos andinos e amazônicos que se mantêm donos de si. A Amazônia peruana estaria sendo "desperdiçada" por sua possessão pelos povos tradicionais, reclama Garcia:

 

"Hay millones de hectáreas para madera que están ociosas, otros millones de hectáreas que las comunidades y asociaciones no han cultivado ni cultivarán, además cientos de depósitos minerales que no se pueden trabajar (...). Los ríos que bajan a uno y otro lado de la cordillera son una fortuna que se va al mar sin producir energía eléctrica. (...) Y todo ello por el tabú de ideologías superadas, por ociosidad, por indolencia o por la ley del perro del hortelano que reza: ‘Si no lo hago yo que no lo haga nadie’."

 

Garcia, a peso de ouro, se dispôs a seqüestrar num só mandato a história de seu país e sua ancestral herança. Daí o chamamento ao alistamento compulsório da natureza, vista exclusivamente como suporte e insumo dos capitais. Quem não entender ou se opuser, "hortelano", indolente, sabotador, inimigo público, será. Garcia, em fidelidade canina ao Império, põe a selva peruana e seus povos na roleta, no circuito dos investimentos. Os pacotes de medidas de liberalização do acesso aos recursos naturais da Amazônia são um desdobramento necessário do Tratado de Livre Comércio do Peru com os EUA. Da mesma forma, os massacres que o seguiram.

 

A luta de classes - e de frações e de blocos de poder – se magnifica em situações de disputas inter-monopolistas por novas áreas de mercado. Guerra de (re)colonização, há nome mais apropriado para designar a expansão da fronteira agropecuária, mineral e elétrica, para e na Amazônia? Nessa guerra, exploradores de todas as partes aliam-se para depois repartirem o botim. Eles se conjugam porque sobre nossa pele recaem suas diferenças e seus rateios.

 

No início de seu segundo mandato, às vésperas de lançar o PAC , Lula não fez muito diferente ao declarar guerra aos "entraves" ao desenvolvimento: "Eu estou me dedicando, em novembro e dezembro, a ver se eu pego todos os entraves que eu tenho com o meio ambiente, todos os entraves com o Ministério Público, todos os entraves com a questão dos quilombolas, com a questão dos índios brasileiros, todos os entraves que a gente tem no Tribunal de Contas."

 

Se as comunidades tradicionais e as salvaguardas sociais e ambientais são entraves ao desenvolvimento, é porque esse desenvolvimento só pode ser canibalístico e predatório. As vidas de Chico Mendes e Irmã Dorothy, e de tantas outras anônimas lideranças, foram ceifadas por constituírem um entrave à expansão de um modelo econômico e social em vigor no país. A fala do presidente aniquila o exemplo que legaram, e expõe movimentos, organizações e lideranças sócio-ambientais a um ciclo redobrado de violência e impunidade.

 

A malfazeja fala presidencial foi motivada pela resistência inicial do IBAMA em dar aceite à Licença Prévia das UHEs do rio Madeira. Lula discursava ao lado do governador sojicultor Blairo Maggi, mais que interessado na abertura do corredor noroeste rumo ao Pacífico, o eixo Peru-Brasil-Bolívia, do qual as usinas são parte. As UHEs do Madeira (e a extensão da hidrovia a oeste), junto com a Rodovia inter-oceânica, a Rodovia La Paz-Guajará-Mirim e a pavimentação da BR 319 (Porto Velho-Manaus) constituirão uma cunha transfronteiriça a disponibilizar e converter recursos naturais em commodities, em insumos pré-determinados para exportação .

 

Para onde vai o marco regulatório do setor elétrico

 

O formato aberto e maleável das concessões de exploração do potencial hidrelétrico do rio Madeira são uma prova dos efeitos de longo prazo do processo de privatização do setor elétrico brasileiro feito a partir dos anos 90. O sistema elétrico deixou de ser mero instrumento de acumulação para ser espaço prioritário de acumulação, ele mesmo transformado em negócio, e em cada uma de suas fases. Fatiadas a geração, a transmissão e a distribuição em nichos de mercado, foi inaugurado um mercado que forneceu elevada rentabilidade aos operadores privados e transnacionais. Abriu-se-lhes também a possibilidade de planejar a expansão e condicionar o uso final da energia elétrica no país.

 

O marco regulatório do setor procurou favorecer a "interação estável" entre os agentes privados, em outras palavras, a autonomização do acordo oligopolista frente à população e à nação. As alterações introduzidas em 2004 (Lei 10.848) pela então ministra de Minas e Energia Dilma Roussef, não mudaram o cenário de descapitalização das estatais; antes, multiplicaram as funções de intermediação no sistema, dilataram as tarifas pagas pela população e consolidaram um mercado livre de energia para grandes consumidores, que distorce o perfil da demanda nacional.

