O que está por trás da invasão gringa no futebol brasileiro?
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- Irlan Simões
- 19/08/2014
Tem se tornado uma tarefa difícil iniciar um texto sobre futebol que não comece tratando da Copa do Mundo. Legados, efeitos, reflexos, tendências. Quase tudo que se aponta como algo de novo que acontece no futebol brasileiro – o que menos muda no mundo – nesse bendito ano de 2014 está sendo remetido diretamente à Copa da FIFA.
Claro, sua relevância é indiscutível para o bem ou para o mal, mas há uma pretensa superestimação de alguns elementos que salta aos olhos. Um dos temas que tem ganhado notoriedade é a “invasão gringa” no futebol brasileiro, mais precisamente uma invasão latino-americana. Com a chegada incontida de argentinos, uruguaios, paraguaios e chilenos em sua maioria, já são ao todo 51 jogadores profissionais na Série A do Campeonato Brasileiro oriundos de outros países.
Nunca tivemos tantos jogadores estrangeiros vestindo as cores dos clubes locais. Quando há poucos anos era raro ver algum jogador gringo jogando a Série A local, na maioria dos casos se resumindo aos clubes do Sul do país por razões geográficas que atraíam esses atletas, o que temos hoje é a consolidação do Brasil como apenas uma das paradas da rota de exportação desses atletas.
São muitos os fatores que explicam a nova realidade. O texto que segue tratará do assunto, a partir do levantamento de números e na comparação com algumas ligas europeias.
Uma ilusão não deve se perpetuar nesse assunto: o futebol brasileiro não se tornou uma “força importadora” de atletas; apenas tem facilitado e gerado o interesse pela contratação de atletas de países vizinhos, ao passo que um volume altíssimo de atletas nativos continua a sair daqui para atuar em outros países – que não se resumem às principais ligas.
A se observar: Palmeiras trouxe Gareca para o comando e já tem oito gringos. Vai dar liga?
CBF autoriza, vizinhos se animam
A explicação não é muito complexa. A valorização da moeda brasileira e o destaque que o país vem ganhando na região favorecem os clubes locais, ainda que isso não signifique – nem de longe – que nossos clubes estão mais ricos, nem mais estruturados do que antes. Salários mais altos, melhores condições e maior visibilidade são fatores que pesam muito para os atletas, e por isso a CBF tem atendido com frequência ao pedido de dirigentes dos principais clubes pela ampliação do número de estrangeiros, chegando agora a aceitar a escalação de cinco atletas não brasileiros por clube.
Com o intervalo da Copa do Mundo e a reabertura da janela de transferências, aquilo que já se apontava nos anos anteriores só se confirmou enquanto “tendência”. Apenas na janela mais recente, encerrada no começo de agosto, chegaram nada menos que 13 novos gringos, praticamente um time titular inteiro. Os destaques ficaram por conta do Palmeiras, agora com oito gringos, e do Vitória, com cinco ao todo. Os dois clubes trouxeram três atletas cada.
Grêmio, com cinco, Botafogo e Flamengo, com quatro, completam a lista dos clubes mais estrangeiros do Brasileirão. Sport e Goiás são os únicos clubes que não têm estrangeiros.
Para além das questões macroeconômicas, pesa a atração do torcedor por nomes que venham de fora. Assim que um gringo encerra seu contrato, outro é contratado imediatamente para manter o clima de que o clube está dando bons passos para montar o elenco. Os cartolas enxergaram nessa receita uma forma de manter reputação, ainda que muitos sejam apenas atletas medianos. A baixíssima qualidade da Série B expõe que há uma grande ausência de bons nomes atuando dentro do Brasil, já que os melhores continuam a sair muito cedo para o exterior.
Dos 51 estrangeiros, vinte são argentinos e doze paraguaios, países que dominam os números. Alguns empresários (ou agentes, como têm sido chamado recentemente) estão se especializando no ofício da importação, sendo que o mais relevante desses é Regis Marques Chedid, que tem como “produtos” os argentinos Maxi Biancucchi, Emanuel Biancucchi e Damián Escudero, os paraguaios Wilson Pittoni, Guillermo Beltrán, Victor Cáceres e Angel Romero.
