Um torneio monstruoso do ‘plastic-football’ surge na Índia
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- Irlan Simões
- 31/10/2014
O futebol na Índia está prestes a completar 70 anos de fundação, mas nunca conseguiu se aproximar da popularidade do críquete enquanto esporte de grande prática popular e, muito menos, de assistência na sua modalidade de alto rendimento. O futebol profissional indiano é gerido pela All Indian Football Federation (AIFF), que sofre com a dificuldade de fazer a versão local do esporte mais consumido no mundo – com sua I-League – ter relevância num país que tem uma das economias que mais cresce em todo o planeta, cuja população de 1,2 bilhão é gradualmente inserida nessa nova dinâmica de consumo e de tomada de protagonismo de uma nação que fala inglês.
Os elementos colocados de forma breve no parágrafo anterior dão subsídios para entender as motivações de uma gigantesca jogada de marketing que assustou todos os amantes do futebol no mundo: a criação da Indian Super League (ISL). Inaugurada no dia 12 de setembro com uma festa aos moldes dos grandes espetáculos esportivos de nível mundial, a nova competição de futebol indiana foi notícia internacional.
Pouco comentada no Brasil, as notícias que correram após a inauguração da Indian Super League tratavam dos elementos utilizados como centrais na estratégia de seus realizadores: contratação de estrelas europeias em fim de carreira como Trezeguet, Del Piero, Ljungberg, Materazzi, Anelka e dos brasileiros André Santos, Elano, além de Zico como treinador, e a existência de apenas oito equipes no torneio, que dura apenas dois meses, mas terá prêmios no valor de 1 milhão de euros, algo antes inimaginável na realidade do futebol indiano.
Nita Ambani (centro) é a CEO da IMG-Reliance. À sua direita,
Ted Forstmann, ex-CEO da IMG, falecido em 2011.
Do críquete ao futebol
O críquete continua sendo o principal esporte do povo indiano, mas tem um problema: é pouquíssimo praticado ao redor do mundo. O consumo midiático de futebol existe na Índia há muito anos, com a exportação massiva do futebol europeu para países asiáticos, muito mais protagonizada pelos detentores dos direitos televisivos do que necessariamente por suas ligas. Ainda assim, o futebol local não conseguia encontrar os caminhos para o crescimento da atração do seu “produto interno”.
É como imaginar a realidade do basquete no Brasil na década passada, cujo interesse popular era nutrido pelo televisionamento da NBA, mas não era acompanhado pela organização local. Tendência que parece estar se alterando com a atual NBB, cuja estratégia de marketing se assemelha à usada na ISL, ainda que nem se compare quanto à extravagância.
Ambos os casos compõem peças publicitárias de distintas dimensões – mas, pelo que parece, de formatos ainda não esgotados – de uma nova forma de estimular o consumo esportivo: uma articulação entre empresas especializadas na indústria do entretenimento, grandes estrelas do esporte, o afastamento das federações das principais decisões... e muito, muito dinheiro.
O atual momento da indústria do futebol indica o surgimento de oligopólios mundializados e que transitam entre os diferentes esportes na promoção de mercados locais que os beneficiem. Dessa vez, vão para além da exportação do futebol midiatizado europeu: a lógica agora é fortalecer ligas internas com franquias que capitalizem com os “ídolos” que elas mesmas criarem.
Quem está por trás da empreitada indiana é a IMG-Reliance, uma joint-venture formada pela Reliance, maior empresa do país, junto ao gigantesco conglomerado corporativo dominado pela IMG Worldwide. A empresa já havia anunciado uma parceria com a Federação de Basquete da Índia por 30 anos, na qual será responsável pelo desenvolvimento do esporte no país, desde a formação de atletas até a sua liga profissional e todos os aspectos de comercialização das marcas que envolvem o esporte no país.