 

O mercado livre de energia procura oferecer a maior margem possível de lucratividade para as distribuidoras que "reciprocamente" se comprometem a "recompor" o valor das tarifas de forma "proporcional". São 25% a 30% de toda a energia do país abocanhados, fora das vistas públicas. As mudanças propostas para o formato dos próximos leilões de energia nova, Belo Monte à frente, são, na verdade, disputas inter-setoriais. Cada novo grande bloco de energia a ser privatizado/concedido implica em reposicionamentos, inter e intra-oligopolísticos, no setor elétrico e nos setores eletrointensivos.

 

A perspectiva de tornar as concessões mecanismos suplementares de atração de capitais, através de Parcerias Público-Privadas (PPPs) no setor elétrico, tende a se aprofundar, devendo ter lugar de destaque nos investimentos do PAC 2 . As PPPs institucionalizam requisitos de retorno financeiro e de segurança jurídica dos investimentos, o que resulta na automatização do processo político decisório de setores tidos como estratégicos. O Estado deixa de negociar com o setor privado com algum nível de equivalência e se reduz a um canal privado de negociação. Anunciando as vantagens dessa "privatização silenciosa", o ministro Paulo Bernardo afirmou: "Nós achamos que o Brasil vai atrair investimentos externos vultosos. Já é maior do que em 1999, que foi o ano das privatizações. Já está acontecendo silenciosamente. Não tem leilão, não tem bate-boca, não tem briga pública."

 

Em tempos idos, avaliando a privatização do setor elétrico chileno, a mesma Dilma concluía que o problema foi ter alienado também as instâncias regulatórias, crítica que, subliminarmente, se estendia ao modelo de privatização ilimitada adotado na era FHC. A gestão do sistema elétrico chileno "evidencia que a alienação dos ativos públicos elétricos deu lugar também à privatização de certas instâncias típicas de regulação pelo Estado, enquanto representante do interesse público" (ROUSSEF, p. 132, 1995). O erro teria mudado?

 

O novo modelo do setor elétrico proposto em 2004 é exemplar na aplicação da dileta equação de Dilma, "o mercado precifica e o governo planeja". Mas planeja, a rigor, a partir da precificação e em função dela. A legitimidade do governo Lula e de um eventual governo sucedâneo é devedora da otimização do "crescimento" como ele é: desigual, combinado, concentrador. O governo que queira representar eficientemente o papel de "capital coletivo" deve converter requisitos para acumulação ampliada em políticas de Estado.

 

Exemplo adicional disso é a adoção do project finance como modelo de financiamento dos novos empreendimentos hidrelétricos. Formatar projetos de infra-estrutura com foco predominante no retorno financeiro significa transferir para o setor privado o planejamento de setores antes considerados estratégicos e essenciais. O pretexto invariável é a dificuldade de elevar o nível do investimento público, o comprometimento do esforço fiscal e o sobre-endividamento. A consolidação do modelo de project finance na área de infra-estrutura, na visão dos porta-vozes dos investidores privados, seria o "pilar do equacionamento" das fontes de recursos para o setor. O pretexto não se sustenta porque a rentabilidade dos projetos em operação, com suas respectivas Sociedades de Propósito Específico (SPEs), tem sido sustentada com maciças doses de recursos públicos, injetados sem qualquer dificuldade e com a prerrogativa de desconto do cômputo do superávit primário, como reza a lógica dos Planos-pilotos de Investimentos, amplificados no PAC.

 

Em estudo recente do BNDES, coordenado pelo Chefe do Departamento de Energia Elétrica do Banco, Nelson Siffert, essa tese é repetida ad nauseam: " Por meio da intensificação do uso da estruturação de projetos via project finance, poderão ser viabilizadas as necessidades de capital e garantias dos agentes privados que são imprescindíveis para os vultosos investimentos requeridos pelos setores de infra-estrutura. Nesse aspecto, o project finance poderá ser utilizado para alavancar o desenvolvimento da infra-estrutura do país, contribuindo para superar os obstáculos para o desenvolvimento do Brasil."

 

No project finance das usinas do Madeira, a receita futura (direitos de receber em fluxos de energia) seria transformada em recebíveis antecipadamente. O BNDES assumiu entre 60% e 75% do total financiável dos empreendimentos. Até 2015, o Banco se comprometeu a desembolsar em torno de 25 bilhões de reais para as usinas de Santo Antonio e Jirau e seu linhão de transmissão. Além disso, a amortização dos juros e do principal pode se dar antes mesmo da operação, desde que todos os riscos estejam, desde o começo, identificados, compartilhados, geridos e mitigados devidamente.

