O que desfaz e refaz o Brasil e o continente
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- Luis Fernando Novoa Garzon
- 06/06/2012
O Brasil se especializou no fornecimento de um amplo leque de matérias-primas em larga escala, proporcionou a interface político-operacional necessária para atração e expansão de investimentos diretos tendencialmente monopolistas. Manteve-se como praça financeira estável, cuja regulação segue a dinâmica de valorização ampliada que está na origem desses mesmos grupos econômicos concentrados e interligados. A transição para a condição de pólo econômico continental-global é permeada por tensões intra-burguesas e disputas inter-capitalistas balizadas por subalternidades e assimetrias estruturais e também por requerimentos próprios de um pólo imperialista em nucleação no Brasil.
Esse tensionamento é ainda mais marcante nos setores de infra-estrutura, considerados estratégicos porque têm o poder de definir direção e ritmo da acumulação de capitais, visto que todos os demais setores econômicos dependem de energia, água, transportes e comunicações. O acesso a tais setores e o padrão de organização dos mesmos delineiam o perfil produtivo do país e o protagonismo de determinados atores e grupos econômicos.
Nos anos 90 a privatização desses setores, ou de outro modo, o incremento da participação do setor privado neles, era condição para novos investimentos e para aceder ao crédito para rolagem da dívida. A privatização da infra-estrutura ao demarcar o lugar concebível do “Estado regulador”, colocava o capital estrangeiro em posição proeminente no bloco de poder. Já as burguesias internas que sobreviveram aos processos de liberalização vincularam-se em linha com os mercados internacionais como supridoras, intermediárias ou distribuidoras.
A partir de 2003, uma nova soldagem de interesses se processa através de reformas regulatórias, do suporte operacional, dado pelas estatais remanescentes ao setor privado e pelo concurso ativo de financiamento público via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. O BNDES referenda assim estratégias de conglomeração empresarial nos setores “comprovadamente competitivos”, constituindo-se em um dos principais centros articuladores e de combinação de processos de centralização e concentração de capital no Brasil e no subcontinente. Desta forma, os pactos político-empresariais, em constante constituição e reconstituição acabam espelhando o que vem sendo denominado como projeto de país e de região.
As Instituições Financeiras Internacionais (IFIS), especialmente o FMI e Banco Mundial (BIRD) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que antes faziam da dívida pública um instrumento para aprofundar as privatizações e as desregulamentações decorrentes, hoje procuram se articular com esse campo de forças “interno” para manter uma agenda similar de pé. O “novo regionalismo” perde eficácia como peça de retórica, a recobrir processos de encaixes e desencaixes da economia periférica aos fluxos de capitais das economias centrais. A efetivação de infra-estruturas regionais como grandes escoadouros físicos de matérias-primas exportáveis para o mercado externo depende de acordos e acúmulos prévios na escala dos países, dentro de seus blocos hegemônicos, para se tornar realidade.
Convém recordar que a Iniciativa de Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) foi concebida em 2000 pelo BID, em um momento de extrema vulnerabilidade econômica e política dos países da região. Uma “Iniciativa de Integração” constituída em tais condições de gestão e de provimento financeiro, não poderia ter outro objetivo que não o de multiplicar áreas seguras para investimentos estrangeiros, especialmente voltados a fluxos de matérias-primas e produtos básicos estratégicos para cadeias de produção mundializadas. A reorientação internalizante, estampada no último documento do BID (1) sobre a Iniciativa, procura deixar claro que formas e ritmos dos regimes de acumulação são da alçada dos governos sul-americanos.
Agora a IIRSA renasce mais regional que nunca como “agenda de integração física” da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), a cargo de seu Conselho Sul-Americano de Infra-Estrutura e Planificação (COSIPLAN). Nenhuma quadrícula da IIRSA é recusada: “siga o chefe” ou “siga seu próprio caminho”, remetem à mesma imperatividade da lógica monopólica. O Plano de Ação Estratégico do COSIPLAN comunga com a “metodologia IIRSA” e propugna a sua trans-substanciação em conformidade com metas de endogeneização do crescimento, de sustentabilidade ambiental e de inclusão social. Observando, contudo, o nível de concentração, multinacionalização e enraizamento dos capitais na América do Sul, pode-se depreender que tais atributos são antes de tudo relativos à dinâmica desse novo aglomerado de capitais e de suas alianças intra e inter-classistas. Os qualificativos “endógeno”, “ambiental” e “regional” compõem ainda a operação de guetização dos conflitos sociais e ambientais e de silenciamento preventivo da crítica.