Nomes como Eduardo Rosetto, Miguel Zelada e Tomas Budelli optam pela discrição – diferentemente de Chedid, que assume a postura de “falador” –, mas também estão se tornando notáveis mascates de atletas da região. A grande diferença, no entanto, é que Chedid, além de ser o único nome brasileiro dentre os citados aqui, tem ótimas relações com futebol paulista há alguns anos.
Saber do histórico de tais agentes é fundamental para compreender o fenômeno, porque são esses os mais bem sucedidos em absorver facilmente as lógicas expostas acima, beneficiando-se delas. O número de atletas estrangeiros que ingressaram na liga brasileira nesse meio de temporada, ainda assim, foi menor que o número de jogadores brasileiros exportados (13 a 19). Mas tem mais a ser discutido.
A “volta” de Kaká só sintetiza a euforia da importação: não significa nada de concreto
Pés-de-obra vão, mas estão voltando
Alguns números e casos apontam que o tempo de duração de jogadores brasileiros na Europa tem sido cada vez mais curto e o fluxo tem se alterado para ligas menos expressivas. Na janela da metade de 2014, por exemplo, das 19 exportações, apenas quatro foram para as ligas da Itália, Espanha ou Alemanha (aquelas consideradas as únicas maiores que a brasileira, ao lado da Inglaterra, que não levou nenhum brasileiro).
Apenas Portugal, eterno importador de jogadores brasileiros, sozinho, levou cinco jogadores. Três deles foram para o Benfica, clube que se especializou em contratar bons jogadores brasileiros para utilizá-los como mercadoria frente a ligas superiores à portuguesa. Basta pegar o exemplo recente de David Luiz, zagueiro da seleção brasileira que saiu do Vitória para o Benfica e posteriormente para o Chelsea. O mesmo faz o rival Porto, que ultimamente tem “devolvido” jogadores por empréstimo a clubes brasileiros.
Ou seja: continuamos perdendo nossos melhores atletas para ligas não necessariamente mais estruturadas que a brasileira, mas que souberam se aproveitar de um entendimento perfeito do desenho da economia do futebol para poderem se aproveitar daquelas menos capacitadas nesse sentido. O que o Brasil faz hoje com os vizinhos latino-americanos é, em suma, exatamente o que Portugal faz com o Brasil, mas sem o mesmo sucesso de ter benefícios financeiros em caso de transferência. Porque elas não acontecem.
Claro, estamos tratando de uma realidade ainda muito distante de ser alcançada, mas nada impossível de se imaginar. Em Portugal, no início da temporada de 2013, apontou-se que 53% dos atletas eram estrangeiros. O número representa ao todo 130 não-nativos, o dobro do que temos até então no Brasil, considerando também que a principal liga tem apenas 16 clubes. Só o Benfica tem 12 estrangeiros e segue ampliando. Ao mesmo tempo em que isso acontece, já se contabilizam 173 portugueses atuando em ligas estrangeiras. É como se metade da principal liga fosse exportada e essas vagas fossem repostas com estrangeiros.
Vale destacar outro dado importante: foram repatriados 19 jogadores brasileiros que atuavam no exterior, exatamente o mesmo número de atletas exportados. Grande parte é de jogadores ainda jovens, que não conquistam espaço nos clubes europeus, mas que voltam ao Brasil com status de craque. Bruno Uvini, Rafael Tolói e Maicossuel, por exemplo, não têm qualidade para chegar à seleção, mas estão sendo recebidos como jogadores de elite. Alguns casos como o de Kaká acontecerão, mas envolvem elementos pontuais e específicos.
O pior, no entanto, é a constatação do número de jogadores que vão para ligas muito inferiores e que retornam com pouco tempo. São os tais dos “andarilhos caça-níqueis”, jogadores que atuam em países como Catar, Ucrânia, Bélgica e Suíça e retornam com dois ou três anos de experiência numa liga que pouco acrescenta ao seu futebol e temem cair no “ostracismo” da bola. Mas também retornam cobrando salários altos: cinco desses repatriados estavam em países árabes, onde o dinheiro dos sheiks é quase imbatível.