No caso do futebol, apesar de os termos do contrato serem semelhantes, a realidade é mais assustadora: a parceria assinada por 15 anos prevê a cessão de absolutamente todos os direitos comerciais relacionados à AIFF – incluindo a seleção nacional e a Primeira Divisão –, passando agora às mãos da IMG-Reliance. O que aconteceu posteriormente foi uma proposta um tanto confusa: a organização de um torneio de duração de dois meses, com clubes selecionados pela própria empresa, que seriam franquias vendidas a milionários locais.
O colunista Bhargab Sarmah, do Huffignton Post, questionou com preocupação como as principais decisões sobre o futebol indiano estariam passando por fora dos seus principais “stakeholders”, os clubes. Mas o mais curioso: gestora da I-League, onde jogam os clubes mais tradicionais do país, a própria IMG-Reliance está agora organizando outro torneio paralelo com clubes-empresas novos. Para explicar esse caso surreal, Sarmah fez a seguinte analogia: “por um lado você vai para a cama com as grandes corporações que participarão da ISL, e por outro lado você manda os principais clubes locais na I-League para dormir no chão”.
A Indian Super League é defendida como uma “iniciativa para alavancar o interesse dos indianos pelo futebol”, mas parece muito mais uma reinvenção de tudo o que já foi o futebol no país. A estrutura que se assemelha à Major Soccer League, a liga norte-americana, propõe que os clubes sejam franquias de uma grande empresa controlada pela IMG-Reliance, e funcionará como uma forma de abafar os antigos clubes diante dos bilhões que estão sendo investidos em jogadores, marketing, atenção midiática e holofotes para a nova liga. “É como se a I-League não estivesse autorizada a crescer financeiramente e seus clubes fossem deixados mais fracos que nunca”, aponta Bhargab Sarmah.
A criatividade é tão grande que surpreende. Com total anuência da AIFF, a IMG-Reliance está refazendo o futebol indiano a seu bel prazer, inclusive contrariamente aos interesses da maior parte do público que frequenta os estádios no país, cujos clubes estarão fora desse novo projeto. Para tanto, investem na atração de estrelas de Bollywood, grandes conglomerados industriais e até clubes de futebol para a aquisição de suas franquias.
Cada franquia foi vendida por US$25 milhões e envolve uma lista de nomes relativamente curiosa. O Bengaluru pertencerá ao conglomerado indiano da Sun Group. O Déli foi comprado pelo proprietário da empresa de telecomunicações Den Network. As cotas do Goa foram compradas pelos grupos Videoco, Salgaocar e Dempo. O Guwahati foi adquirido pelo ator de cinema John Abraham junto ao Shilong Lajong (um clube da I-League!). O Kochi foi comprado pelo astro de críquete Sachin Tendulkar e a PVP Ventures, do ramo do entretenimento. O Kolkata envolveu uma parceria entre Sourav Ganguly (ex-capitão da Índia), três grandes empresários locais e o tradicional clube espanhol do Atlético de Madri. O Bombaim foi comprado por Ranbir Kapoor, ator de Bollywood. Por fim, o Pune envolveu um figurão da televisão, Salman Khan, e membros do grupo Wadhawan.
Mas o que a Índia, um país tão fraco no futebol, tem a ver com o Brasil? O mesmo ator econômico e a mesma capacidade de articulação, que foi enxergada por lá e já é sentida por aqui, indicam que os tempos futuros guardam muitas surpresas ao amante do futebol brasileiro.
Michael Dolan, da IMG; Adam Adler antigo proprietário
da Brasil 1 e agora CEO da IMX, e Eike Batista da EBX.
Brasil na rota da IMG
Em 2011, a IMG Worldwide passou a compor a IMX, joint-venture que também é formada pela EBX, do brasileiro Eike Batista. É a versão brasileira do projeto de inserção do grupo IMG no sports business em nível mundial. Não foi à toa que sua criação se deu durante a produção da Copa do Mundo da FIFA, quando se previa um crescimento do mercado local dos esportes.