Primeira desmistificação: “integração física” é um termo deliberadamente asseptizador que supõe um mínimo patamar técnico desejável de conectividade econômica, como se a mobilidade dos capitais pudesse ser regida de forma homogênea e multidirecional. Segunda: “eixos de integração” são antes eixos de concentração e de valorização, que dão acesso a habilidades e rentabilidades territoriais de largo espectro, e por isso mesmo são objeto de disputa. Na passagem IIRSA-COSIPLAN , o capital, mundializado e concentrado na região fala por si e evoca uma burguesia cosmopolita apta a gerir sua área de espraiamento, solidamente ancorada no Brasil.
Há uma massa ociosa de capital super-acumulado ansiosa por “sinalizações” de novos espaços de valorização que estão no âmago do PAC e da IIRSA-COSIPLAN: atração de investimentos através do rebaixamento dos custos e regulamentações. A manutenção do fluxo de investimentos dependente de sua canalização para setores de alto retorno garantido produzirá um efeito anti-cíclico temporário, mas com inegáveis efeitos na recomposição do bloco de poder em ciclos eleitorais vindouros (eleições municipais em 2012 e eleições gerais em 2014).
O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), especialmente em sua fase II (2011-2014), procura se adequar ao cenário pós-crise, contando com maciço apoio do BNDES. O Banco tem servido de atalho para entendimentos político-econômicos objetivos, expressados nas principais fusões e aquisições verificadas nos últimos anos, que contaram invariavelmente com sua condução. Como lugar prioritário para a síntese da relação Estado-capital concentrado no Brasil, o BNDES está gerando novas formas de integração e articulação entre o setor privado e o setor público.
É dessa forma que o governo obtém legitimidade das grandes empresas do setor ao mesmo tempo em que as torna mandatárias do “interesse do Brasil”. A mistificação da nação vencedora por mérito de um exército dos “que nunca desistem” criou uma linha de defesa ideológica de fundo, a da viabilidade de um “capitalismo popular” a depender do alcance de seu metabolismo. Há um pacto tacitamente firmado, que atrela traiçoeiramente a geração de novos empregos e a ampliação de políticas assistenciais à condição do pleno desimpedimento do avanço dos grandes negócios e das movimentações financeiras. Intensificação dos processos de monopolização com maior integração social, que envolve processos de subjetivação da aceitação social das expropriações exigidas: essa é a medida do novo “nacional” em construção. Uma brasilidade de rala e escassa imaginação, construída pragmaticamente pelo grande empresariado fincado no país, tornado cívico a posteriori, como mecanismo de aperfeiçoamento de seu domínio de fato.
O fiasco nacional não admitido e esquecido foi o sacrifício de um rosário de bifurcações históricas à instrumentalidade do puro capital. A suplementaridade como fim em si mesmo, no caso brasileiro, significa oferecer a poda prévia de cadeias de valor, recuando “estrategicamente” para os setores de fornecimento e insumos com uso intensivo de recursos naturais. Ganhar pela escala do que é suplementar pressupõe comandos subseqüentes às podas. Desse modo o Brasil aumenta sua contribuição para a variação da magnitude e da direção dos fluxos de capitais, mas o faz de forma consentida e delimitada. O garroteamento do próprio futuro depende de uma eficaz utilização do repertório de instrumentos do intervencionismo estatal e de atuação sindical e comunitária, devidamente adestrados à nova institucionalidade fundada de forma explícita em razões substantivas de mercado.
Nota:
1) Estratégia Setorial de Apoio à Integração Competitiva Regional e Global, BID, 2011
Luis Fernando Novoa Garzon é sociólogo, professor da Universidade Federal de Rondônia e pesquisador do ETTERN/IPPUR-UFRJ.