Em 2014, ainda são 471 atletas brasileiros nas principais divisões europeias. Em 2009, esse número era de 538 jogadores. Ao passo que continuamos exportando em grande volume, vemos os brasileiros incapazes de ter destaque nas ligas realmente competitivas. Um cenário que acusa a perda de importância dos jogadores brasileiros no exterior, mas também que essas rotas alternativas, como o leste europeu, o norte europeu e o Oriente Médio, seguem garantindo a alta taxa de exportação. O Extremo Oriente também tem seu peso com China, Japão e Coreia do Sul.
Regis Chedid comemora em seu twitter a morte de Julio Grondona, da AFA.
Empresário é um dos principais nomes para entender o que se passa.
Um novo cenário, sem nenhuma reforma
Certa feita, ao assistir uma palestra de Jorge Farias, diretor de marketing do Internacional de Porto Alegre, perguntei se os clubes não precisavam se organizar para criar mecanismos de proteção frente aos agentes. Apesar de ser uma figura do âmbito dos negócios, Jorge Farias tinha uma curiosa característica: ser extremamente franco. Para ele a questão era muito simples: os cartolas brasileiras são ignorantes e não se deram ao trabalho de tentar entender o jogo que os agentes estão fazendo os clubes brasileiros jogar.
Em suma, a importação de atletas para o Brasil tem sido um negócio tão rentável quanto aquele aprimorado pelos agentes que se beneficiam da exportação, esses tão criticados pelos torcedores e jornalistas mais sérios. Ambos se aproveitam da falta de estrutura dos clubes brasileiros para inseri-los na rota do mercado de atletas. No nosso caso, num papel de reféns de uma lógica muito bem estruturada.
Os clubes europeus gozam de recursos, portanto, dispõem de condições de cobrir as multas rescisórias dos atletas que pretendem contratar. No caso brasileiro não: os atletas são trazidos em sua maioria sem custos, após o término de seus contratos com os clubes pelos quais atuavam no seu país de origem. No Brasil, esses não assinam contratos servindo aos clubes como peça possivelmente negociável, já que optam por acordos de curta duração, favorecendo a mudança rápida de clubes e uma possível nova transferência sem custos para alguma das ligas menos expressivas da Europa.
Sendo assim, é possível afirmar que o futebol brasileiro, definitivamente, não está se tornando uma potência importadora, mas um imenso trampolim para atletas muito bem agenciados por empresários gringos e também locais. É um novo braço dessa imensa indústria, que agora atinge o seu ápice, mais enganando e iludindo do que realmente fortalecendo os clubes brasileiros.
Primeiro porque não contribui em nada com a diminuição da exportação, segundo porque não deixarão qualquer legado financeiro aos clubes que contratam esses atletas. Poucos dos gringos que chegaram serão comercializados pelos clubes, como acontece em Portugal no caso citado anteriormente.
Alguns desses empresários possuem uma lista tão extensa de atletas sob sua tutela que suas empresas parecem times invisíveis que pairam no meio dos clubes que conhecemos. A esses apenas interessa o sucesso de seus atletas, compensando positivamente uma ocasião em que um dos seus jogadores esteja dentre os melhores do campeonato, ainda que o clube com o qual tenham contrato em vigência seja rebaixado para a Série B.
Para além da falsa sensação de novos rumos, o futebol brasileiro precisa ter maior ciência da sua posição na geopolítica dessa indústria. A lógica que versa atualmente é a que coloca agentes com maior poder de barganha que os clubes, e na qual os jogadores estão cada vez mais empenhados em ter utilidade maior à empresa que os agencia do que ao próprio clube.
Num cenário de avanço da pauta do “fair-play financeiro” e diante da eterna irresponsabilidade dos nossos cartolas, o resultado dessa farra importadora pode ter efeitos devastadores.
Irlan Simões é coordenador da Revista REVER, onde o texto foi originalmente publicado.