Correio da Cidadania

Sérgio Silva, culpado: a justiça em estado terminal

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Desde que moveu um processo contra o estado de São Paulo por danos morais e materiais, há quase três anos, o fotógrafo Sérgio Silva esperava a manifestação da Justiça como quem aguarda notícias sobre um ente querido internado na UTI. Sabia que o pior estava para acontecer. “O Judiciário padece de uma doença quase incurável”, compara. Mas não queria perder as esperanças de que o tribunal reconhecesse a responsabilidade da Polícia Militar pela bala de borracha que explodiu seu olho esquerdo em 13 de junho de 2013, enquanto cobria uma manifestação contra o aumento da tarifa de transporte público no centro da cidade.

 

A corporação reconhece haver disparado pelo menos 506 projéteis de elastômeros naquela noite. Há dezenas de vídeos, fotos e testemunhos atestando a truculência desmedida dos policiais na jornada, não apenas contra manifestantes, mas também contra profissionais de imprensa e transeuntes que sequer estavam participando do protesto. Foram momentos de sítio e barbárie, com cerca de 150 feridos e mais de 200 presos. Além de Sérgio, outra repórter – Giuliana Vallone – foi atingida por uma bala de borracha no olho, mas felizmente teve a visão preservada pela lente dos óculos. Uma senhora de idade foi atingida na bochecha pelo mesmo artefato.

 

As evidências são múltiplas e diversas, mas não existe uma única imagem que mostre de maneira incontestável que Sérgio Silva tomou um tiro de bala de borracha: a prova definitiva que descartaria a versão da Procuradoria Geral do Estado, para quem o fotógrafo pode ter sido atingido por qualquer outro objeto, como pedras ou paus supostamente atirados por manifestantes. No último 10 de agosto, porém, a Justiça deu mostras de que nem mesmo um vídeo mostrando a bala de borracha afundando o olho do fotógrafo poderia ajudá-lo em sua busca por compensação financeira pela violência que sofreu.

 

“Mesmo que houvesse provas de que o ferimento experimentado pelo autor (Sérgio) tenha sido provocado por bala de borracha disparada pela polícia, ainda assim, não haveria de se cogitar da pretendida indenização”, escreveu Olavo Zampol Júnior, magistrado da 10ª Vara da Fazenda Pública do Estado de São Paulo, recusando-se a analisar qualquer prova que pudesse ser produzida para embasar sua decisão. “O resultado seria o mesmo”, escreveu.

 

E o resultado foi esse: “ao se colocar o autor (Sérgio) entre os manifestantes e a polícia, permanecendo em linha de tiro, para fotografar, colocou-se em situação de risco, assumindo, com isso, as possíveis consequências do que pudesse acontecer, exsurgindo desse comportamento causa excludente de responsabilidade, onde, por culpa exclusiva do autor, ao se colocar na linha de confronto entre a polícia e os manifestantes, voluntária e conscientemente assumiu o risco de ser alvejado por alguns dos grupos em confronto (polícia e manifestantes)”.

 

É chocante ouvir que a vítima é culpada. Faz lembrar as recentes campanhas feministas contra o assédio e o estupro. Que roupa ela estava usando? Qual era o tamanho da saia? Se ela se desse o respeito, jamais teria sido assediada... A Justiça seguiu a mesma lógica no caso de Sérgio Silva. Se não quisesse ter perdido o olho, era só não ter se colocado na “linha de tiro” dos policiais. Ninguém mandou fotografar manifestações. Por que não usou óculos de proteção?

 

Assume-se oficialmente que a polícia pode atirar à vontade, sem respeitar sequer os próprios manuais, que proíbem o disparo da bala de borracha na altura do rosto. É como se os policiais tivessem licença para ferir e cegar, assim como os homens para assediar e estuprar, desde que devidamente provocados. É a cultura da violência de Estado.

 

Sérgio Silva e seus advogados irão recorrer da decisão, claro. Esperam que os desembargadores do Tribunal de Justiça revertam o veredicto e deem ganho de causa à vítima – e não a seus algozes. Mas os precedentes não ajudam. Em 26 de setembro de 2014, o desembargador Vicente de Abreu Amadei absolveu o Estado de qualquer responsabilidade pelo tiro de bala de borracha que acabou com mais de oitenta por cento da visão do olho esquerdo de Alex Silveira, fotojornalista que cobria uma manifestação de professores na Avenida Paulista em 18 de julho de 2000. É um caso muito parecido ao de Sérgio, com algumas diferenças. Alex ganhou a causa em primeira instância; Sérgio perdeu logo de cara. Alex viu – e fotografou – o policial que acertou seu olho; Sérgio não sabe quem puxou o gatilho.