 

O Madeira é um teste crucial para provar a "viabilidade" dos investimentos privados em projetos de infra-estrutura de grande vulto. Por isso, o preço de ser "modelo", "cobaia", "porta de entrada" será a certificação das incertezas, o intercâmbio das precauções sociais e ambientais - que determinam a não realização de obra ou projeto quando existam lacunas de conhecimento acerca de seus impactos – por precauções financeiras. Esta inversão de fato foi declarada, sem lapso, pelo Chefe do Departamento de Estudos Ambientais do BNDES. Frente à insuficiência de dados, atestada nos pareceres técnicos do IBAMA, o Banco, na sua avaliação, deve resguardar, sempre e antes de tudo, a viabilidade dos investimentos.

 

Já se tornou corrente, no campo empresarial e no governamental conexo, maldizer as dificuldades de licenciamento de hidrelétricas no Brasil. O "meio ambiente", os ambientalistas e os índios são apresentados, portanto, como obstáculos à expansão da geração hidrelétrica, co-responsáveis de um eventual segundo "apagão" ou no mínimo cúmplices da expansão da produção termelétrica, que seria mais custosa e poluente.

 

A chantagem do apagão, que se desdobra na chantagem da energia térmica, se desmonta com uma simples pergunta: qual Brasil precisa de energia em larga escala, e no curto prazo? É o Brasil dos "pobres sem geladeira", dos micro e pequenos empresários obrigados a arcar com uma perversa tarifa cruzada que materializam os elevados lucros das distribuidoras privadas? Não usando os rios Madeira, Xingu e Tapajós e todo o potencial restante da Bacia Amazônica no Brasil e no continente, alegam que não haveria outra alternativa para disponibilização imediata de energia senão aumentar a produção termelétrica convencional e nuclear. A questão é exatamente quem precisa dessa disponibilização imediata de energia senão os mesmos setores eletrointensivos, exportadores de produtos básicos, associados às próprias concessionárias-construtoras. Os investidores põem a chantagem na mesa como se estivessem representando algo mais que seu próprio interesse oligopolista.

 

Sem discutir previamente qual o perfil predominante da demanda de energia no país, vinculado a um determinado modelo energético e econômico, estaremos sempre na iminência de fazer sacrifícios adicionais em termos ambientais, sociais e de soberania para uma expansão energética que não atende a nenhum projeto de país.

 

Depois de uma avaliação rigorosa do uso final, da distribuição de energia e de seus valores diferenciados que implicam em subsídios ocultos injustificados, não podemos nos furtar a discutir a matriz energética brasileira para que possamos diversificá-la e equilibrá-la a longo prazo, priorizando as fontes alternativas. O Brasil tem um enorme potencial para captar energia solar e eólica, pela nossa posição geográfica e pela extensão do território. Nós temos, também, soluções regionais e locais que passam pelo uso da biomassa, da energia eólica e de pequenas centrais hidrelétricas, estas últimas em seus devidos termos. É possível pensar a energia e o desenvolvimento a partir de matrizes distintas, com uma composição mais ampla de interesses, no que seria a construção de um novo processo de decisão. Entretanto, as decisões setoriais continuam sendo tomadas nos círculos de maior concentração do poder econômico.

 

O Ministério das Minas e Energia, a EPE e a Casa Civil promovem um planejamento energético estatal na forma, mas seu conteúdo é ditado por grupos muito restritos. Daí a desenvoltura desses setores na cena pública ao propor novas facilitações e desembaraços, para que possam gerar "mais energia para o Brasil". Seguindo esta linha, o presidente da EPE, Maurício Tolmasquim, apresentou a proposta de agregar ao inventário hidrelétrico elementos do licenciamento ambiental de modo que ambos se interpenetrem. O inventário passaria a considerar a articulação com o planejamento de outros setores atuantes na bacia e a avaliação dos impactos causados pelo conjunto de aproveitamentos e seus efeitos cumulativos e sinérgicos. A razão dessa busca de agilização seria "racionalizar os processos de licenciamento, de modo que a hidrelétrica, um empreendimento de geração limpa, tenha o mesmo grau de agilidade no licenciamento da geração térmica."

 

A ampliação do escopo dos estudos e do planejamento, em uma conjuntura social e institucional regressiva, significa desterritorialização automática e em larga escala. Não por acaso, as AAIs ou AAEs passaram a constar entre as recomendações do Banco Mundial. A mesma proposta se encontra na metodologia EASE da IIRSA. Também está implícita na última assistência técnica (DPL) do BIRD ao BNDES para o "remodelamento" de nossas políticas ambientais.

 

Conclusão

 

O caso das usinas no rio Madeira demonstra que o setor elétrico está sendo encaixado ferreamente nos marcos dos investimentos privados. Inventários e estudos de encomenda, licenças licenciosas, operação antecipada, incluindo um limite mínimo/máximo de direitos e compensações nos entornos das UHEs.