Michael Dolan, CEO da IMG Worldwide, responsável pela entrada do grupo em mercados emergentes declarou, em entrevista coletiva ainda em 2011, quais eram os planos: “Temos interesse no Brasil pelo crescimento da economia em geral e também pelo aumento de renda das famílias, que consequentemente gastam mais em áreas como esporte e moda”. Segundo matéria da Exame sobre a criação da EBX, “os principais meios de atuação serão em patrocínios, eventos e consultoria de marketing esportivo, o que inclui a gestão de direitos e imagem de atletas e artistas e gerenciamento de carreiras”.
Logo no primeiro mês de atividades no Brasil, a empresa acertou a compra da empresa Brasil 1 Esportes e Entretenimento, estando por trás do grande crescimento do Ultimate Fight Championship (UFC) no Brasil a partir de 2011, que tinha projetos com a antiga empresa. A principal liga de artes marciais mistas do mundo contou com a IMX na organização e comercialização dos eventos da marca no país, e agora passa a assumir esse papel sozinha, encerrando a parceria.
No basquete, a IMX acertou um contrato como agência de marketing esportivo da Confederação Brasileira de Basquete (CBB) na metade do ano passado e tem participado diretamente dos eventos relacionados ao esporte no Brasil, como a realização de jogos contra clubes da NBA. Fora dos esportes, em 2012, a IMX contraiu 50% do grupo artístico Cirque de Soleil e tem participações no Rock in Rio.
Através da IMX Talentos, a empresa já havia assinado contrato com Neymar – em concorrência com a 9ine, de Ronaldo “Fenômeno” – na parte da comercialização da imagem do jogador, na busca por anunciantes para o atleta antes de sua saída para a Europa. Mesma coisa ocorre atualmente com Gabriel Medina, grande nome do surf brasileiro, cuja carreira e imagem são projetadas pela empresa.
A chegada da empresa e sua rápida inserção nas mais diversas modalidades e eventos pode ser uma das causadoras do fim da GeoEventos, braço esportivo das Organizações Globo. Tem-se então uma série de cases de sucesso que dão credibilidade à empresa. Mas o seu principal trunfo parece ser a sua participação na gestão do Novo Maracanã.
A IMX foi responsável pelo estudo de viabilidade econômica que serviu como base para o processo licitatório da obra. Esse estudo, tal qual todos os outros estudos para as novas arenas brasileiras, estavam repletos de equívocos e de manipulações de números, que favoreciam às suas construções – como projeção de público, de renda e de captação de recursos através da venda de naming rights.
O curioso ficou quando a própria empresa se tornou componente do consórcio que acabaria por vencer o processo licitatório ao lado da Odebrecht, da americana AEG e da Delta Construções, que teve de se retirar por conta do escândalo provocado pela relação de seus proprietários e o esquema de propinas do bicheiro Carlinhos Cachoeira. A empresa detém participação de 5% do Consórcio.
Uma matéria da BBC britânica indicou que a IMX “colocou em evidência a atuação das companhias do grupo EBX, do empresário Eike Batista, que nos últimos meses vêm enfrentando uma forte queda em seu valor de mercado e polêmicas em relação a alguns de seus principais empreendimentos”.
A crise que abateu os investimentos do, até então, “maior empreendedor do Brasil”, que lhe custou nada menos que US$29 bilhões, foi colocada em questão na IMX, que se resumiu a afirmar que pouco foi sentido pela empresa. “É claro que a crise de credibilidade de Eike nos afetou um pouco em termos de confiança dos nossos parceiros, mas nós estamos bem”, afirmou Adam Adler, CEO da IMX, à Bloomberg, ainda em fevereiro.
Não se sabe bem como a empresa reagirá à atual situação de Eike Batista, julgado por crimes contra o mercado financeiro quando da venda de ações da OGX, uma das empresas da EBX, que atua na exploração e produção de petróleo e gás natural.