 

A Justiça demorou três anos para dar sua primeira decisão. Não se sabe quanto mais demorará para dar a segunda. No caso de Alex, foram catorze anos. Enquanto isso, Sérgio Silva lançou um abaixo-assinado na internet, pedindo apoio para que a Justiça de São Paulo desfaça tamanha barbárie. Em quatro dias, a petição recebeu mais de três mil adesões. É bom, mas, dado o absurdo da decisão, poderia ser melhor. Logo depois de perder o olho esquerdo, em 2013, Sérgio lançou um abaixo-assinado pedindo a proibição das balas de borracha em manifestações. O documento teve mais de 45 mil assinaturas. Nem assim sua reivindicação avançou.

 

Em 2014, a Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou por unanimidade um projeto de lei proibindo as balas de borracha no estado. Mas o governador Geraldo Alckmin (PSDB) vetou a medida, alegando que a nova lei causaria “o nefasto efeito de desaparelhar os agentes encarregados do controle de distúrbios civis, podendo contribuir para a degeneração dos manifestos populares, com agravamento do número de vítimas e da seriedade dos danos”. Em uma magnífica inversão de valores, o governador escreveu no Diário Oficial do Estado que a arma que arranca olhos é quem na verdade evita que haja vítimas. Por isso, não pode ser banida.

 

As entidades de classe se manifestaram contra a mais nova pérola judicial paulista. A Associação de Repórteres Fotográficos e Cinematográficos de São Paulo (Arfoc-SP) repudiou a decisão. “Sérgio é claramente uma vítima, não um culpado. Todos que estavam lá podem comprovar isso”, afirma Rubens Chiri, presidente da entidade. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) também criticaram o veredicto. “Condenamos a repressão policial aos movimentos populares em geral”, afirmou Paulo Zocchi, que é presidente do sindicato paulista e diretor da entidade nacional.

 

“A Polícia Militar é extremamente violenta e promove um atentado permanente à liberdade de manifestação. Como subproduto disso, ela atinge de maneira particular os jornalistas. A violência contra Alex e Sérgio são dirigidas a jornalistas que registram a violência policial. É um ataque deliberado contra alvos específicos”, afirmou Zocchi, citando vídeos que demonstram policiais investindo contra jornalistas identificados como tal. “Isso se torna também um atentado à liberdade de imprensa. A polícia militarizada que temos hoje, e que está cada vez mais forte, é uma herança da ditadura e uma ameaça à democracia.”

 

Levantamento da Fenaj sobre violência contra jornalistas mostra que, em 2015, houve 137 casos, sendo que 20% deles ocorreram no estado de São Paulo. A Polícia Militar é a principal fonte das agressões. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) afirma que 61% dos 98 casos de violência cometidos pela Polícia Militar contra profissionais da imprensa em manifestações realizadas em São Paulo desde junho de 2013 foram intencionais, ou seja, a vítima estava identificada ou se identificou como jornalista antes de sofrer as agressões.

 

A decisão do juiz Olavo Zampol Júnior é incompreensível para quem presenciou a ação policial em 13 de junho de 2013 e conheceu o caso de Sérgio Silva. É difícil elencar argumentos, porque todos eles revelam, em uníssono, a monstruosidade do veredicto. É incompreensível. É daquelas atitudes que causam perplexidade porque ultrapassam qualquer limite e surpreendem até mesmo quem já estava preparado para receber um soco da Justiça. Difícil acreditar que alguém teve a desfaçatez de escrever e assinar um documento público com esse teor. Parece que a máquina desintegra qualquer resquício de humanidade nos homens de farda – ou de toga.

 

Poucas horas depois de conhecer a decisão, Sérgio Silva vendou os olhos e posou diante de uma câmera de vídeo para registrar sua indignação. Detrás de si, um muro coberto com o despacho do juiz Olavo Zampol Júnior, livremente intitulado com uma das poucas palavras que conseguem defini-lo: falácia. “As pessoas costumam dizer que a justiça é cega, mas ela toma suas decisões com os dois olhos bem abertos”, explica o fotógrafo. “Cegos somos aqueles que são violentados por ela, como eu, e também a grande parte da população que não quer abrir os olhos para ver como funciona esse sistema judiciário”.

 

 

Tadeu Breda é jornalista do Outras Palavras, onde a matéria foi originalmente publicada.

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