 

A implementação dessas usinas é a cada dia mais auto-explicativa. A pilhagem de bens naturais e sua conversão em rios barrados, escravizados pelo capital, condenados a alimentar enclaves eletrointensivos, se mostra obscenamente. Estupros territoriais vistos enquanto tais, indisfarçáveis.

 

O desafio permanente é estabelecer uma agenda paralela de desenvolvimento. Discutir o modelo, entender as opções em jogo e intervir de forma articulada em suas ramificações. Clarificar como se distribuem seus custos e benefícios. Constranger a lógica do quinhão e avançar para aquilo que seja qualitativo, equalizador e libertador. Expor os super-lucros e as super-explorações de origem. Retirar a escora de consentimento a uma legalidade ad hoc, leis e regulamentos de balcão, marcos regulatórios e agências que regulam, ponta-cabeça, governo e a população.

 

Para romper essa cadeia de renúncias é preciso reunir a condição crítica ao pensamento crítico, para nos livramos de falsas contraposições, na verdade espaços anversos, que totalizam os controles. Pacificar nosso campo, em trincheira comum, indicando quem se nutre da dilapidação da força coletiva. Mirar o campo, as várzeas, as barrancas, as áreas feitas de uso comum, territórios talhados e sustentados por muitas mãos. Compatibilizar territorialidades populares urbanas, camponesas e tradicionais em um mosaico de resistências e protagonismos. Um espelho que se interponha à falsa projeção de um nós, fluido, cínico e pragmático.

 

Notas:

 

1 Massacre de El Porvenir(Pando-Bolívia) em 12/09/2008 e o massacre de Bagua (Peru) em 05/02/2009.

 

2 El Comércio, 28/10/2007, Lima. Disponível em www.elcomercio.com.pe/.../el_sindrome_del_perro_del_hort.html

 

3 O Estado de São Paulo, 23/11/2006, "Índios, MP e ambientalistas são entraves para o País, diz Lula".

 

4 "Lula quer anunciar o PAC 2 em 2010". O Estado De S. Paulo, 28/07/2009.

 

5 Os PPIs são uma herança permanente do último acordo do país com o FMI. Os PPI indicam como deve se dar a participação privada em infra-estrutura propiciando "competitividade" e garantia de retorno financeiro, sem prejuízo do ajuste fiscal.

 

6 O Papel do BNDES na expansão do setor elétrico nacional e o mecanismo de project finance. Disponível em www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes.../BNDES.../200903_01.html

 

7 "Há uma dúvida muito grande entre os pesquisadores se realmente existem impactos na sedimentação. Devido à insuficiência de dados reais, não havia no parecer uma condenação total ao projeto, o que viabiliza os financiamentos" (...) "É claro que existe um princípio de precaução aqui, levando em conta os investimentos previstos. Esta obra deve ser levada à frente". Exposição de Márcio Macedo da Costa "Seminário Febraban de Finanças Sustentáveis, na cidade de São Paulo, em 02/07/2009. Fonte: http://www.amazonia.org.br/

 

8 Apresentação de Maurício Tolmasquim, no Seminário Internacional de integração energética Brasil-Peru. Gesel/UFRJ, Rio de Janeiro, 15 de Maio de 2009.

 

9 A Avaliação Ambiental e Social com Enfoque Estratégico(EASE) procurar conjugar grupos de projetos que compõem cada Eixo de Integração da IIRSA em "unidades territoriais intermediárias".

 

Luis Fernando Novoa Garzon é professor da Universidade Federal de Rondônia, Departamento de Ciências Sociais, e membro da Rede Brasil sobre IFMS e da Rede Brasileira pela Integração dos Povos.

Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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Comentários   

0 #1 Texto magnífico e, ao mesmo tempo, depriNelson Antônio Fazenda 13-02-2010 19:33
Professor Garzon. Creio que seu artigo está tão magnificamente escrito quanto deprimente.
A declaração, por mim desconhecida, do ministro Paulo Bernardo, \"Nós achamos que o Brasil vai atrair investimentos externos vultosos. Já é maior do que em 1999, que foi o ano das privatizações. Já está acontecendo silenciosamente. Não tem leilão, não tem bate-boca, não tem briga pública.\", e também a postura da chefe da casa civil, Dilma Roussef, frente ao desafio do planejamento do setor elétrico brasileiro, são altamente desanimadoras.
Elas mostram o quão míopes estavam aqueles que, eufóricos, passaram a bradar que o governo Lula tinha tirado o país das garras do FMI.

E, pior ainda, quando olhamos o que nos espera para o futuro nada há de alentador.
De um lado, o quadro eleitoral não nos apresenta um candidato munido de uma pauta popular que tenha capacidade de vencer a eleição. Isso nos deixa apenas a opção de apostar no menos ruim, no mal menor.
De outro, a tibieza dos movimentos sociais de nosso país quanto à capacidade de conclamar e mobilizar o povo à reação a essas políticas danosas para seu futuro.
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