Por fim, vale o breve destaque: a IMG Worldwide já foi selecionada, junto à Amsterdam Arenas, como as consultoras oficiais das praças desportivas que serão construídas para a Copa do Mundo de 2022, no Qatar.
Modelo em cheque
O esporte na Índia e no Brasil tem origem muito semelhante quanto à formação: a influência do imperialismo inglês, com a chegada de grandes empresas industriais e a inserção de muitos elementos culturais do país mais poderoso do mundo na virada dos anos 1900, levou o esporte consigo e o difundiu popularmente de acordo com suas características socioculturais. Enquanto aqui o futebol prevaleceu, na Índia o críquete cumpriu esse papel.
As entidades básicas da prática do desporto, os clubes e sociedades esportivas se desenvolveram a partir de associações civis que viam na prática do esporte um significado fundamental para as novas sociedades urbanizadas, na transmissão de valores relacionados ao liberalismo capitalista ocidental. Com os anos, passaram a ser praticados em larga escala e também de forma dispersa. A profissionalização se daria muitos anos depois, colocando o esporte num novo patamar de custos, mas ainda muito distante do modelo de negócio hoje implicado.
O momento atual marca um crescimento inimaginável do esporte enquanto produto de consumo de massas mundializado, sendo o futebol o principal deles. A partir do modelo de consumo esportivo norte-americano, muito mais espetáculo do que esporte, muito mais consumo do que torcida, muito mais clientes do que apoiadores, diversas experiências foram surgindo ao redor do globo na tentativa de promover esses produtos.
O modelo de associação civil já era indicado como um entrave para o desenvolvimento do negócio do futebol há décadas, quando as principais ligas europeias foram forçadas a ceder a leis impulsionadas pelo lobby do esporte, obrigando os clubes a se transformarem em empresas privadas.
No Brasil sempre houve resistência a essas mudanças ou, talvez, a ausência de um grande ator econômico que se predispusesse a assumir o papel de protagonista de uma grande reforma do futebol nacional. Os clubes continuam como associações civis, apesar de diversas ofensivas mercadológicas, mas não se sabe até quando isso pode perdurar. A IMX, no vácuo deixado pela Copa do Mundo e pela atual falta de credibilidade da CBF, pode estar em posição privilegiada para tal ofício. Obviamente que não reproduzirá o projeto aplicado na Índia, mas já mostrou capacidade de passar por cima de muitos tabus para colocar seus interesses acima do esporte doméstico.
Com o avanço das discussões sobre responsabilidade fiscal dos clubes e da persistência da cartolagem, tem-se deixado de lado um importante debate: a democracia dos clubes. No final dos anos 2000, diversos clubes passaram por experiências de organizações de torcedores pela sua democratização e cederam às pressões, ampliando seus programas de associação. Mas pouco se avançou.
Ao invés de reformar os estatutos e garantir maior participação do torcedor comum, os clubes transformaram seus planos de sócio-torcedor em cartões de clubes de compras, cujo desfecho era o “Movimento Por Um Futebol Melhor”. Ao mesmo tempo os cartolas se revestiam de uma carapuça de homens de negócios, de líderes, natos empreendedores, e passavam a apostar em campanhas de marketing muitas vezes sem qualquer sentido claro, para indicar uma adequação aos novos modelos, sem necessariamente reproduzir o mesmo modus operandi da velha cartolagem brasileira.
Ainda que de forma capenga – o que pode ser até comemorado, por incrível que pareça –, o modelo mundial do futebol-negócio avança agressivamente no Brasil e não encontra os resultados esperados, por ignorar os aspectos culturais que envolvem a relação dos brasileiros com os seus clubes. A IMX, com certeza, já tem um projeto guardado para o que vem pela frente.
Irlan Simões é coordenador da Revista REVER, onde este texto foi originalmente publicado.